sábado, 20 de novembro de 2021

Léon Denis - Livro O Mundo Invisível e a Guerra - Cap. V - A justiça divina e a atual guerra




Léon Denis - Livro O Mundo Invisível e a Guerra - Cap. V


A justiça divina e a atual guerra

 
14 de Julho de 1915

Há um ano que sobre a França caem às provações de uma guerra sem precedentes. Um véu de tristeza e de luto estende-se sobre os nossos pais e muitos irmãos nossos choram por entes queridos.

A vista de tantos males, é mister volver os pensamentos para os princípios eternos que regem as almas e as coisas. Somente no Espiritismo acharemos a solução dos múltiplos problemas dite o drama atual apresenta: nele é que léus. Buscaremos as consolações capazes de mitigar a nossa dor.

Perturbados pelos acontecimentos que se dão, vários amigos me perguntaram: Porque permitem Deus tantos crimes, tantas calamidades?

Antes de tudo, Deus respeita a liberdade humana, pois que é o instrumento de todo progresso e a condição essencial de nossa responsabilidade moral. Sem liberdade, sem livre arbítrio, não existiria nem bem nem mal e como conseqüência não poderia haver progresso. E o principio de liberdade que constituem ao mesmo tempo a prova e a grandeza do homem, pois lhe confere o poder de escolher e de operar; é a fonte dos esplendores Moraes para quem está resolvido a engrandecer se. Não se tem visto, na presente guerra, uns descerem abaixo do bruto e outros, pela dedicação e, pelo sacrifício, atingirem o sublime?

Sabemos que, para os espíritos inferiores como os que, em maioria, povoam a terra, o mal é a resultante inevitável da liberdade. Mas, do mal praticada sabe Deus, em sua sabedoria profunda e infinita, tirar proveito para a humanidade. Colocado fora do tempo, por isto mesmo ele assiste ao decorrer dos séculos, ao passo que, uma nossa existência efêmera, tem dificuldade de abranger o encadeamento das causas e seus efeitos. Contudo, cedo ou tarde. Soará indubitavelmente a hora da justiça eterna. Sucede que ás vezes os  homens, esquecendo-se das leis divinas e do objetivo da vida, resvalam no declive do sensualismo e se chafurdam na matéria. Então, tudo o que era beleza da alma se encobre, desaparece, para dar lugar ao egoísmo, à corrupção, aos desregramentos de toda espécie. O que se verificava de muito tempo entre nós. A maior parte dos nossos contemporâneos já não tinham outro ideal senão a riqueza e os prazeres. O alcoolismo, a devassidão havia secado as fontes da vida. Para tantos excessos só restava um remédio: o sofrimento! As paixões más, sabemo-lo, desprendem fluidos que se acumulam pouco a pouco para se transformarem em borrascas e tempestades. (Dai a atual guerra).

Não faltaram, entretanto, avisos; mas os homens perseveraram surdos ás vozes do céu. Deus deixou que ela estalasse, porque sabe ser a dor o único meio eficaz para fazer voltar o homem a vistas mais sãs, a sentimentos mais generosos. Contudo, sofreu o furor do inimigo. Apesar do talento de organização e de um meticuloso preparo, a Alemanha foi detida na execução de seus planos. Sua feroz crueldade, sua desmedida ambição levantaram contra ela os poderes celestes. Depois do lento trabalho de desagregação do antimilitarismo, a Vitória do Marne e o entusiasmo das nossas tropas só podem ser explicados pela intervenção das forças invisíveis. Orar, essas forças estão sempre em ação, e eis porque, Apesar dos sombrios prognósticos do presente, conservamos, inteira a nossa confiança no porvir.

Do ponto de vista material, podia Deus impedir a guerra, porém do ponto de vista moral, não o podia, visto exigir uma de suas leis supremas que todos nós, indivíduos e coletividades, suportemos as conseqüências de nossas ações. São culpadas, em graus diversos, as nações empenhadas na presente luta. A Alemanha. Pelo seu insensato orgulho, seu culto da força bruta, seu desprezo do direito, suas mentiras e crimes, levantou contra si as forças vingadoras. O desmedido orgulho produz sempre a queda e a ruína. Foi a sorte de Napoleão; será a de Guilherme II. São tremendas as responsabilidades deste ultimo, pois o seu gesto não provoca somente hecatombes sem iguais na Historia; poderia também fazer perder a Europa o cetro da civilização. Ele conseguiu Por muito tempo, iludir a opinião: não sucedera mesmo à justiça eterna.

Quanto a França, nos dissemos, a leviandade, a imprevidência, o amor infrene dos gozos haviam de atraiu fatalmente sobre ela duras provações. Notemos foi no dia seguinte ao de um processo em que a podridão nacional se patenteava em plena luz, que rebentou a guerra. O que entre nós de pior havia não eram os nossos defeitos, era antes esse estado de consciência que não mais distingue o bem do mal. E a pior das condições Moraes. Os laços da família se tinham afrouxado de tal modo que se considerava o filho como uma carga. Por isso, o despovoamento, resultado de nossos vícios, nos colocou enfraquecidos diminuídos, ante um adversário temível. A alma francesa, porem, conservava imensos recursos. Desse banho de sangue e lagrimas ela ponde sair retemperada, regenerada.

Perante a justiça divina, não são somente estas duas nações que se acham carregadas de pesadas dividas. Entre os males que assinalamos, há uns que se estendem a toda a Europa. Por toda parte se nos deparam homens semelhantes aos que encontramos em torno de nós, cuja consciência morreu e que fizeram do bem-estar o fim exclusivo da existência, como certos políticos e homens de estado que tiveram a pretensão de presidir aos destinos de nosso pais.

Para reagir contra essas enfermidades da consciência e esse baixo materialismo, permitiu Deus que as calamidades se revestissem de caráter geral. Se tivessem sido apenas parciais, uns teriam assistido indiferentes aos sofrimentos dos outros. Para arrancar as almas ao letargo moral, a profunda imersão na matéria, era necessário esse raio que abala a sociedade a os alicerces. Ser-nos-á suficiente a terrível lição que nos é dada Se devesse permanecer vã, se devessem persistir em nós as causas morais de decadência e de ruínas, seus efeitos continuariam a se produzir e a guerra reapareceria com seu cortejo de males.

 E mister, pois, que, passada a tormenta, a vida nacional recomece em bases Moraes e que a alma humana aprenda a se desapegar dos bens materiais, a lhe compreender o nenhum valor. Sem o que, todos os sofrimentos terão sido estéreis e a nossa bela juventude, ceifada sem proveito para a França.

Conseguir-se-á algum dia abolir, apagar os ódios que separam os povo?

Os socialistas o tentaram, mas a sua propaganda internacionalista não teve outro resultado senão a mais estrondosa derrota. Os nobres e inúteis protestos dos pacifistas, seus apelos á arbitragem não nos parecem mais, diante do presente conflito, do que pueris ilusões. Ao sopro de um vento de tempestade, as nações se atiram umas contra as outras sem pensar em recorrer ao tribunal de Haya.

As religiões se mostram não menos impotentes: dois monarcas cristãos ou que na conta de cristãos eram tidos, ou pelo menos místicos e devotos, desencadearam todas as calamidades presentes. O próprio papa não logrou encontrar a expressão forte que convinha para estigmatizar atrocidades germânicas. 

Para remediar aos nossos males, seria preciso a renovação completa da educação, um despertar da consciência profunda; cumpriria ensinar a todos, desde a infância, as grandes leis do destino com os deveres e as responsabilidades que a elas se prendem; seria preciso que todos, cedo, ficassem compenetrados de que todas as nossas ações recaem fatalmente sobre nós com suas conseqüências boas ou más, felizes ou funestas, como a pedra lançada ao ar torna a cair ao solo. Em uma palavra, cumpre dar as almas alimento mais substancial e mais vivificante do que com que as alimentaram desde muitos séculos e que atinge a falência intelectual e moral que presenciamos com tristeza. Mas, enquanto o ensino escolar e religioso deixarem o homem na ignorância do verdadeiro fim da existência e da grande lei da evolução que regula a vida através de suas fases sucessivas e renascentes, a sociedade ficará entregue ás paixões más, á devassidão, e a humanidade será dilacerada por violentas convulsões.

Seria ocasião de ensinar ao homem a conhecer-se e a dirigir as forças que nele existem.

Se ele soubesse que todos os seus pensamentos, ações, movimentos hostis, egoístas ou invejosos, contribuem para aumentar os poderes maus que pairam sobre nós, alimentam as guerras e precipitam as catástrofes, mais
cuidado teria no seu modo de proceder e assim se atenuaram muitos males.

Só o Espiritismo poderia ministrar esse ensino; infelizmente, sua falta de organização lhe tira a maior parte dos recursos. Resta a iniciativa individual. Ela muito pode, na esfera restrita de sua ação. Todos os espíritas têm por dever difundir em torno de si a luz das verdades eternas e o balsamo das consolações celestes, tão necessários nas Horas de provações que atravessamos.

No meio da procela, a voz dos poderes invisíveis se ergue para dirigir um apelo supremo á França, á humanidade. Se não for ouvido esse apelo, se não provocar o despertar das consciências, se persistir a nossa sociedade nos vícios, no cepticismo, na corrupção, a era dolorosa se prolongará ou se renovará.

Mas o espetáculo das virtudes heroicas decorrentes da guerra nos conforta, enche-nos de esperança, de confiança no futuro de nossa terra que apraz-nos ver nele o ponto de partida de uma re. Surgimento intelectual e moral, a origem de uma corrente de idéias assaz poderosa para varrer os miasmas políticos e estabelecer o regimes que as circunstancias exigem. Então, do caos dos acontecimentos, surgirá uma França nova, mais digna e capaz de grandes obras.

A alma viva da França liberta-te das pesadas influencias materiais, que te detêm o surto e sufocam as aspirações de teu gênio! Neste, dia - 14 de julho -  ouvem a sinfonia que se ergue de todos os pontos do território nacional: vozes elos sinos que se escapam em ondas sonoras de todos os campanários, vozes das antigas cidades e dos burgos tranquilos, vozes da terra e do espaço que te chamam e te convidam a retomar tua marcha, tua ascensão na luz.

Soldados que, na linha de frente, opondes ao inimigo a trincheira de vossos peitos e de vossos valentes corações, sois a carne de nossa carne, o sangre de nosso sangue, a força e a esperança de nossa raça. As irradiações de nossos pensamentos e de nossas vontades dirigem-se a vós, para vos animar na luta ardente que prosseguis.

Ouvi, vós também, a harmonia que, neste dia, sobe das planícies, dos vales e dos bosques, das cidades populosas e dos campos recolhidos, unidos aos toques estridentes do clarim e aos acordes vibrantes das Marselhesas! E a voz da pátria. Ela vos diz.

Velai e lutai. Combateis pelo que neste mundo há de mais sagrado, por esse principio de liberdade que Deus colocou no homem e que ele próprio respeita, a liberdade de pensar e de obrar sem ter que prestar contas ao estrangeiro.

Combateis pela conservação do patrimônio que nos legaram os séculos, pela casa em que nascestes, pelo cemitério em que jazem nossos antepassados, pelos campos que nos alimentaram, por todos os tesouros de arte e de belezas acumulados pelo trabalho lento das gerações em nossas bibliotecas, museus e catedrais. Combateis para conservar a nossa língua, esse falar tão meigo que o mundo inteiro considera como a mais nítida e mais clara expressão do pensamento humano. Defendeis o lar da família, onde gosta de repousar vosso espírito e vossa alma; os berços de vossos filhos e os túmulos de vossos Pais!

Soldados, vós vos engrandecestes no ponto de vista terreno. Pela vossa firmeza na provação, pelo vosso heroísmo nos combates, levantastes aos olhos do mundo o prestigio da França, tornastes mais brilhante aureola de gloria que lhe orna a fronte. E mister, agora, aspirar ao céu; cumpre erguer os pensamentos para Deus, fonte de toda força e de toda a vida!

Não basta, para vencer, armas aperfeiçoadas e poderoso instrumental material. E necessário também o ideal e a disciplina; é preciso, nas almas, a confiança em um futuro infinito, a fé esclarecida, a certeza de que aos destinos de todos nos preside uma justiça infalível.

Ficai de sobre aviso com os negadores de verdades evidentes, com os que vos dizem que a morte é o fim de tudo, que o ser perece completamente, que os esforços, as lutas, os sofrimentos só têm por sanção o nada. 

Aprendei a orar antes da batalha, a implorar os socorros do alto. Abrindo-lhes os vossos corações, toar mais intensos, mais poderosos.

Desconfiai dos que vos dizem: não há fronteiras, a pátria é apenas uma. Palavra, todos os povos são irmãos. Reims, Soissons, Arras é tantas outras cidades podem responder eloquentemente a essas teorias.

Não foi dessa maneira que nossos pais constituíram a França através dos séculos, que tornaram grande, forte e respeitada.

Cada povo tem seu talento particular e para o manifestar precisa da independência. Dessa diversidade, desses contrastes mesmos é que se origina a emulação, que nascem o progresso e a harmonia.

Soldados ouviram a sinfonia que se eleva das planícies, dos vales e dos bosques, mesclada aos rumores das cidades, aos cânticos patrióticos e ás fanfarras belicosas. Das florestas da Argonne ás gargantas dos Pirineus, das margens floridas da Côte d'Azur aos vergeis da Turena e ás penedias da Normandia, dos promontórios bretões batidos pelas ondas aos Alpes majestosos, a grande voz da França entoa seu hino eterno!

Mais alto ainda se ergue a sua prece, a prece dos vivos e dos mortos, a prece de um povo que não quer parecer e que, na aflição, se volta para Deus, pede socorro, para salvar a independência e conservar intactas a gloria e grandeza!


Léon Denis










domingo, 14 de novembro de 2021

Bezerra de Menezes - Livro Encontros no Tempo - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 15 - Em torno do livro




Bezerra de Menezes - Livro Encontros no Tempo - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 15


Em torno do livro


O livro que instrui e consola, é uma fonte do Céu, transitando na Terra.


Bezerra de Menezes








Fonte: Bíblia do Caminho † Testamento Xavieriano

Emmanuel - Livro Irmão - Chico Xavier - Cap. 12 - O Reino de Deus está próximo




Emmanuel - Livro Irmão - Chico Xavier - Cap. 12


O Reino de Deus está próximo


Muitas vezes, disse-nos o Senhor: — “O Reino de Deus está próximo.” 

E até hoje milhares de criaturas aguardam-lhe a vinda, através de espetaculosos eventos exteriores.

Muitos esperam-no, por intermédio de cataclismos inomináveis e mentalizam telas fantasmagóricas, incompatíveis com a Divina Misericórdia que nos preside os destinos…

Trovões ribombando no firmamento… Maremotos e terremotos… Raios destruidores a se derramarem do céu…

Multidões amotinadas promovendo devastações e ruínas… Fluidos comburentes na atmosfera, transformando-a em fogo devorador… Bombas fulminantes aniquilando nações inteiras…

E contam, quase sempre, com o absurdo e com o fantástico, para que se sintam no portal da grande transformação.

Sem dúvida que semelhantes flagelos podem sobrevir a qualquer momento na experiência das criaturas e no campo da natureza, contudo, longe de significarem o Reino Divino apenas revelam imperativos de nova luta e com serviço mais áspero para quantos se enfileiram nos quadros evolutivos da Humanidade.

O Reino de Deus está próximo, sim, mas, antes de tudo, em nossa capacidade de construí-lo por dentro de nós, através do Céu que possamos oferecer à alma do próximo.

Atendamos ao cumprimento do dever que a vida nos atribui, colaborando quanto possível pela vitória do bem a atender o amor que o Mestre nos legou e alcançaremos, com a urgência possível, o clima celestial para nós e para os outros.

É por isso que Jesus igualmente foi positivo e justo quando afirmou: “Quando se vos disser o Reino de Deus permanece ali ou acolá não acrediteis, porque, em verdade, o Reino de Deus está dentro de vós.”  


Emmanuel









André Luiz - Livro Nosso Livro - Espíritos Diversos / Chico Xavier – 1ª Parte, Cap. 7 - Pequeno curso de vigilância




André Luiz - Livro Nosso Livro - Espíritos Diversos / Chico Xavier – 1ª Parte, Cap. 7


Pequeno curso de vigilância


Diante do mal, santifica teus olhos.

Perante o bem, liberta a palavra.

Ante a ignorância, usa o entendimento.

Com os superiores, vigia teus modos.

Com os subordinados, guarda os ouvidos.

Na alegria, exerce a temperatura.

Na dor, aprende a lição.

Na abastança, não te esqueças de dar.

Na escassez, não olvides o esforço próprio.

Na festa, evita os lugares destacados.

No círculo do sofrimento, estende mãos fraternas.

Em negócios do mundo, repara os teus meios.

Nos interesses da alma, não desdenhes a própria renúncia.

No trabalho, observa o tempo.

Na prece, vigia a atitude.

Na estrada, ajuda ao companheiro.

Na bênção, não te esqueças dos outros.

Em público, retifica o temperamento.

Em família, preserva a língua.

Quando sozinho, vigia o pensamento.

Cada estrela possui brilho peculiar.

Cada flor tem diverso perfume.

Cada criatura humana, centro de soberana inteligência, emite raios vivos dos sentimentos e propósitos que ambienta e reproduz, na intimidade de si mesma.

Em razão disso, ao discípulo do Evangelho se pede vigilância, não somente para dissolver a tentação de nossa própria inferioridade, mas também para que sejamos lâmpadas ativas da Luz Imortal.


André Luiz









Emmanuel - Livro Renúncia - Chico Xavier - 2ª Parte - Cap. 3 - Testemunhos de Fé




Emmanuel - Livro Renúncia - Chico Xavier - 2ª Parte - Cap. 3


Testemunhos de Fé


Impressionado com a argumentação do velho Gordon e cedendo à insistência da família, Cirilo Davenport havia desposado a prima, em segundas núpcias, entre cariciosas alegrias dos amigos e afeiçoados da Nova Irlanda, passando a residir em companhia de Jaques, que assim o exigira, visando a alguma consolação no deserto da sua viuvez. Breve, o nascimento de Beatriz vinha trazer um laço mais forte ao casal, mas o filho de Samuel jamais encontrara a emoção de ventura haurida no primeiro matrimônio. Parecia-lhe ter a alma mutilada, que o lugar de Madalena era impreenchível. Fugia instintivamente do lar, entregando-se a trabalho incessante. Por vezes, singular estranheza se apossava dele, ao atentar nas atitudes afetivas de Susana, sem eco no seu espírito. O coração palpitava-lhe de sentimentalismo ardente, reconhecia que nada perdera quanto à possibilidade de amar, e, contudo, parecia que somente a primeira esposa era a dona da chave de penetração no seu mundo íntimo. O ambiente doméstico, por mais que ela se esforçasse, reservava-lhe sempre penosas surpresas. A disposição dos objetos provocava censuras, os pratos nunca estavam a seu gosto. Continuamente insaciado, insatisfeito, de quando em quando impunha-se a intervenção conciliadora de Jaques, para que os atritos não degenerassem em conflito. Depois de longas e acrimoniosas altercações, Susana recolhia-se ao quarto, chorosa e desesperada, enquanto o marido se retirava a um canto da varanda, distraindo-se com a fumaça de grande cachimbo, e pensando consigo mesmo: — “No tempo de Madalena, não era assim…” 

Dada a sua constante aplicação ao trabalho, conseguira angariar fortuna sólida e invejável situação na colônia; no entanto, intraduzível tristeza lhe pairava invariavelmente no semblante. Apenas a filha, pela profunda afinidade espiritual manifestada, conseguira atenuar os sofrimentos que o atormentavam. Desde que Beatriz atingira os cinco anos, estabelecera-se entre pai e filha um apego cada vez mais forte. A menina parecia singularmente distanciada da genitora, que, em vão, se esforçava por insinuar-se à sua estima. As ansiedades e dedicações de Susana se tornavam inúteis. A atitude paternal de Cirilo plasmando a alma da filhinha, absolutamente de acordo com os seus pensamentos, dificultava a atuação materna. Sem jamais conseguir uma harmonia perfeita com a segunda esposa, o filho de Samuel parecia vingar-se do destino, subtraindo a pequenina à sua influência e dando ensejo a que Beatriz se desenvolvesse entre caprichos de toda sorte. Em breve tempo Susana não tinha nenhuma autoridade sobre a filha, que só obedecia ao pai. 

No íntimo, a prima de Cirilo sentia-se qual ré, que, não obstante resguardada da justiça humana, resgatava duramente o crime praticado. Não encontrara a felicidade esperada em seu criminoso sonho. Os momentos raros de alegria conjugal eram pagos multiplicadamente em angústias martirizantes, pelo que costumava comparar sua ventura a uma gota de vinho numa taça de fel. Além do mais, os remorsos perseguiam-na, implacáveis. Se encontrava um doente, recordava-se de Madalena; se entrava num cemitério, surgia-lhe o espectro da vítima. Quando alguém se referia a júbilos domésticos, ela sentia o amargor das suas experiências; se as amigas comentavam as esperanças da prole, lembrava a filha de D. Inácio e sentia mais vivo o aguilhão da consciência.

Tamanha era a desdita do casal, que um padre da colônia lhe recomendou mais atenção para o culto doméstico do Evangelho. Duas vezes por semana, reunia-se a pequena família para leitura e comentário das lições do Cristo. Jaques, porém, era talvez o único que se aproveitava legitimamente dos ensinos de cada noite. Susana via em cada palavra uma acusação, furtando-se ao aproveitamento. Cirilo considerava as sentenças evangélicas como simples fórmulas convencionais da religião, sem sentido lógico para a vida prática, e a pequena Beatriz ouvia a leitura e interpretação do avô com o devido respeito, sem nada assimilar ao espírito infantil. O velho professor de Blois, todavia, não desanimava.

Quando a pequena manifestou os primeiros sintomas da enfermidade nervosa que a acabrunhava, os pais, como loucos, deliberaram transferir-se temporariamente ao Velho Mundo, em busca de recursos médicos. Debalde Susana insistiu para se fixarem na Inglaterra. Cirilo foi inflexível. Ficariam em França. Uma vez forçado a viver na Europa, preferia Paris, onde se sentia identificado com as suas antigas recordações. Aí poderia cuidar da saúde da filha e orar no túmulo da primeira esposa. E não houve como demove-lo dessa resolução.

Assim, regressou ao Velho Continente o reduzido grupo familiar, sem prazo prefixado de regresso, sendo que Cirilo, aproveitando a oportunidade, poderia centralizar a representação de vasta zona do Connecticut,  †  para o comércio do fumo, florentíssimo então.

Perdurava a mesma angustiosa situação para os Davenport, em Paris, quando Alcíone lhes entrou em casa. Casa rica de recursos financeiros, mas pobre de alegria e de paz.

Jaques e o sobrinho exultavam com a chegada da jovem, tão parecida com a morta inesquecível e pelas suas maneiras carinhosas e cativantes. Beatriz parecia encontrar em sua companhia o medicamento indispensável. As longas conversações com a governanta desvelada pouco a pouco lhe modificavam as atitudes. Susana, entretanto, teve agravado o seu íntimo mal-estar com a presença de Alcíone. Não conseguia sofrear a onda de ciúme e egoísmo que a empolgava. Muitas circunstâncias cooperavam para isso. Não tolerava a menina simples e amável, pelos seus traços idênticos aos da rival que eliminara do seu caminho. Além de tudo, aquelas atenções que Cirilo lhe dispensava, doíam-lhe penosamente no coração inculto. Complicando a questão, o velho pai, bem como a filhinha, adoravam a jovem serva, manifestando-lhe extremo carinho. Debalde procurava um pretexto para despedi-la. A moça estava sempre calma e disposta a ceder aos seus caprichos. Aquela suave humildade causava-lhe irritação. Por mais que elevasse a voz, em ordens intempestivas, Alcíone tratava-a respeitosamente, em atitude de nobre serenidade. A princípio, acrescentou-lhe outras ocupações, além dos deveres de governanta e preceptora. A jovem era obrigada a tratar de todos os demais serviços leves da casa, inclusive a costura. Observando, todavia, que a moça a tudo atendia primorosamente, Susana chamou-a certa vez:

— Alcíone!

— Senhora!…

— Hoje é necessário que substituas a lavadeira, que se encontra doente.

— Sim, senhora.

E num momento desdobrava-se em atividades no tanque espaçoso, esforçando-se por cumprir perfeitamente a tarefa insólita. Entretanto, vendo-a entregue a tal mister, não se conformou a pequena Beatriz, que, depois de um olhar reprovativo à genitora, correu ao pai, pedindo-lhe providências.

Cirilo atendeu de pronto. Vendo a governanta da filhinha azafamada na lavandaria, começou a altercar com a esposa, recriminando-a com aspereza. Beatriz, agarrada a ele, reforçava-lhe a censura. Susana justificava-se. Não poderia atender ao ritmo doméstico, exautorada nas suas determinações. O marido, porém, não lhe aceitava as alegações, secundado por Beatriz, que acusava a genitora de perseguir Alcíone com os serviços mais grosseiros. A filha de Madalena trabalhava, cabisbaixa e humilde, mas, quando viu a dona da casa em pranto convulsivo, exasperada com as censuras que lhe eram dirigidas acremente, adiantou-se com delicadeza e acentuou:

— Sr. Davenport, espero que me desculpe a intromissão na conversa, mas pode crer que a pequena Beatriz está enganada. D. Susana não me mandou substituir a lavadeira, fui eu mesma que, sabendo que a lavadeira adoeceu, ofereci minha cooperação no tanque, para aliviar os muitos serviços domésticos.

— Ah! sim — disse Cirilo, algo desapontado.

— O senhor não se preocupe — concluiu Alcíone —, eu estou bastante habituada a estes trabalhos.

Essas palavras eram ditas com tanta sinceridade e boa vontade que o chefe da família regressou tranquilamente às suas atividades, enquanto a esposa olhava para a governanta sem disfarçar a surpresa. Beatriz, muito modificada em sua primeira atitude de revolta contra a decisão materna, aproximou-se da jovem, tentando ajudá-la. Muito afetuosamente, contemplava Alcíone, seduzida pela sua bondade, como a lhe pedir explicações. A filha de Madalena percebeu-lhe o desejo e falou:

— Então, Beatriz, consideras a limpeza da roupa como serviço pesado? Não penses assim. Deve ser muito sagrado, para nós todos, o asseio das coisas caseiras.

— Mas há criadas para isso, explicou a menina procurando justificar-se.

— No entanto, devemos estar habilitadas para qualquer trabalho digno. Se todas as servas adoecessem, haveríamos de vestir roupa suja? Não admitirás isso, por certo. Além do mais, cuidar da roupa que nos faz tanto bem, deve constituir motivo de satisfação sincera.

A menina, muito sensível, estimava deveras a governanta, mas objetou:

— No entanto, sempre ouvi dizer que cada serviçal deve estar no seu lugar.

— E não erras, pensando assim, mas essa verdade não impede o dever de ampliarmos nossas experiências em todo e qualquer trabalho honesto. Não estimas tanto as lições de Jesus? Pois no Cristo encontramos o verdadeiro ânimo de trabalho. O Mestre Divino nunca se ausentou do lugar sublime que lhe compete na Criação e, no entanto, carpintejou na modesta oficina de Nazaré; exegeta da Lei, perante os doutores de Jerusalém, serviu o vinho da amizade nas bodas de Caná; médico da sogra de São Pedro, enfermeiro dos paralíticos, guia dos cegos, amigo das crianças, mas também lacaio dos discípulos, quando lhes lavou os pés, no cenáculo. E nada obstante o contraste e a diversidade de tantas tarefas, Jesus não deixou de ser o nosso Salvador, em todos os momentos.

A filhinha de Susana, entre admirada e comovida, observou:

— Tudo isso é verdade… Como não pude compreender antes?

E começou a ajudar no trabalho do tanque.

Esses pequeninos incidentes domésticos começaram a impressionar profundamente a segunda esposa de Cirilo. De que fonte poderia Alcíone haurir tanta compreensão e tamanha força? Alcíone estava sempre pronta a lhe atender as menores exigências, sem modificar a atitude de serenidade e dedicação. Chamada aos próprios misteres da cozinha, desincumbiu-se dos deveres que lhe eram confiados, a contento geral.

Decorrido quase um ano, Susana adoeceu gravemente. A filha de Madalena consagrou-lhe o máximo de seus carinhos. Nessa ocasião, justamente em face dos sofrimentos que a martirizavam, foi que ela se rendeu à bondade da serva, tornando-se-lhe desvelada amiga. A residência de Cirilo experimentava profundas transformações. O chefe da família, bem como Jaques, insistiam para que a jovem se transferisse definitivamente para o palacete da Cité, mas Alcíone alegava que a mãe era paralítica, que tinha um irmão adotivo necessitado da sua assistência, e um tutor muito amigo que se abeirava da morte.

Inúmeras vezes, a filha de Madalena Vilamil era obrigada a desviar, delicadamente, o desejo de Susana e da filha, de lhe visitarem a genitora enferma.

— Mais tarde, senhora Davenport, estaremos preparados para recebe-la; por enquanto, sou eu quem lhe pede para não ir. Quero ter a satisfação de apresentá-la à mamãe quando ela puder sentir o prazer de melhoras mais positivas.

E Susana justificava-lhe a solicitação.

A modificação de Beatriz trouxera grande paz ao coração paterno; Cirilo não cabia em si de contentamento, em lhe observando a jovialidade e a saúde. Nunca poderia explicar o fenômeno afetivo que com ele se passava, mas, era tal a estima e admiração que tinha pela moça, que, no íntimo, não sabia a qual das duas queria com mais ternura. Jamais confiara a quem quer que fosse as suas recônditas impressões, mas desde que Alcíone lhe entrou em casa, começara a sentir uma serenidade desconhecida. Ela lhe parecia assim como alguma coisa da morta inolvidável. Por vezes, quando a governanta acompanhava a família ao cemitério dos Inocentes, tinha ímpetos de afagá-la paternalmente, enxugando-lhe as lágrimas copiosas. Em tais ocasiões, ela recordava os sofrimentos de cada uma das personagens do drama doloroso e desfazia-se em lágrimas. A família Davenport levava tudo à conta de sentimentalismo, temperamento hipersensível, e as suas atitudes passavam despercebidas, sem mais comentários.

Às quartas e domingos, praticavam, na intimidade, o culto doméstico do Evangelho.

Num sábado, à refeição, foi Jaques a lembrar:

— Alcíone, amanhã faremos nosso estudo e meditação do Novo Testamento e receberíamos, com prazer, a sua cooperação.

— Ganharei muito em vos ouvir — acentuou placidamente.

O alvitre do amorável velhinho mereceu aplauso geral. Cirilo fez ver que seria muito interessante ouvir a governanta de Beatriz no comentário das lições de Jesus. Alcíone esquivava-se às provas de apreço, com extrema humildade. Viria, a fim de aprender, exclamava bondosamente.

Na tarde seguinte, reunidos em torno da grande mesa aristocrática, o pai de Susana explicou, atencioso:

— Há algum tempo, minha filha — dirigia-se a Alcíone com muito carinho —, aconselhados por um sacerdote americano, deliberamos fundar nossa igreja lareira, por considerar que a família é o nosso primeiro santuário.

— Resolução louvável — disse a filha de Madalena, entre a ternura e o respeito.  — Minha mãe também sempre me disse que o lar é o nosso templo divino.

Magnetizado pela doçura das suas palavras, Cirilo Davenport, ansioso de alcançar a fé que lhe suavizasse as lutas da vida, perguntou:

— Não discordo, Alcíone, desse conceito, mas, já o tenho discutido muitas vezes com meu tio. Por que entreter o culto evangélico no lar, quando temos numerosas igrejas? Só aqui no centro contamos mais de vinte. E os outros bairros de Paris? E as instituições religiosas? Por que esta diversidade de cultos se os fins são os mesmos? Não seria mais justo reservar as possibilidades de devoção para os ofícios religiosos de caráter público?

O filho de Samuel assim se manifestava porque nunca pudera compreender a utilidade prática da igreja doméstica. A seu ver, os textos evangélicos constituíam material de análise privativa dos padres, e chegava quase a considerar inútil a leitura isolada das anotações apostólicas. Alcíone, atenta e prazerosa, respondeu:

— Neste assunto, Sr. Davenport, como não se trata de opinião nossa, pessoal, mas de ensinos do Mestre, peço-vos relevar a minha franqueza. Tenho a convicção de que, em toda parte, estamos na casa de Nosso Pai e estou certa de que virá o dia em que tomaremos por templo de Deus o mundo inteiro. Mas, em nossa atual condição, não nos custa reconhecer o proveito das igrejas e o caráter sagrado do culto doméstico, no que concerne aos ensinos de Jesus. Também no conforto de nossas casas há sempre ótima disposição para atender aos nossos familiares enfermos, mas isso não proscreve a necessidade dos hospitais. Os pais amorosos ensinam sempre os filhinhos; mas nem por isso deixam de ser úteis as escolas. 

Em matéria de fé, nossa estranheza radica na viciação dos deveres religiosos. Costumamos atribuir ao sacerdote o que nos compete realizar. Um padre poderá funcionar como excelente preceptor, indicando os caminhos retos, mas nós transitamos para Deus e é imprescindível não parar. O ministro da fé atenderá ao conjunto, mas, para que as alegrias cristãs vibrem perfeitamente em nossa alma, não há que olvidar a necessidade de estabelecer o culto do Senhor, dentro de nós mesmos. 

Assim entrevisto, o lar é o templo mais nobre, porque oferece oportunidade diária de esforço e adoração. Cada criatura de nossa convivência, sob o mesmo teto, representa um altar para o culto da bondade, do carinho, da compreensão. Cada borrasca doméstica é um ensejo para a distribuição de esperança e fé. Cada dia afanoso enseja possibilidades de testemunhar confiança em Deus. Enquanto isso ocorre na intimidade, as instituições religiosas podem funcionar como hospitais dos Espíritos combalidos, como celeiros de esfomeados, como fontes de informações sublimes aos ignorantes. Qualquer doente esperará a volta da saúde, mas colimando reintegrar-se no plano de esforço diuturno; o faminto se alimentará de modo a prosseguir no seu caminho; e o ignorante será instruído para que se habilite a aplicar o que aprendeu. Por esse prisma, podemos aquilatar o valor das pequenas realizações domésticas. Acredito que o lar seja o ninho onde o espírito humano cria em si mesmo, com o auxílio do Pai Celestial, as asas da sabedoria e do amor, com que há de conhecer, mais tarde, as sendas divinas do Universo.

A reduzida assembleia não podia ocultar a enorme expressão de assombro. Os Davenport estavam longe de presumir, naquela jovem de atitudes tão tímidas, tais provas de conhecimento espiritual. Pela primeira vez, Cirilo ouvia um argumento que o satisfazia plenamente. Com estupefação geral, Beatriz quebrou o silêncio, dirigindo-se ao avô nestes termos:

— Não te disse, vovô, que ela sabe muita coisa nova sobre Jesus?

— Não diga isso, Beatriz — murmurou Alcíone toda humilde  —, eu sou apenas uma curiosa das lições evangélicas. Como tínhamos em Ávila a nossa pequena igreja doméstica, a funcionar quase todas as noites, familiarizei-me com o assunto.

— Sem dúvida — replicou Cirilo, impressionado — as tuas explicações, Alcíone, falam profundamente à alma. Os negócios materiais da minha vida sempre me criaram certa atmosfera de incompreensão para as lições do Cristo. Sempre considerei o lar fortaleza da nossa felicidade na Terra, mas nunca como base para enriquecimento de dons espirituais.

— Isso é natural — prosseguiu a moça enternecida —, as forças que nos encarceram o coração nas grades de uns tantos problemas temporais costumam ser violentas e rudes. Entretanto, Deus não se cansa de nos atrair aos seus braços misericordiosos. As circunstâncias mínimas da existência humana induzem a pensar nisso. Logo que abrimos os olhos neste mundo, encontramos pais carinhosos que nos encaminham para o bem; nossa infância, quase sempre, está cercada de sábias advertências dos preceptores, que nos orientam para a verdade. Uma ideia lógica surge, fatalmente, em nosso cérebro: tantos mensageiros de bondade viriam a nossa estrada, tão só para informar-nos o coração, sem utilidades práticas para a nossa própria edificação? Muita gente, nos mais variados credos, depõe nas mãos de seus ministros o que lhes cumpre fazer, mas isso é um erro grave. Deus nos chama pela maneira como Jesus procurou os discípulos. Para realizar a união divina é preciso marchar, na “terra” de nós mesmos, não obstante os maus dias e as noites tenebrosas!…

Cirilo não podia disfarçar a admiração. Agora, sentia descortinar-se aos olhos d’alma um mundo deslumbrante, que até então não conseguira surpreender. As palavras da jovem modificavam-lhe, num minuto, todas as presunções exegéticas. Começava a sentir que a vida, sob qualquer de seus aspectos, revestia-se da mais profunda significação. No seu conceito, o homem deixava de ser um exilado em míseras trevas, que se encontraria mais tarde com Deus, ou com a punição eterna. A Terra figurava-se-lhe escola, onde cada homem recebia uma divina oportunidade, entre milhões de possibilidades sublimes e infinitas.

— No templo de pregações públicas — concluía a filha de Madalena, sem afetação — poderemos receber as inspirações externas, ao passo que no culto íntimo entramos em contato com o próprio eu, recebendo divinas mensagens na consciência. Os diversos ministros religiosos têm fórmulas convencionais; nós, como sacerdotes da própria iluminação, temos as expressões espontâneas da vida.

Jaques engolfara-se em prolongado silêncio, como se estivesse chegando a um mundo novo de preciosas revelações. E Susana, vendo o companheiro quase extático, considerou, eminentemente comovida:

— Em verdade, Alcíone, teus raciocínios abrem novos horizontes ao nosso espírito. Sempre estudamos o Evangelho, mas, de minha parte, devo confessar a dificuldade em me adaptar aos ensinamentos… Sinto-me tão pecadora, tão humana, que cada lição me soa como rigorosa censura. Por que experimento, assim, as santas narrativas como dilacerantes acusações?

A jovem fitou-a com olhos muito lúcidos e esclareceu:

— Tais impressões devem ser passageiras. O Evangelho é mensagem de salvação, nunca de tormento. Na realidade, conhecemos a extensão da nossa indigência e o grau das nossas fraquezas; mas a misericórdia divina restaria imota sem as nossas quedas e dolorosas necessidades. O Cristianismo jamais será doutrina de regras implacáveis, mas sim a história e a exemplificação das almas transformadas com Jesus, para glória de Deus. Se as lições do Mestre apenas nos oferecessem motivos de condenação, onde estariam as grandes figuras evangélicas de Maria Madalena, Paulo de Tarso e tantas outras? No entanto, a pecadora transformada foi a mensageira da ressurreição; o inflexível e cruel perseguidor convertido recebeu de Jesus a missão de iluminar o gentilismo.

Susana seguia a exposição, de olhos muito brilhantes. Nunca sentira tamanha impressão de bem-estar, no trato das leituras santas. Nas confissões, que nunca chegara a conjugar com a grande falta da sua vida, nada recebia dos sacerdotes, senão amargas recriminações. Os padres lhe ministravam penitências, mas nunca lhe ofereciam roteiro seguro. Sempre dera ao altar valiosas contribuições monetárias, mas agora chegava à conclusão de que era indispensável cooperar, com todas as energias espirituais, para o próprio aperfeiçoamento.

— Tuas interpretações — asseverou a senhora Davenport — são altamente consoladoras. De uns tempos para cá, venho refletindo amargurada na inutilidade de muitos ensinamentos recebidos na infância. Por que terei aprendido a virtude e não a cultivo a rigor? E, com tais dúvidas íntimas, passo a analisar as criaturas com profundo pessimismo, chegando a crer que a humanidade, de modo geral, vive negando Jesus a cada momento.

Alcíone, que prestava especial atenção aos conceitos expendidos, obtemperou:

— Por infelicidade nossa é, de fato, enorme a bagagem das nossas fraquezas neste mundo; mas, se o Pai não desanimou e nos oferece, diariamente, ensejo de nos levantarmos para o seu amor, por que haveremos de viver em descrença contumaz? Viver sem esperança é o pior de todos os males. Quando nos preocupamos sinceramente com a iluminação espiritual, compreendemos a significação de todas as coisas. A própria miséria humana tem o seu lugar e a sua expressão educativa. Antes de tudo, é essencial refletirmos na extensão da bondade do Mestre. Lembremos que Pedro o negou três vezes, na hora mais cruel; que Tomé duvidou da sua sabedoria e misericordioso poder, e, nem um nem outro foi jamais expulso da sua divina presença. O mundo tem inúmeros criminosos, exploradores, ociosos e devassos, mas tudo isso deve ser examinado por um prisma diferente. O pecado é moléstia do Espírito. No excesso da alimentação, na falta de higiene, no desregramento dos sentidos, o corpo sofre desequilíbrios que podem ser fatais. O mesmo se dá com a alma, quando não sabemos nortear os desejos, santificar as aspirações, vigiar os pensamentos. Sempre acreditei que as enfermidades dessa natureza são as mais perigosas, porque exigem remédio de mais dolorosa aplicação.

Susana estava eminentemente surpreendida. Aquelas explicações, tão simples, tocavam-lhe o coração nas fibras mais sensíveis. Somente agora identificava a sua moléstia espiritual. Nos dias mais tristes da vida conjugal, entre remorsos e revoltas, muita vez indagara de si mesma os motivos que a levaram a desventurar a filha de D. Inácio. Nas horas acerbas, chegava à penosa conclusão de que um verdadeiro amor jamais sacrifica alguém nos seus impulsos. Em troca da sua violência, nada adquirira senão remorsos para si e insaciedade para o companheiro. Não teria sido melhor cooperar para a felicidade inalterável do primo com Madalena? Se lhe não fosse possível a edificação do lar, alcançaria, pelo menos, a tranquilidade de consciência. Entretanto, como dizia Alcíone, deixara-se empolgar pelo desregramento dos desejos, desviara-se dos sentimentos justos e caíra em terrível enfermidade espiritual. Enfim, comovera-se em demasia, fora de seus hábitos, tinha os olhos molhados de pranto.

Cirilo, por sua vez, muitíssimo impressionado com os esclarecimentos, imitava o velho tio, parecendo mergulhado em profundo cismar.

Rompendo o forçado silêncio, o velho educador de Blois tomou a palavra e disse com brandura:

— As interpretações da menina são novas e confortadoras para nós. Pelo visto, muito nos poderá ela auxiliar no referente aos sagrados ensinos. Não será melhor que todos nós a ouçamos, hoje, no culto? Dessarte, saberemos como funcionava a sua igreja doméstica, em Ávila, e poderemos enriquecer as nossas experiências.

Alcíone sempre humilde e sincera, tentou esquivar-se, mas Cirilo e Susana reforçaram a proposta do bondoso ancião e não houve como eximir-se à delicada incumbência.

Jaques entregou-lhe o volume do Novo Testamento, mas, antes de o abrir, ela explicou:

— Em nosso grupo familiar de Castela-a-Velha, meu tutor [Padre Damiano] dizia que o estudo das letras santas é comparável a uma pesca de luzes celestiais. O rio da vida, afirmava, está sempre correndo e é indispensável energia serena e vontade ardente, a fim de mergulharmos na coleta dos valores divinos. 

Enquanto o homem se mantiver tíbio, desencantado, indiferente ou pessimista, dificilmente poderá encontrar no Evangelho algo mais que os sublimes apelos do Senhor. Em tais condições negativas, recebemos os convites do Cristo, mas frequentemente ficamos ignorando a tarefa; somos chamados ao banquete da verdade e da luz, mas comparecemos como comensais bisonhos, mal sabendo como iniciar o suculento repasto. 

O ensinamento de Jesus é vibração e vida, e como o estudo mais simples demanda o esforço de comparação, não podemos versar o Evangelho sem esse esforço. Muitos procuram, nestas páginas, somente motivos de consolação, esquecendo a essência do ensino. Mas seria um contrassenso vir o Mestre a nós, dos espaços gloriosos da imortalidade, apenas para nos adoçar o coração onusto de perversidades e fraquezas humanas. 

Jesus é a fonte do conforto e da doçura supremos. Isso é inegável. No entanto, reconhecemos que uma criança, que somente receba consolações e mimos paternos, arrisca-se a envenenar o coração para sempre, na sede insaciável dos caprichos. Não; não devemos acreditar que o Cristo só haja trazido ao mundo a palavra revigoradora e afetuosa, senão também um roteiro de trabalho, que é preciso conhecer e seguir, em que pesem às maiores dificuldades. Para isso, é indispensável tomar os nossos sentimentos e raciocínios como campo de observação e experiência, trabalhando diariamente com Jesus na construção da arca íntima da nossa fé. Naturalmente que essa edificação não prescinde do material adequado, constituído pelas virtudes e conhecimentos nobres que adquirimos no curso da vida. São esses os elementos que procuramos, em nossa pesca das luzes celestiais, para que, recebendo as consolações de Jesus, sejamos igualmente operosos trabalhadores.

A pequena assembleia entreolhava-se grandemente surpresa. Cada qual parecia mais deslumbrado com o comentário da jovem intérprete.

— Em Ávila — continuou ela com a maior simplicidade — nunca nos reunimos no culto doméstico sem suplicar o socorro da inspiração divina. Padre Damiano esclarecia sempre que Deus não poderia ter enviado as “línguas de fogo” da sua sabedoria apenas aos doze discípulos de Jesus. As chamas do seu amor infinito aquecem a humanidade inteira. Basta lembrar que se os sinais do Céu foram vistos somente sobre os Apóstolos, no dia inolvidável do Pentecostes, ninguém poderá contestar a extensão dos benefícios à multidão que os ouvia, exultante de júbilo. A revelação dirigia-se a todos, o contentamento celestial foi distribuído sem exclusividade. Baseado nisso, meu tutor asseverava que devemos fazer o estudo evangélico não apenas com as nossas malícias e necessidades humanas, mas com o auxílio silencioso e invisível do Céu!…

Após estas considerações, que despertaram fundo enternecimento nos ouvintes, orou em voz alta, suplicando a Jesus lhes concedesse o benefício de suas inspirações sacrossantas, para que se integrassem no conhecimento da sua vontade. Feita a prece comovedora, tomou do livro e perguntou:

— Sr. Jaques, gostaria me dissésseis qual o método aqui adotado para a leitura.

— Costumamos ler cinco a dez versículos de cada vez, comentando-os em seguida. Presentemente estamos na segunda epístola de São Paulo a Timóteo, tendo ficado, na última reunião, no segundo capítulo, versículo 10.

— Lá na Espanha — explicou a jovem delicadamente — líamos apenas um versículo de cada vez e esse mesmo, não raro, fornecia cabedal de exame e iluminação para outras noites de estudo. Chegamos à conclusão de que o Evangelho, em sua expressão total, é um vasto caminho ascensional, cujo fim não poderemos atingir, legitimamente, sem conhecimento e aplicação de todos os detalhes. Muitos estudiosos presumem haver alcançado o termo da lição do Mestre, com uma simples leitura vagamente raciocinada. Isso, contudo, é erro grave. A mensagem do Cristo precisa ser conhecida, meditada, sentida e vivida. Nesta ordem de aquisições, não basta estar informado. Um preceptor do mundo nos ensinará a ler; o Mestre, porém, nos ensina a proceder, tornando-se-nos, portanto, indispensável a cada passo da existência. Eis por que, excetuados os versículos de saudação apostólica, qualquer dos demais conterá ensinamentos grandiosos e imorredouros, que impende conhecer e empregar, a benefício próprio.

— Será então mais útil — advertiu Cirilo sumamente interessado — assim também procedermos.

Alcíone procurou a epístola indicada e leu o versículo 11 do segundo capítulo:

— “Palavra fiel é esta: que se morrermos com ele, também com ele viveremos.”

Franca a palavra, todos, exceto a pequena Beatriz, que se mantinha calada, opinavam que os homens apegados a Jesus, no fim da vida, podiam morrer em paz, certos de que o Senhor lhes abriria, além-túmulo, as portas gloriosas da redenção.

Depois de ouvir a opinião de cada um em particular, Alcíone explanou:

— Certo, a esperança em Cristo será sempre um refúgio indispensável na hora da partida, mas a advertência apostólica nos convoca a ilações mais graves. Lembremos os perversos que aceitam Jesus na hora extrema. Muita gente, portadora de crimes inomináveis, faz ato de fé no leito de morte. Enquanto têm saúde e mocidade, vivem ao léu, entre caprichos e desregramentos; mas tanto que o corpo quebrantado lhes dá ideias de morte, alarmam-se e desfazem-se em rogativas a Deus. 

Podem, criaturas que tais, esperar de pronto, imediata, a glória do Cristo? E os que se sacrificam nas aras do dever enquanto lhes resta uma partícula de forças? Claudicaria a justiça, em suma, se afinal a virtude se confundisse com o crime, a verdade com a mentira, o labor com a ociosidade. Certo que será sempre útil recorrer à misericórdia do Senhor, ainda que manchados até aos cabelos, bem como acreditar que, para toda enfermidade, haverá remédio adequado. 

Penso, porém, que a assertiva de Paulo não se refere ao termo da vida corporal, fenômeno natural e apanágio de justos e de injustos, de piedosos e de ímpios. Bafejado pela divina inspiração, o amigo do gentilismo aludiu, por certo, à morte da “criatura velha”, que está dentro de todos nós. É a personalidade egoística e má, que trazemos conosco e precisamos combater a cada dia, para que possamos viver em Cristo. A existência terrestre é um aprendizado em que nos consumimos devagarinho, de modo a atingir a plenitude do Mestre. No plano da própria materialidade, poderemos observar esse imperativo da lei. 

A infância, a mocidade e a decrepitude, em seu aspecto de transitoriedade não podem representar a vida. São fases de luta, demonstrações da sagrada oportunidade concedida por Deus para nos expurgarmos da grosseria dos sentimentos, da crosta de imperfeição. Costuma-se dizer que a velhice é um ataúde de fantasias mortas, mas isso apenas se verifica com os que não souberam ou não quiseram “morrer” com o Cristo para alcançar a fonte eterna da sua vida gloriosa. Quem se valeu da possibilidade divina tão somente para cultivar ilusões balofas, não poderá encontrar mais que o fantasma dos seus enganos caprichosos. A criatura, porém, que caminhou de olhos fixos em Jesus, em todos os pormenores da tarefa, essa, naturalmente, conquistou o segredo de viver triunfante acima de quaisquer circunstâncias adversas. Jesus palpita em seus atos, palavras e pensamentos. Seu coração, na pobreza ou na abastança, será como flor de luz, aberta ao sol da vida eterna!…

Cada qual dos ouvintes revelava jubiloso interesse. A explanação de Alcíone lhes tocara o coração. Quando a filha de Madalena fez uma pausa mais longa, Cirilo Davenport acentuou:

— Agora, sim! Encontrei um modo prático de compreender. O tesouro evangélico, interpretado desta maneira, dá ideia de preciosa mina de valores espirituais. Quanto mais nos aprofundamos em meditação, esforço e boa vontade, mais filões auríferos irão surgindo aos nossos olhos.

Alcíone sorriu satisfeita. Ninguém, ali, poderia entender a vibração do seu contentamento; mas a verdade é que, considerando a confissão paterna, transbordava de alegria íntima.

— O senhor comparou muito bem — disse. — As palavras do Mestre estão cheias de apelos maravilhosos, de socorros divinos, de mensagens do Céu. Basta que nos esforcemos por lhe ouvir a voz e receber os dons.

Jaques continuava muito impressionado.

— Senhorita — indagou —, vê-se que a sua educação religiosa é muito diferente da que conhecíamos até agora. Encontro-me a termo de uma existência consagrada ao ensino, e, apesar da minha paixão pelos autores antigos, nunca pude sair do círculo do meu tempo, circunscrevendo o serviço da fé aos atos de adoração. Jamais pude compreender a igreja como oficina de trabalho ativo, nem o culto doméstico do Evangelho como escola de preparação para o esforço terrestre; no entanto, por suas observações sinto que há métodos de interpretação que não conheço, e posso declarar, pelo que ouvi da sua inteligência moça, que estes processos de aprendizado são sedutores. Desejaria saber se isso é comum nas escolas e lares de Espanha.

A jovem sorriu agradecida e esclareceu:

— Estas luzes, Sr. Jaques, eu as recebi do meu tutor, em nossas reuniões familiares de Ávila; mas devo acrescentar que esta orientação não está generalizada na pátria de minha mãe, mormente em Castela-a-Velha, onde o Padre Damiano foi ameaçado duas vezes pelas perseguições do Santo Ofício, por haver tentado chamar a atenção do povo para este sistema de estudo e exegese.

— Que horror! — exclamou Cirilo num gesto significativo — é quase inacreditável que a Igreja mantenha tal instituição.

— Não podemos inculpar a Igreja — retificou Alcíone, carinhosamente —; o Cristianismo, em tempo algum, autorizaria institutos dessa natureza. Devemo-los aos maus padres, cujo coração ainda não pôde compreender a suprema grandeza do Cristo.

O velho educador, sinceramente impressionado com as definições ouvidas, tornou a perguntar:

— Onde poderei avistar-me, mais amiúde, com o Padre Damiano?

Alcíone esboçou um sorriso melancólico e respondeu:

— Nosso velho amigo está à morte, na paróquia de São Jaques do Passo Alto. Quase diariamente, à noite, vou recolher seus últimos pensamentos. Não obstante o combate há muitos meses travado com a terrível enfermidade, vê-se que ele está nas últimas. Com a sua morte próxima, perderei neste mundo um segundo pai.

A notícia ecoou lugubremente na sala. Observando a nuvem de tristeza que sombreava o semblante de Alcíone, todos entraram em profundo silêncio. Foi aí que a jovem lembrou:

— Agora, agradeçamos a Deus o socorro que nos foi enviado através da inspiração. As mais das vezes, temos a certeza de que devemos, em grande parte, o pão material ao próprio esforço, mas o mesmo não se dá com relação ao alimento espiritual. Este nos vem sempre de Deus, do seu paterno coração, que nos cumula de infinitos recursos. Temos na Terra a lei da necessidade, mas o Senhor tem a do suprimento. Agradeçamos a sua misericórdia e apliquemos as dádivas recebidas, porque novos elementos fluirão, para nossa alma, dos seus inexauríveis celeiros de sabedoria e abundância.

Encerrada a reunião familiar com uma prece de reconhecimento, Alcíone retirou-se, deixando à família Davenport singulares impressões.

Ela parecia fortemente inspirada, quando dizia que Damiano estava às portas da morte. Logo que chegou à casinha do burgo de São Marcelo, encontrou a notícia alarmante. Um portador ali estivera para comunicar aos Vilamil que o velho sacerdote agonizava. As frequentes hemoptises da noite lhe haviam aniquilado as últimas forças. Madalena, não obstante a atrofia dolorosa das pernas, suplicou à filha que a levasse em sua companhia, num carro mais espaçoso, a fim de ver o abnegado amigo, pela última vez. A filha ouviu-a, angustiada, e dentro de poucos minutos, à boca da noite, um carro vagaroso saía de São Marcelo para a residência do padre Amâncio. Alcíone recomendara muito cuidado ao cocheiro. Chegando ao destino, Madalena Vilamil conseguiu descer com grande sacrifício. Dois homens trouxeram larga poltrona para conduzir a enferma ao quarto do moribundo. Alcíone auxiliava o transporte da genitora, com infinito carinho.

Lá chegadas, o agonizante pareceu reanimar-se.

Robbie e a irmã adotiva aproximaram-se respeitosos e pediram-lhe a bênção, enquanto a senhora Vilamil, pedindo que a poltrona fosse deposta à cabeceira do moribundo, tomou-lhe a destra, muito pálida, em confortadora saudação fraternal.

Damiano tinha os olhos profundamente lúcidos e brilhantes, mas na feição cadavérica pairava uma expressão de agonia dolorosa.

— Que é isso, padre?… — murmurou acabrunhada.

Ele fixou nela o olhar enternecido e respondeu, com voz quase sussurrante:

— A moléstia incurável, Madalena, é um escoadouro bendito de nossas imperfeições. Que seria de minh’alma se a moléstia do peito não me ajudasse a expungir os maus pensamentos? Quantos bens ficarei devendo à solidão e ao sofrimento? O Senhor, que mos deu, lhes conhece o inestimável valor. Eu, que não chorava há muitos anos, alcancei novamente o benefício das lágrimas… Muitas vezes ensinei do púlpito, mas o leito me reservava lições muito maiores que as dos livros…

A filha de D. Inácio quis responder, testemunhar seu reconhecimento imorredouro, dizer dos votos que fazia a Deus pelo seu restabelecimento, mas, na sua angústia, não encontrava palavras com que traduzir o seu pesar. Não conseguia, porém, reter as lágrimas que lhe rolavam, abundantes, dos olhos.

O moribundo prosseguiu após uma pausa mais longa:

— O catre amigo e silencioso me trouxe a recordação de todos os júbilos e dores que ficaram no passado distante… Sem conseguir adaptar-me a esta vida de Paris, tenho vivido quase que absolutamente das nossas velhas lembranças de Espanha. Tenho grande saudade da nossa vida tranquila, em Ávila; dos fraternos serões da Chácara; dos colegas da igreja de São Vicente… mas estou certo, Madalena, de que a vida não acaba com o corpo e convencido de que Deus nos reunirá, em outra parte, onde não haja prantos nem morte… Há diversas noites que sou visitado pela sombra dos entes amados que me antecederam no túmulo… Ainda hoje, depois da última hemorragia, enxerguei o vulto de minha mãe a dizer-me palavras de consolação e coragem… Algumas crianças amadas, lá da nossa igreja antiga de Castela, falecidas há muito tempo, me vieram ver à noite passada e me abraçaram com carinho… Amâncio pensa que estou sendo vítima de pesadelos, dado o meu esgotamento físico, mas eu não posso concordar…

A senhora Vilamil, aproveitando uma pausa, fez um esforço e obtemperou carinhosamente:

— Não deveis pensar nisso. Lembrai-vos de que precisamos do vosso amparo paternal. Deus vos restituirá a saúde, para que nossa alegria não desapareça para sempre. Recordai nossa viagem à América…

Damiano procurou, a custo, o olhar de Alcíone, dando-lhe a entender o cuidado com que se deviam conduzir naquelas circunstâncias e acentuou:

— Pede a Deus pela minha saúde espiritual, porque seria impossível restaurar a do corpo, minha filha! A morte não é uma separação eterna. Estou certo de que Jesus me permitirá voltar a teu lado, se minha vinda for útil… Quanto à viagem ao Novo Continente, não te preocupes. Alcíone está muito jovem e Robbie quase que ainda não passa de um menino… Poderás ser muito feliz na companhia deles, aqui mesmo…

Madalena enxugou as lágrimas, murmurando:

— Tendes razão, padre! Também eu estou chumbada ao leito para meditações necessárias. Minhas pernas paralíticas nunca me permitirão tão longa viagem!…

— Não te lastimes, porém, pensando nesses obstáculos, certa de que a misericórdia do Todo Poderoso nunca andou atrasada. Quando nos parece tarda, é que algum motivo existe, que não podemos compreender de pronto…

A filha de D. Inácio continuava chorando enternecidamente. Em seguida, o velho sacerdote, dando a perceber que desejava mudar de assunto, fez um sinal chamando Robbie à cabeceira. O menino atendeu, compungido.

— Por que não trouxeste o violino? — indagou com interesse.

— Alcíone me disse que o senhor estava mais doente — esclareceu respeitoso.

— Isso quer dizer, meu filho, que preciso mais de te ouvir.


40 A irmã adotiva aproximou-se e interrogou com ternura filial:

— Desejáveis ouvir alguma coisa, padre?

— Sim, Alcíone. Se fosse possível, a Ladainha de Nossa Senhora, que cantaste na primeira missa de Carlos, na igreja de São Vicente. Recordas? Desse modo lembraríamos o amigo distante, bem como o recanto de Castela, onde fomos tão felizes!…

— Poderei pedir a padre Amâncio que nos empreste o violino do coro de São Jaques  — exclamou a jovem esforçando-se por conter as lágrimas.

— Seria um grande consolo!

Ouvido um dos três clérigos que se conservavam no quarto, prontificou-se a buscar o instrumento.

Daí a minutos, a voz cristalina de Alcíone enchia o aposento, arrebatando os ouvintes a um plano de misteriosa luz espiritual. Robbie acompanhava o canto, com extrema felicidade em cada nota de sublime harmonia. O moribundo parecia extático. A ladainha, muito antiga, abria-lhe novos horizontes de claridade maravilhosa. Madalena tinha um lenço colado aos olhos, enquanto o lacaio e os religiosos choravam comovidos.

Quando terminou, o agonizante chamou a jovem e lhe falou debilmente:

— Alcíone, Deus te abençoe por esta alegria…

Depois, contemplou a senhora Vilamil demoradamente, e, trocando com a moça significativos olhares, voltou a dizer:

— Faze pela paz espiritual de tua mãe tudo que possas! E se tiveres, algum dia, qualquer necessidade mais forte, uma dificuldade mais premente, lembra-te de Carlos, minha filha! Sei que não te encontras sozinha no mundo, mas não posso esquecer que acima de tudo devemos considerá-lo teu irmão!…

Surgindo a dispneia das horas derradeiras, Damiano não mais podia conversar senão por monossílabos. Após entendimento com a genitora, a jovem Vilamil acercou-se do moribundo, murmurando:

— Padre, levarei mamãe e Robbie de volta a São Marcelo, mas estarei novamente aqui, dentro em pouco, para ficar convosco!…

— Não te incomodes, nem deixes Madalena… por minha causa…

Mas, acompanhando os seus ao lar, Alcíone regressou sem demora, a fim de assistir o velho amigo, até ao fim.

As restantes horas da noite ele as passou em coma, assistido pelo afeto da filha de Cirilo, que lhe enxugava o suor álgido com extrema dedicação.

Quando a aurora se fazia anunciar em clarões muito rubros, o velho Damiano verteu a última lágrima e entregou a alma ao Criador.

Um emissário chegava, pela manhã, ao palacete da Cité, entregando uma carta da governanta de Beatriz, endereçada a Susana, em cujas linhas explicava a sua ausência ao trabalho.

A família Davenport comoveu-se. A tarde, uma carruagem elegante parava à porta do presbitério de São Jaques do Passo Alto. Dela desceram Jaques e Cirilo, que iam prestar afetuosa homenagem ao morto.

Impressionados com o abatimento da jovem, ambos se desdobraram em gentilezas e expressões confortadoras. Cirilo procurou o padre Amâncio e fez questão de pagar as despesas do enterramento, acrescentando generosa dádiva destinada ao lacaio que servira ao tutor de Alcíone.

A jovem agradeceu com lágrimas. Depois de uma hora consoladora, despediram-se atenciosos.

Ao crepúsculo, a filha de Madalena assistiu ao modesto funeral, de coração confrangido. Por muito tempo deixou-se ficar na silenciosa mansão dos mortos, em prece comovedora ao Altíssimo. Só tarde da noite, passos vacilantes, regressou ao lar, experimentando indefinível amargura.


Emmanuel





VÍDEO:

Espírito Emmanuel - Livro - Renúncia (Radionovela)
Paz e Amor




Renúncia é uma obra psicografada através da mediunidade de Francisco Cândido Xavier, ditada pelo espírito de Emmanuel. Sua primeira publicação foi no ano de 1944 pela Federação Espírita Brasileira.

Renúncia forma com os livros: Há Dois Mil Anos, Cinquenta Anos Depois, Paulo e Estevão e Ave, Cristo! a série de Romances Históricos, de Emmanuel. 

Renúncia encontra-se num espaço histórico deslocado dos demais livros da série, mas retratando o período conturbado que envolveu a instalação do Santo Ofício, a reforma protestante, as perseguições, a Companhia de Jesus. Neste romance, Emmanuel descreve a existência de Alcíone, Espírito que passa por uma encarnação de renúncias e dedicação a todos que a cercam, demonstrando heroísmo e lealdade, na frívola Paris do reinado de Luís XIV. Apresenta o sacrifício de amor desse abnegado Espírito, que volta à luta terrestre para estar com aquele ser por quem havia intercedido no plano Espiritual, propondo-se ajudá-lo nas provas, expiações e reparações da nova existência na Terra. O grande amor do passado, os acertos e desacertos desse grupo que reencarna em conjunto para novas conquistas espirituais e a dedicação amorosa da doce Alcíone servem de moldura para o desenrolar ágil e envolvente dessa trama, marcada, também, por sentimentos violentos.

Alcíone, que na erraticidade habitava um planeta na órbita da estrela Sírius, seria a reencarnação de Célia, da história narrada no livro Cinquenta Anos Depois, e cuja lenda formada em torno de sua vida é registrada na história de Santa Marina