terça-feira, 8 de outubro de 2024

Joanna de Ângelis - Livro Em Busca da Verdade - Divaldo P. Franco - Cap. 6 - Item 3 - O Ser humano pleno



Joanna de Ângelis - Livro Em Busca da Verdade - Divaldo P. Franco - Cap. 6 - Item 3


O Ser humano pleno 


Frederico Nietzsche, dominado por terrível pessimismo, atormentado por contínuas crises de depressão e amargura, concebeu o super-homem como aquele que poderia vencer o niilismo e com a sua sede de poder tudo conquistar. Esse verdadeiro arquétipo que predomina em muitos indivíduos, estimulando-os à conquista desse símbolo representado na personagem fictícia americana do Superman, é um sonho atormentado que não encontra respaldo nos conteúdos psicológicos e somente vige na imaginação.

Ao conceber esse protótipo, Nietzsche não imaginou o modelo ariano como ideal, que, de certo modo, detestava, mas um alguém que superasse o homem morto, do Assim falava Zaratustra, que talvez não suportasse os imensos conflitos gerados à sua volta. Por algum tempo, esse conceito gerou incompreensão em torno do autor, quando sua irmã, aquela que conviveu com ele nos últimos tempos, ofereceu a Hitler uma bengala que lhe havia pertencido, deixando transparecer simpatia do filósofo pelo nazismo… 

Idealizar-se um super-homem é tentativa frustrada de desprezar-se o homem e todas as potências que se lhe encontram em germe.

Porque o seu processo de experiências é realizado por etapas caracterizadas por incertezas e dificuldades, aspira-se, inconscientemente, à possibilidade mitológica de tornar-se alguém inacessível aos fenômenos dos sofrimentos, das angústias e da morte, conforme a concepção em voga em torno do Super man. 

A conquista dessa robustez e grandeza moral somente é possível pela inversão de valores, que se apresentam no mundo exterior como portadores de poder e de glória, estando adormecidos no Si-mesmo, que deve ser conquistado com decisão, em processos vigorosos de reflexão e de ação iluminativa, de forma que nenhuma sombra consiga predominar na aquisição  da plenitude.

A conquista de humanidade conseguida pelo psiquismo após os bilhões de anos de modificações e estruturações, transformações e adaptações, faculta, neste período da inteligência e da razão, a fantástica conquista do pensamento, essa força dinâmica do Universo que o sustenta e revigora incessantemente. 

Não foi sem sentido psicológico profundo que o astrofísico inglês Sir James Jeans declarou: O universo parece mais um pensamento do que uma máquina, coroando-se com a declaração do nobre Eddington informando que: A matéria-prima do universo é o espírito.

Por isso mesmo, quando o ser humano autoexamina-se, percebe-se como um todo com possibilidades especiais independentes de qualquer outra condição externa, mas ao abrir os olhos dá-se conta do meio ambiente, das circunstâncias e das imposições sociais, tornando-se parte do conjunto, embora mantendo alguma independência. Surgem-lhe, então, as necessidades de autoafirmação, de autorrealização, buscando a integração no conjunto sem perder a sua identidade, a sua individualidade, o Si-mesmo. 

Logo se lhe manifestam as ambições pelo poder, pelo ter, que o estimulam à luta, impulsionando-o a vencer os obstáculos que se interpõem na marcha, tentando dificultar-lhe a conquista dos seus objetivos.

A insistência de que dá mostra fortalece-o, auxiliando-o a definir os rumos do progresso, para logo depois, à medida que amadurece psicologicamente, dar-se conta de que essas conquistas do ego são interessantes, proporcionadoras de comodidade, de prazeres, porém insuficientes para sua plenificação. 

Amadurecido, sem tormento de frustrações, mas por análise das ocorrências e das posses, descobre outra ordem de valores interiores, de aspirações mais significativas, de sentido mais lógico e grandioso para a existência, passando a aspirar pela plenitude, esse estado de samadi (1), preservando a dinâmica de intérmino crescimento. 

Considerando-se que o processo de evolução é infinito, quanto mais consciente se encontra o ser humano, a mais aspira e melhores anelos trabalham-lhe o íntimo, porque a sua concepção da realidade é abrangente e compensadora.

Quem anda num vale tem limitada a visão, nada obstante a beleza da paisagem. A esforço, começando a ascensão montanha acima, amplia-se-lhe o horizonte observado, apesar de permanecerem distantes os contornos dos montes e dos abismos… No entanto, quando atinge o acume, sente-se triunfante e pequeno ante a grandeza do que abarca visual e emocionalmente, não se contentando somente em observar, mas em ser também parte significativa desse conjunto, que não existia para ele até o momento em que pôde contemplar… 

O observador existe quando detecta o que antes não tinha vida para ele, que, por sua vez, passa a ser observado pelo que observa.

No pandemônio dos conflitos existenciais, o ser humano apequena-se e parece consumido pelas situações psicológicas em que se vê envolvido, como alguém num vale em sombras, sem perspectivas mais amplas que lhe facultem os horizontes de infinita alegria e de bem-estar. 

Os tormentos cegam a razão, o egoísmo limita os passos, estreitando as aspirações que pretendem abarcar tudo, sem possibilidade de fruí-lo, o que é lamentável, tornando o  possuído pela posse possuidora…

Quando se liberta dos tentáculos que arrastam tudo de maneira constritora para o centro do ego, respira o oxigênio saudável da alegria inefável por estar livre das conjunturas tormentosas do ter e do temer perder, do ser admirado pelo que possui, não pelo que é, de ser visto como triunfador de fora, no que é admirado, mas raramente amado… Livre de qualquer tipo de dependência factual do cotidiano das coisas, pode voar pela imaginação e pelos sentidos em qualquer direção, sem medo nem ansiedade, porque se encontra pleno.

A aventura existencial é toda uma saga, e a moderna psicologia analítica, avançando com o progresso da Humanidade, oferece os recursos hábeis para as conquistas interiores valiosas, sem bengalas de sustentação, mas com reforços de lucidez e autoconhecimento para que seja alcançada a vitória sobre as injunções da caminhada orgânica. 

É provável que esse avanço e tais conquistas não sejam conseguidos de uma só vez, mas paulatinamente, mesmo usando veículo aéreo, sente a diferença atmosférica, o ar rarefeito, acostumando-se muito lentamente para poder beneficiar-se.

Psicologicamente, as mudanças interiores são também oxigenadas pelas experiências conseguidas nas fases anteriores, nos passos iniciais de sustentação das futuras conquistas, arregimentando recursos para mais audaciosos logros.

Despojar-se dos instrumentos de que o ego se vem utilizando para manter-se, de um para outro momento, causa-lhe transtorno inevitável, razão pela qual a integração com o Self deve dar-se naturalmente, de tal forma que haja equilíbrio, um perfeito estado de individuação.

Há pessoas que aspiram ao sacrifício, ao holocausto, num êxtase de fé religiosa para acercar-se mais de Deus.

Não é de crer-se que Deus assim o deseje, pois sendo a Sua a mensagem de amor, o autoamor faz parte da Sua agenda de evolução para todos.

Ocorrendo de forma não buscada, constitui oportunidade de sublimação, em que o ego cede lugar ao elemento divino nele existente. No entanto, o sacrifício pode ser visto como o abandonar das coisas, dos apegos que tanto agradam, trocando-os pela espiritualização libertadora, e o holocausto refere-se ao desprezo pelas paixões inferiores, pelos vícios que dão prazer, pelas pequenezes a que muitos se aferram, tornando-se de valor incontestável e grandioso.

Em uma página rica de sabedoria, Allan Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no capítulo XVII, item 3, faz um retrato psicológico de O homem de bem, que traduz com perfeição a conquista do ser pleno.

Diz o Codificador do Espiritismo:

O verdadeiro homem de bem é o que cumpre a lei de justiça, de amor e de caridade, na sua maior pureza. Se ele interroga a consciência sobre seus próprios atos, a si mesmo perguntará se violou essa lei, se não praticou o mal, se fez todo o bem que podia, se despregou voluntariamente alguma ocasião de ser útil, se ninguém tem qualquer queixa dele; enfim, se fez a outrem tudo o que desejara lhe fiassem.

Deposita fé em Deus, na Sua bondade, na Sua justiça e na Sua sabedoria. Sabe que sem a Sua permissão nada acontece e se Lhe submete à vontade em todas as coisas.

Tem fé no futuro, razão porque coloca os bens espirituais acima dos bens temporais. 

Sabe que todas as vicissitudes da vida, todas as dores, todas as decepções são provas ou expiações e as aceita sem murmurar.

Possuindo o sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem, sem esperar paga alguma, retribui o mal com o bem, toma a defesa do fraco contra o forte e sacrifica sempre seus interesses à justiça.

Encontra satisfação nos benefícios que espalha, nos serviços que presta, no fazer ditosos os outros, nas lágrimas que enxuga, nas consolações que prodigaliza aos aflitos. Seu primeiro impulso é para pensar nos outros, antes de pensar em si, é para cuidar dos interesses dos outros antes do próprio interesse. O egoísta, ao contrário, calcula os proventos e as perdas decorrentes de toda ação generosa... 

...O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus...

...Não alimenta ódio, nem rancor, nem desejo de vingança; a exemplo de Jesus, perdoa e esquece as ofensas e só dos benefícios se lembra, por saber que perdoado lhe será conforme houver perdoado. È indulgente para as fraquezas alheias, porque sabe que também necessita de indulgência e tem presente esta sentença do Cristo: —Atire-lhe a primeira pedra aquele que se achar sem pecado.

Não se compraz em rebuscar os defeitos alheios, tampouco em evidenciá-los. Se a isso se vê obrigado, procura sempre o bem que possa atenuar o mal.

Estuda suas próprias imperfeições e trabalha incessantemente em combatê-las. Todos os esforços emprega para poder dizer, no dia seguinte, que alguma coisa traz em si de melhor do que na véspera.

Não procura dar valor ao seu espírito, nem aos seus talentos, a expensas de outrem; aproveita, ao revés, todas as ocasiões para fazer ressaltar o que seja proveitoso aos outros...

... Usa, mas não abusa dos bens que lhe são concedidos, porque sabe que é um depósito de que terá de prestar contas e que o mais prejudicial emprego que lhe pode dar é o de aplicá-lo à satisfação de suas paixões...

...Finalmente, o homem de bem respeita todos os direitos que aos seus semelhantes dão as leis da Natureza, como quer que sejam respeitados os seus... 

Raramente se pode desenhar um ser humano pleno, conforme o notável educador lionês o fez, como notável psicólogo não acadêmico, mas Espírito incomum que conseguiu a individuação, tornando a sua existência um mundo luminoso para todos quantos se lhe acercaram, permanecendo a claridade dos seus ensinamentos como diretriz de libertação de consciências e de perfeita identificação dos mitos na realidade do ser, assim como o perfeito equilíbrio na vivência de inúmeros arquétipos, proporcionando sabedoria e paz. 


Joanna de Ângelis













(1) Samádi (em sânscrito: समाधि, transl. samādhi; samyag, "correto" + ādhi, "contemplação") pode ser traduzido por "meditação completa".


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