segunda-feira, 24 de julho de 2023

Ermance Dufaux - Livro Reforma Íntima Sem Martírio - Wanderley Oliveira - Cap. 17 - Por Que Melindramos?



Ermance Dufaux - Livro Reforma Íntima Sem Martírio - Wanderley Oliveira - Cap. 17


Por Que Melindramos?


"Até mesmo as impaciências, que se originam de contrariedades muitas vezes pueris, decorrem da importância que cada um liga à sua personalidade, diante da qual entende que todos se devem dobrar." (O Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. 9 - Item 9)

Por que nos ofendemos? Por que temos tanta suscetibilidade em relação a tudo que nos cerca? Quais as razões de encolerizar-nos perante fatos desagradáveis?

Eis três perguntas para as quais devemos dirigir nossa meditação, caso queiramos entender o que se passa conosco nos desafios do progresso espiritual.

Iniciemos nossas ponderações conceituando a palavra ofensa. Existe a ofensa por razões naturais, provenientes do instinto de defesa e preservação. Por meio dessas agressões, recebemos da mente os sinais de alerta para avaliarmos com melhor exatidão a conveniência e o grau de perigo ou importância do que nos cerca. É natural nos ofendermos com palavrões que causam dor aos ouvidos sensíveis; é natural nos ofendermos ao ver dois seres humanos se agredir; é mais que justo que nos ofendamos e tenhamos raiva ao sermos assaltados em uma rua; seria muito natural nos ofendermos quando formos injustamente julgados pelas pessoas que nos conhecem. A ofensa tem sua faceta benéfica, porque não devemos aceitar tudo que acontece à nossa volta passivamente, sem uma reação que nos faça sentir lesados ou ameaçados. O objetivo desse sentimento será sempre o de nos colocar a pensar na elaboração de uma conduta ajustada à natureza das agressões que sofremos.

Contudo, larga diferença vai entre a ofensa natural e o melindre, que é a reação neurótica às ofensas. Melindre é o estado afetivo doentio de fragilidade, que dilata a proporção e a natureza das agressões que sofremos do meio. Pequenas atitudes ou delicadas situações são motivos suficientes para que o portador do melindre se agaste terrivelmente, fechando-­se em corrosivo sistema de mágoa e decepção com os fatos e as pessoas que lhe foram motivo de incômodos e contrariedade. Assim, aumenta a intensidade do fato e desgasta-­se afetivamente com imaginações febris sobre a natureza das ocorrências que o afetaram.

Sabemos que a mágoa é o peso energético nascido das ofensas transportadas conosco dia após dia, como fosse um colesterol da alma, causando-nos males no corpo e no Espírito. Sabemos, também, que a irritação é como uma dura martelada no sistema nervoso, levando-­nos ao estresse e à perda energética. Então, por que agasalhar semelhantes malefícios quando temos tanto esclarecimento?

Compreendamos algo sobre os mecanismos da ofensa e da cólera para avaliar as razões que nos inclinam para essa atitude de desamor e, fazendo assim, procuremos, igualmente, por meio do melhor entendimento, oferecer a nós mesmos o corretivo para os problemas de melindre e contrariedades do dia a dia.

Primeiramente, deixemos claro que na raiz do melindre e da ofensa está o orgulho. Vejamos o que nos diz o codificador a esse respeito: "Julgando-­se com direitos superiores, melindra-­se com o que quer que, a seu ver, constitua ofensa a seus direitos. A importância que, por orgulho, atribui à sua pessoa, naturalmente o torna egoísta" (1).

O que está por trás da grande maioria das ofensas humanas são as contrariedades, ou seja, tudo aquilo que não acontece como se gostaria que acontecesse. Contrariar, para a maioria das criaturas, significa ser contra aquilo que se espera, ser nocivo aos planos pessoais, ser prejudicial, ser desvantajoso. Nessa ótica, tudo aquilo que não ofereça alguma vantagem na nossa forma de conceber os benefícios da vida é algo inoportuno, indevido, que não deveria ter ocorrido, gerando reações no mundo íntimo, cujos reflexos poderão ser percebidos na criação de sentimentos de pessimismo, infelicidade, desapontamento, animosidade, tristeza e rancor.

Excetuando alguns casos de educação mal orientada na infância, esse vício de não ser contrariado foi adquirido pelo Espírito em suas diversas experiências reencarnatórias, nas quais teve todos os interesses pessoais atendidos a qualquer preço. É o velho hábito da satisfação plena dos desejos da personalidade que, dispondo de poder e recursos, não hesitou em colher sempre para si mesma os frutos dos bens divinos que lhe foram confiados nas anteriores experiências. Hoje, renasce em condições que limitam suas tendências de saciação egoísta, instaurando um delicadíssimo sistema de revolta silenciosa quando não consegue o atendimento de seus interesses, experimentando uma baixa tolerância a frustrações. Essa revolta é o movimento interior de repúdio da alma aos novos quadros da vida a que é lançada, nos quais é compelida, pela força das circunstancias, a aprender a obediência aos ditames da Lei Natural, nem sempre afinados com seus gostos e aspirações individuais. Esse é o preço justo que pagamos pelo costume de termos sido atendidos em tudo que queríamos no pretérito, quando deveríamos ter aproveitado as ocasiões de fartura e liberdade para sermos atendidos naquilo que fosse o melhor para todos.

Assim, a alma passa hoje por uma série de pequenas ou grandes situações na vida, ofendendo-se e irritando-se com quase todas, desde que contrariem seus interesses individualistas. Um singelo ato de esquecer um documento ou ainda o simples fato de não ser correspondido num pedido a um familiar, ou mesmo não ter sido escolhido para assumir a presidência da tarefa espírita, tudo é motivo para a irritação, o desgaste e a animosidade, podendo chegar às raias da ofensa, da mágoa e do desequilíbrio. O estado íntimo, nesse passo, reproduz a nítida sensação de que tudo e todos estão contra sua pessoa, e fatos corriqueiros podem se tornar grandes problemas, enquanto os grandes problemas podem se tornar tragédias lamentáveis...

Os prejuízos desse hábito não cessam com as contrariedades, porque não se consegue improvisar defesas para um condicionamento tão envelhecido de hora para outra. Uma faceta das mais comuns desse estado de suscetibilidade aos fatos da vida pode ser verificada na neurose de controle, que pode ser entendida como a atitude de tentar levar a vida de forma a não permitir nenhuma contrariedade, nenhuma decepção. Essa neurose pode ser considerada como uma maneira de se defender do vício de não ser contrariado.

Mas não para por aqui essa sequência de expiações na vida íntima. O esforço em controlar tudo para que as coisas aconteçam a gosto tem como principal consequência a preocupação. Preocupação é o resultado de quem quer ter domínio sobre tudo da sua existência. Surge inesperadamente ou por uma razão plausível, mas é, em muitas ocasiões, o resultado oneroso dessa necessidade de tomar conta de tudo para não acontecer o pior, o inesperado.

Classifiquemos com maleabilidade nas conceituações três espécies de dramas que vivem os contrariados:

- Contrariado crônico – é aquele que não aceitou o próprio ato de reencarnar, já trazendo impresso na aura o clima de sua insatisfação, que irá refletir em todas as suas realizações. Casos como esse tendem a transtornos de natureza mental.

- Colecionador de problemas – é aquele que traz, de outras vivências corporais, o vício da satisfação de interesses pessoais e que busca seu ajuste com os atuais quadros de limitação na reencarnação presente, desenvolvendo a preocupação com problemas reais e irreais em razão de tentar um controle sobre-­humano nos fatos naturais da existência.

- O adulto frustrado – é aquela criança que foi mal orientada, que teve quase todos os seus desejos e escolhas atendidos, criando ausência de limites e baixa resistência à frustração. Foi a criatura impedida pelos pais de se frustrar com os problemas próprios das crianças.

Em qualquer uma das situações citadas, o sentimento de ofensa será parte comum na vida dessas criaturas, podendo suscitar pequenas ocorrências de decepção rotineira ou ainda dramas dolorosos da psicopatia, conforme as tendências e os valores de cada Espírito. A psicopatologia do futuro verá na contrariedade uma grave doença mental e a etiologia de severos transtornos da alma.

O que importa a todos nós é o ingente trabalho de renovação no campo dos nossos interesses. Afeiçoar-­se com mais devoção a aceitar as vicissitudes da vida, com resignação e paciência, fazendo o melhor que pudermos a cada dia em busca da recuperação pessoal, otimismo ante os reveses, trabalho perante as perdas, confiança e boa convivência com amigos de ideal, serviço de amor ao próximo, instrução consoladora, fé no futuro e boa dose de humildade são as medicações para ofensas e ofendidos na doença do melindre.

Ofender-­nos é impulso natural em vista dos direcionamentos que criamos nas rotas do egoísmo. Contudo, Deus não criou um sistema de punições para seus filhos, e nos concede, a todo instante, o direito de perdoar. E, perdoar, acima de tudo, significa aprender a aceitar sua Vontade Sábia e Justa em favor de nossa paz, na construção de dias mais plenos em sintonia com os grandes interesses do Pai.


Ermance Dufaux









1. Allan Kardec, Obras Póstumas – primeira Parte - "O egoísmo e o Orgulho", p. 225 - 25ª edição - FEB.

Léon Denis - Livro Depois da Morte - Pág. 200/201 - Conclusão



Léon Denis - Livro Depois da Morte - Pág. 200/201

Conclusão



Vinde saciar-vos nesta fonte celeste, vós todos que sofreis, vós todos que tendes sede da verdade. Ela verterá em vossa alma o frescor e a regeneração. Vivificados por ela, sustentareis mais animadamente os combates da existência; sabereis viver e morrer dignamente.

Observai com assiduidade os fenômenos sobre os quais repousam estes ensinos, mas não façais deles um divertimento. Refleti que é muito sério o fato de nos comunicarmos com os mortos, de receber deles a solução dos grandes problemas. Considerai que esses fenômenos vão suscitar maior revolução moral do que as que têm sido registradas pela História, abrindo a todos os povos a perspectiva Ignorada das vidas futuras. Aquilo que, para milhares de gerações, para a imensa maioria dos homens que nos precederam tinha sido uma hipótese, torna-se, agora, uma realidade. Tal revelação tem direito à vossa atenção e ao vosso respeito. Utilizai-a somente com critério, para vosso bem e dos vossos semelhantes.

Nessas condições, os Espíritos elevados assistir-vos-ão; mas, se vos servirdes do Espiritismo para frivolidades, sabei que vos tomareis presa inevitável dos Espíritos enganadores, vítima dos seus embustes en das suas mistificações.

E tu, meu irmão, meu amigo, que recebeste estas verdades no teu coração e que lhes conheces o valor, permita-me um derradeiro apelo, uma última exortação.

Lembra-te de que a vida é curta. Enquanto ela durar, esforça-te para adquirir o que vieste procurar neste mundo: o verdadeiro aperfeiçoamento.

Possa teu ser espiritual daqui sair melhor e mais puro do que quando entrou! Acautela-te das armadilhas da carne; reflete que a Terra é um campo de batalha onde a alma é a todo momento assaltada pela matéria e pelos sentidos.

Luta corajosamente contra as paixões vis; luta pelo espírito e pelo coração; corrige teus defeitos, adoça teu caráter, fortifica tua vontade. Eleva-te, pelo pensamento, acima das vulgaridades terrestres; dilata as tuas aspirações sobre o céu luminoso.

Lembra-te de que tudo o que for material é efêmero. As gerações passam como vagas do mar, os impérios esboroam-se, os próprios mundos perecem, os sóis extinguem-se; tudo foge, tudo se dissipa. Mas há duas coisas que vem de Deus e que são imutáveis como Ele, duas coisas que resplandecem acima da miragem das glórias mundanas: são a Sabedoria e a Virtude.

Conquista-as por teus esforços e, alcançando-as, elevar-te-ás acima do que é passageiro e transitório, para só gozares o que é eterno.


Léon Denis 










Fonte: Depois da Morte - pdf

domingo, 23 de julho de 2023

São Luís - Revista Espírita - Jornal de estudos psicológicos - Allan Kardec - Maio - 1858 - O orgulho

 

São Luís - Revista Espírita - Jornal de estudos psicológicos - Allan Kardec - Maio - 1858


O orgulho 


Dissertação moral ditada por São Luís à Srta. Ermance Dufaux.

Um homem soberbo possuía algumas jeiras de boa terra. Sentia-se orgulhoso das pesadas espigas que cobriam o seu campo e lançava o olhar desdenhoso sobre o campo estéril do humilde. Esse levantava-se ao cantar do galo e ficava o dia todo curvado sobre o solo ingrato; recolhia pacientemente os seixos e ia atirá-los à beira do caminho; revolvia profundamente a terra e arrancava com dificuldade os espinheiros que a cobriam. Ora, seu suor fecundou o campo e ele colheu o melhor trigo.

Entretanto, o joio crescia no campo do homem soberbo e abafava o trigo, enquanto o dono se vangloriava de sua fecundidade e olhava com piedade os esforços silenciosos do humilde.

Em verdade vos digo que o orgulho é semelhante ao joio que afoga o bom grão. Aquele dentre vós que se julga mais que seu irmão e que se vangloria, é insensato. Sábio é o que trabalha por si mesmo, como o humilde em seu campo, sem se envaidecer de sua obra.

Havia um homem rico e poderoso que desfrutava o favor do prín­cipe. Morava em palácios e numerosos servos esforçavam-se por adivinhar-lhe os desejos.

Um dia em que suas matilhas acuavam um cervo nas profundezas da floresta, ele avistou um pobre lenhador vergando ao peso de um feixe de lenha. Chamou-o e lhe disse:

─ Vil escravo! Por que passas pelo caminho sem te inclinares perante mim? Sou igual ao Senhor: nos conselhos minha voz decide a paz e a guerra, e os grandes do reino curvam-se em minha presença. Saiba que sou sábio entre os sábios, poderoso entre os poderosos, grande entre os grandes e minha elevação é obra de minhas mãos.

─ “Senhor! ─ respondeu o pobre homem ─ temi que minha saudação humilde vos fosse uma ofensa. Sou pobre e o único bem que possuo são os meus braços, mas não desejo vossas grandezas enganosas. Durmo o meu sono e não temo, como vós, que o prazer do senhor me faça cair em minha obscuridade.

Ora, o príncipe entediou-se do orgulho da soberba. Os grandes humilhados ergueram-se contra ele, que foi precipitado do pináculo de seu poder, como uma folha seca que o vento varre do cume da montanha. Mas o humilde continuou pacificamente seu rude trabalho, sem preocupação pelo dia seguinte.

Soberbo, humilha-te, porque a mão do Senhor curvará o teu orgulho até a poeira!

Escuta! Nasceste onde te lançou a sorte; saíste do seio materno fraco e nu como o último dos homens. Por que levantas a fronte mais alto que os teus semelhantes, tu que como eles nasceste para a dor para a morte?

Escuta! Tuas riquezas e tuas grandezas, vaidades das vaidades, escaparão de tuas mãos quando vier o grande dia, como as águas inconstantes da torrente que o sol evapora. Não levarás de tuas riquezas mais que as tábuas do esquife, e os títulos gravados na lápide funerária serão palavras vazias de sentido.

Escuta! O cão do coveiro brincará com os teus ossos, e eles serão misturados aos do mendigo; a tua poeira confundir-se-á com a dele, porque um dia vós ambos sereis apenas pó. Então amaldiçoarás os dons que recebeste, quando vires o mendigo revestido de sua glória, e chorarás o teu orgulho.

Humilha-te, soberbo, porque a mão do Senhor curvará o teu orgulho até o pó.


─ Por que São Luís nos fala em parábolas?

─ O Espírito humano gosta do mistério. A lição se grava melhor no coração quando nós a procuramos.

─ Parece que hoje a lição nos deve ser dada de maneira mais direta, sem termos que recorrer à alegoria.

─ Encontrá-la-eis no desenvolvimento. Desejo ser lido, e a moral necessita de um disfarce sob a atração do prazer.


São Luís










(19 e 26 de Janeiro de 1858)

sábado, 22 de julho de 2023

Joanna de Ângelis - Livro Jesus e o Evangelho à Luz da Psicologia Profunda - Divaldo P. Franco - Cap. 4 - Diversidade de moradas



Joanna de Ângelis - Livro Jesus e o Evangelho à Luz da Psicologia Profunda - Divaldo P. Franco - Cap. 4


Diversidade de moradas 


"(...) Há muitas moradas na casa de meu Pai." João, 14:2 (Ev. Cap. III - Item 3)


A ingenuidade medieval explicava que as estrelas fulgurantes no Infinito eram lâmpadas mágicas para iluminarem a noite por misericórdia de Deus. O conceito geocêntrico do Universo expressava o limite imposto pelo grau de desenvolvimento cultural e intelectual dos seres ainda presos aos interesses da sobrevivência em ambiente físico, social, político e religioso hostil e castrador das expressões de liberdade, de conhecimento e de felicidade que sempre se encontram ínsitos nos seres humanos.

Os dogmas perversos naquela cultura ainda primitiva, na qual predominava a força do poder temporal, mesclado com o religioso disfarçado nas sombras coletivas dos dominadores, impediam a compreensão do ensinamento de Jesus que procedia de outras Esferas, portanto, de uma feliz morada que a mente humana de então não dispunha de meios para entender.

Vivendo níveis de consciência muito primitivos, em sono e com leves sonhos, não era possível alcançar outros degraus, em razão do conhecimento e do pensamento se deterem nos estágios primitivo e mitológico, que constituíram base para o estabelecimento de alguns princípios religiosos mais compatíveis com as necessidades existenciais, relacionando-os interpretativamente com as propostas morais e espirituais neotestamentárias.

Sem recursos para libertar o espírito que vivifica da letra que mata, os teólogos mantinham as mentes encarceradas na sujeição às palavras e aos decretos audaciosos de reis e papas dominadores, antes que aos nobres postulados libertadores da consciência livre de peias, conforme Jesus viera ensinar, estabelecendo o primado do Espírito como fundamental para o progresso da Humanidade.

A Terra, então, considerada como centro do Universo, era o núcleo fundamental do pensamento cultural e religioso, estabelecendo que o Reino dos Céus se desenhava em torno do globo como se fosse também um dos áulicos girando à sua volta, sempre acima, porque abaixo se encontrava o inferno de punição eterna, compatível com a sombra coletiva encarregada de coibir o desenvolvimento e o comportamento da sociedade.

O homem, escravo de outros homens, mesmo que vivendo em liberdade, encontrava-se-lhes submetido e servil, sem o direito de alcançar a própria identidade, confundida nos conflitos ancestrais que o inconsciente coletivo e individual liberava em contínua aflição.

A Terra, segundo a mentalidade religiosa daqueles dias, era um vale de lágrimas, um lugar de desterro, naturalmente para alguns - aqueles que eram submetidos indefensos - enquanto aqueloutros que assim se expressavam locupletavam-se nos gozos ou deixavam-se arrebatar pelos conflitos masoquistas em que se consumiam, perdidos nos transtornos emocionais e sexuais que os perturbavam. Tornavam-se cruéis, em consequência, impondo castrações dolorosas que ainda remanescem através dos tempos em inúmeras condutas individuais e de diferentes grupos socioculturais.

A cristologia em que se fundamentava a Igreja antiga, e ainda permanece, apesar das atuais conquistas indiscutíveis da astrofísica, considerando Jesus-Deus - em total embriaguez conceptual que se opõe à realidade de Jesus-Homem, Filho e não Pai, não se diluindo no mistério da Santíssima Trindade, próprio ao pensamento mítico ancestral -, considerava que essas moradas poderiam ser identificadas como o Paraíso, o Purgatório e o Inferno, para onde eram recambiadas as almas após a morte física de acordo com a sua fidelidade ou o não cumprimento dos postulados evangélicos.

A pobreza e a aridez desse pensamento fanático olvidavam ou condenavam todos os povos nos quais as propostas de Jesus não haviam chegado e onde, por sua vez, predominavam os excelentes ensinos também libertadores de Krishna, Buda, Lao-Tsé, Confúcio, Hermes Trismegisto e muitos outros missionários do Bem e do Amor, cujas vidas expressavam a grandiosa anterioridade de sua procedência. Seus ministérios eram significativos e prenunciavam o momento de Jesus, que lentamente se inscreveria nos tempos afora, ampliando aqueles ensinamentos que O precederam.

Na perspectiva da Psicologia Profunda, todos eles foram libertadores das sombras coletiva e individual, sulcando o solo do ego para deixar que desabrochasse o Self e todas as suas implicações na consciência geral.

Psicoterapeutas especiais preconizavam o amor e a sabedoria como métodos essenciais para a plenitude, embora sob diferentes colocações que, sem dúvida, levam à mesma unidade do pensamento condutor da Divindade.

Intuídos pela percepção extrassensorial, e alcançando o estágio numinoso, contribuíram decisivamente para o adiantamento espiritual de milhões de vidas que se encontravam na ignorância da realidade, e alteraram o comportamento geral, deixando marcas especiais de entendimento das Divinas Leis e da Regência do Cosmo.

Disciplinando a vontade mediante experiências psíquicas vivas e intercâmbio seguro com os Espíritos, alcançaram a Realidade e embriagaram-se de alegria no corpo, de que se utilizavam momentaneamente a fim de retornarem ao estado de plenitude definitiva que haviam antegozado.

Na meditação e na educação dos instintos conseguiram desprender-se parcialmente dos elos retentivos da matéria, mesmo enquanto a habitavam, trazendo das Esferas vivas por onde transitavam as mais belas lições de harmonia e de felicidade, que constituíam motivo e atração para o retorno após a execução dos compromissos vivenciados no mundo.

Jesus o sabia, e denominou-os como ovelhas que não pertencem a este rebanho, referindo-se aos presunçosos contemporâneos que se atribuíam a paternidade divina com desdém pelos demais povos, que certamente teriam outra ascendência, o que constitui um absurdo, partindo-se do pressuposto de que Deus é Pai e Criador de tudo e de todos.

A existência terrena deve ser vivenciada com prazer e emoção, em face da riqueza de experiências que oferece, auxiliando o Espírito a desenovelar-se das faixas inferiores das paixões. Não se trata do prazer que se afigura como vício, crime ou hediondez, mas da conduta daquele que o frui, não se deixando devorar pelo hedonismo imediatista, mas experienciando o júbilo dos gozos que estimulam ao avanço e compensam os cansaços e desaires dos empreendimentos humanos.

Jesus-Homem não apresentou métodos, técnicas, condutas especiais para conseguir-se o Reino. Ele é tudo isso, viveu todas essas expressões, apontando as muitas moradas que existem na Casa do Pai.

Referiu-se, indubitavelmente, aos mundos habitados que povoam o Universo, graças aos milhões de galáxias que surgem umas e se consomem outras absorvidas pelos buracos negros, exaltando a incomparável e insuperável glória da Criação.

Quanto mais primitivo o princípio espiritual, mais grosseiro é o mundo em que deve habitar, a fim de experimentar o desabrochar dos conteúdos psíquicos nele jacentes, que se vão desenvolvendo conforme os fatores mesológicos e circunstanciais, guiado pelo fatalismo da evolução que nele existe, ascendendo na escala da evolução e transferindo-se de um para outro mundo conforme a necessidade do seu progresso que jamais se encontra estanque.

Mundos, sim, existem, que podem ser considerados infernais, tendo-se em vista as condições de habitabilidade, para onde são recambiados os Espíritos calcetas e renitentes, que sintonizam com o seu psiquismo, ali depurando-se dos instintos mais asselvajados, porém, ascendendo depois a outras estâncias purgatoriais, menos severas e mais compatíveis com o programa de desenvolvimento espiritual até alcançar aqueles que são felizes, onde não mais existem dores nem vazios existenciais, infortúnios ou ambições inúteis.

O bem e o mal - essa dualidade luz e sombra - em que se debate o Espírito humano, representam o futuro e o passado de cada ser humano no trânsito evolutivo.

O primeiro, à luz da Psicologia Profunda, é o autoencontro, a liberação do lado escuro plenificado pelo conhecimento da verdade, enquanto o outro são as fixações do trânsito pelos instintos primários, que ainda vicejam nos sentimentos e na conduta, aguardando superação.

Examinando-se o planeta terrestre, onde se debatem as forças do bem e do mal, constatamos ser ele uma escola de provas e de depurações cujas lições de aprimoramento ocorrem mediante o império do sofrimento, mas que podem converter-se ao impositivo do amor em conquistas permanentes, felicitadoras.

Na razão direta em que o Self predomina sobre o ego, e as lições de Jesus são essenciais a essa mudança, a essa superação de paixões, menos materializado se torna o Espírito, que aprende a aspirar a mais altas especulações e conquistas ambicionando o Infinito.

Procedente de outra morada ditosa e superior à terrestre, denominada Reino dos Céus, Jesus-Homem, exemplo de amor e de abnegação, sem subterfúgios e com decisão, veio convidar as Suas criaturas a segui-lo, pois que, somente assim alcançariam Deus pelo conhecimento e pelo sentimento, integrando-se no psiquismo superior que d'Ele dimana.

Com toda justeza, portanto, considerando a ignorância humana, e elucidando quanto à necessidade da plenitude, explicitou que há muitas moradas na casa de meu Pai, em convite subliminar, ao mesmo tempo direto, para que todos se empenhassem por alcançá-las.


Joanna de Ângelis












Joanna de Ângelis - Livro Luz Viva - Marco Prisco / Joanna de Ângelis - Divaldo P. Franco - Cap. 2 - A felicidade possível



Joanna de Ângelis - Livro Luz Viva - Marco Prisco / Joanna de Ângelis - Divaldo P. Franco - Cap. 2


A felicidade possível


1018. Em que sentido se devem entender estas palavras do Cristo: Meu reino não é deste mundo?

"Respondendo assim, o Cristo falava em sentido figurado. Queria dizer que o seu reinado se exerce unicamente sobre os corações puros e desinteressados. Ele está onde quer que domine o amor do bem. Ávidos, porém, das coisas deste mundo e apegados aos bens da Terra, os homens com ele não estão." (LE)

Em tese geral, pode-se afirmar que a felicidade é uma utopia a cuja conquista as gerações se lançam sucessivamente, sem jamais lograrem  alcança-la. (François-Nicolas-Madeleine, cardeal Morlot, Paris, 1863  ESE - Cap. V, item 20)


O comportamento utilitarista estabeleceu, no gozo, a razão da vida humana.

Fundamentados na paixão narcisista e apoiados pelo egoísmo, os hedonistas de todos os tempos sustentaram a tese do prazer como a única portadora da realização plena da criatura.

Descendentes de Epicuro, promoveram a afirmação dos interesses imediatos, centralizando-os no prazer e na posse, como capazes de propiciar a felicidade, enquanto os discípulos de Diógenes, apoiados no comportamento cínico, ensinaram a indiferença pelos códigos da ética, das leis, da sociedade, numa alucinada colocação de liberdade, mediante a qual, abusiva, seria possível conseguir-se a felicidade.

Variando de escolas e mudando de roupagens literárias, a filosofia da felicidade tem sido um disparate constante, no báratro das humanas aspirações, graças à ótica infeliz dos que a consideram do ponto de vista meramente material.

Indiferente à posição epicuréia quanto à situação sustentada pelo hippieismo, a felicidade dispensa atavios e complexidades elaborados pelos pensadores que não lograram a própria realização.

Estes são detentores de poder e fortuna, não obstante atormentados e insatisfeitos.

Esses nada possuem e deambulam nas estradas ínvias do mundo, sem liberdade íntima nem paz, embora com movimentos e ações descomprometidos.

Aqueles cobiçam e lutam, triunfam, mas permanecem irritadiços e violentos.

A felicidade independe de posturas e situações, sendo um estado interior, resultante de largo trabalho de renovação moral e ação enobrecedora que se apoiam numa fé raciocinada, qual luz na sombra densa, apontando o rumo com segurança.

Examinada, apenas, do ponto de vista terreno, a felicidade, pelo breve trâmite carnal, não tem qualquer significado, permanecendo como capricho dos sentidos...

Somente quando o homem projeta o pensamento para a vida espiritual é que a felicidade adquire significado real e se corporifica.

Aprende a renunciar e a servir, substituindo os velhos padrões comportamentais e os clichês mentais cristalizados, por novos conceitos e atitudes, nos quais estrutura as aspirações e se emula à luta vitoriosa.

Ante a dor não se rebela; sob ofensas não se entibia; diante de incompreensões e necessidades, não desanima; nas circunstâncias desagradáveis e nas carências, não se revolta, superando os fatores negativos e permanecendo na paz da consciência reta e do coração tranquilo.

Abre-te ao amor, à ação da caridade, e a luz da felicidade clarear-te-á por dentro, propiciando-te realização plena.

Deixando entendido que, no mundo, o homem somente tem aflições, por ser a Terra uma escola de renovação, disciplina e progresso paulatino, portanto, onde não se pode, por enquanto, encontrar a felicidade, estabelecendo-se, porém, aí, as bases para conquista-la logo depois, além dos limites materiais, afirmou o Mestre:         

- O meu Reino não é deste mundo.

 
Joanna de Ângelis











Joanna de Ângelis - Livro Jesus e Vida - Divaldo P. Franco - Cap. 1 - A grande transição



Joanna de Ângelis - Livro Jesus e Vida - Divaldo P. Franco - Cap. 1


A grande transição


Opera-se, na Terra, neste largo período, a grande transição anunciada pelas Escrituras e confirmada pelo Espiritismo.

O planeta sofrido experimenta convulsões especiais, tanto na sua estrutura física e atmosférica, ajustando suas diversas camadas tectônicas, quanto na sua constituição moral.

Isto porque os Espíritos que o habitam, ainda estagiando em faixas de inferioridade, estão sendo substituídos por outros mais elevados que o impulsionarão pelas trilhas do progresso moral, dando lugar à uma Era Nova de paz e de felicidade.

Os Espíritos renitentes na perversidade, nos desmandos, na sensualidade e na vileza estão sendo recambiados lentamente para mundos inferiores onde enfrentarão as conseqüências dos seus atos ignóbeis, assim se renovando e predispondo-se ao retorno planetário, quando recuperados e decididos ao cumprimento das Leis de amor.

Por outro lado, aqueles que permaneceram nas regiões mais infelizes estão sendo trazidos à reencarnação, de modo a desfrutarem da oportunidade de trabalho e de aprendizado, modificando os hábitos desditosos a que se tem submetido, podendo avançar sob a governança de Deus.

Caso se oponham às exigências da evolução, também sofrerão um tipo de expurgo temporário para regiões primárias entre raças atrasadas, tendo o ensejo de ser úteis e de sofrer os efeitos danosos da sua rebeldia.

Concomitantemente, Espíritos nobres que conseguiram superar os impedimentos que os retinham na retaguarda estarão chegando, a fim de promover o bem e alargar os horizontes da felicidade humana, trabalhando infatigavelmente na reconstrução da sociedade então fiel aos desígnios divinos.

Da mesma forma, missionários do amor e da caridade, procedentes de outras Esferas, estarão revestindo-se da indumentária carnal, para tornar esta fase de luta iluminativa mais amena, proporcionando condições dignificantes que estimulem o avanço e a felicidade.

Não serão apenas os cataclismos físicos que sacudirão o planeta, como resultado da Lei de destruição, geradora desses fenômenos, como ocorre com o outono que derruba a folhagem das árvores, a fim de que possam enfrentar a invernia rigorosa, renascendo exuberantes com a chegada da primavera, mas também os de natureza moral, social e humana, que assinalarão os dias tormentosos que já se vivem.

Os combates apresentam-se individuais e coletivos, ameaçando de destruição a vida com hecatombes inimagináveis, como se ela pudesse ser aniquilada...

A loucura decorrente do materialismo dos indivíduos atira-os nos abismos da violência e da insensatez, ampliando o campo do desespero que se alarga em todas as direções.

Esfacelam-se os lares, desorganizam-se os relacionamentos afetivos, desestruturam-se as instituições, as oficinas de trabalho convertem-se em áreas de competição desleal, as ruas do mundo transformam-se em campos de lutas perversas, levando de roldão os sentimentos de solidariedade e de respeito, de amor e de caridade...

A turbulência vence a paz, o conflito domina o amor, a luta desigual substitui a fraternidade, mas essas ocorrências são apenas o começo da grande transição.

A fatalidade da existência humana é a conquista do amor que proporciona plenitude.

Há, em toda parte, uma destinação inevitável, que expressa a ordem universal e a presença de uma Consciência Cósmica atuante.

A rebeldia, que predomina no comportamento humano, elegeu a violência como instrumento para conseguir o prazer que lhe não chega de maneira espontânea, gerando lamentáveis conseqüências, que se avolumam em desaires contínuos.

É inevitável a colheita da sementeira por aquele que a fez, tornando-se rico de grãos abençoados ou de espículos venenosos.

Como as Leis da Vida não podem ser derrogadas, toda objeção que se lhes faz converte-se em aflição, impedindo a conquista do bem-estar.

Da mesma forma, como o progresso é inevitável, o que não seja conquistado através do dever sê-lo-á pelos impositivos estruturais de que ele se constitui.

A melhor maneira, portanto, de compartilhar conscientemente da grande transição é através da consciência de responsabilidade pessoal, realizando as mudanças íntimas que se tornem próprias para a harmonia do conjunto.

Nenhuma conquista exterior será lograda se não proceder das paisagens íntimas, nas quais estão instalados os hábitos.

Esses, de natureza perniciosa, devem ser substituídos por aqueles que são saudáveis, portanto, propiciatórios de bem-estar e de harmonia emocional.

Na mente do ser encontra-se a chave para que seja operada a grande mudança.

Quando se tem domínio sobre ela, os pensamentos podem ser canalizados em sentido edificante, dando lugar a palavras corretas e atos dignos.

O indivíduo que se renova moralmente contribui de forma segura para as alterações que se vem operando no planeta.

Não é necessário que o turbilhão dos sofrimentos gerais o sensibilize, a fim de que possa contribuir eficazmente com os Espíritos que operam em favor da grande transição.

Dispondo das ferramentas morais do enobrecimento, torna-se cooperador eficiente, em razão de trabalhar junto ao seu próximo pela mudança de convicção em torno dos objetivos existenciais, ao tempo em que se transforma num exemplo de alegria e de felicidade geral.

O bem fascina todos aqueles que o observam e atrai todos quantos se encontram distantes da sua ação, o mesmo ocorrendo com a alegria e a saúde.

São eles que proporcionam o maior contágio de que se tem notícia, e não as manifestações aberrantes e afligentes que parecem arrastar as multidões.

Como escasseiam os exemplos de júbilo, multiplicam-se os de desespero, logo ultrapassados pelos programas de sensibilização emocional para a plenitude.

A grande transição prossegue, e porque se faz necessária, a única alternativa é examinar-lhe a maneira como se apresenta e cooperar para que as sombras que se adensam no mundo sejam diminuídas pelo Sol da Imortalidade.

Nenhum receio deve ser cultivado, porque mesmo que ocorra a morte do indivíduo, esse fenômeno natural é veículo da vida que se manifestará permanente em outra dimensão.

A vida sempre responde conforme as indagações morais que lhe são dirigidas.

As aguardadas mudanças que se vem operando trazem uma ainda não valorizada contribuição, que é a erradicação do sofrimento das paisagens espirituais da Terra.

Enquanto viceje o mal no mundo, o ser humano torna-se-lhe a vítima preferida, em face do egoísmo em que estorcega por eleição especial.

A dor momentânea que o fere convida-o, por outro lado, à observância das necessidades imperiosas de seguir a correnteza do amor no rumo do oceano da paz.

Logo passado o período de aflição, chegará o de harmonia.

Até lá, que todos os investimentos sejam de bondade e de ternura, de abnegação e de irrestrita confiança em Deus. 


Joanna de Ângelis











André Luiz - Livro Agenda Cristã - Chico Xavier - Cap. 14 - Enquanto…



André Luiz - Livro Agenda Cristã - Chico Xavier - Cap. 14


Enquanto…


Busque agir para o bem, enquanto você dispõe de tempo.

É perigoso guardar uma cabeça cheia de sonhos, com as mãos desocupadas.

Acenda sua lâmpada, enquanto há claridade em torno de seus passos.

Viajor algum fugirá às surpresas da noite.

Ajude o próximo, enquanto as possibilidades permanecem de seu lado.

Chegará o momento em que você não prescindirá do auxílio dele.

Utilize o corpo físico para recolher as bênçãos da vida Mais Alta, enquanto suas peças se ajustam harmoniosamente.

O vaso que reteve essências sublimes ainda espalha perfume, depois de abandonado.

Dê suas lições sensatamente, na escola da vida, enquanto o livro das provas repousa em suas mãos.

Aprender é uma benção e há milhares de irmãos, não longe de você, aguardando uma bolsa de estudos na reencarnação.

Acerte suas contas com o vizinho, enquanto a hora é favorável.

Amanhã, todos os quadros podem surgir transformados.

Ninguém deve ser o profeta da morte e nem imitar a coruja agourenta.

Mas, enquanto você guardar oportunidade de amealhar recursos superiores para a vida espiritual, aumente os seus valores próprios e organize tesouros da alma, convicto de que sua viagem para outro gênero de existência é inevitável.


André Luiz









Fonte: Bíblia do Caminho † Testamento Xavieriano

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Allan Kardec - Revista Espírita - Ano XI - Julho de 1868 - A ciência da concordância dos números e a fatalidade



Allan Kardec - Revista Espírita - Ano XI - Julho de 1868


A ciência da concordância dos números e a fatalidade


Por várias vezes nos perguntaram o que pensamos da concordância dos números e se cremos no valor dessa ciência. Nossa resposta é bem simples: Até este momento nada pensamos a respeito, porque jamais com ela nos ocupamos. Bem que temos visto alguns casos de concordâncias singulares entre as datas de certos acontecimentos, mas em pequeníssimo número para delas tirar uma conclusão, mesmo aproximada. A bem da verdade, não vemos a razão de tal coincidência. Entretanto, o fato de não compreendermos uma coisa não significa que ela não existe. A Natureza não disse a sua última palavra, e o que hoje é utopia poderá ser verdade amanhã. Então, pode ser que entre os fatos exista uma certa correlação que não suspeitamos, e que poderia traduzir-se por números. Em todo caso, não se poderia dar o nome de ciência a um cálculo tão hipotético quanto o das relações numéricas, no que concerne à sucessão dos acontecimentos. Uma ciência é um conjunto de fatos suficientemente numerosos para deles se deduzirem regras, e suscetíveis de uma demonstração. Ora, no estado atual dos nossos conhecimentos, seria absolutamente impossível estabelecer uma teoria qualquer acerca dos fatos desse gênero, e até mesmo uma explicação satisfatória. Não é, portanto, ou, se quiserem, não é ainda uma ciência, o que não implica na sua negação.

Há fatos sobre os quais temos uma opinião pessoal. No caso de que se trata não temos nenhuma, e se nos inclinássemos para um lado, seria de preferência para a negativa, até prova em contrário.

Baseamo-nos no fato de que o tempo é relativo; de que ele não pode ser apreciado senão em termos comparativos e em relação aos pontos de referência obtidos na revolução dos outros, e esses termos variam conforme os mundos, porque fora dos mundos o tempo não existe. Não há parâmetro para medir o infinito. Assim, parece que não pode haver uma lei universal de concordância para a data dos acontecimentos, porque o cômputo da duração varia conforme os mundos, a menos que haja, nesse caso particular, uma lei para cada mundo, afeta à sua organização, como há uma para a duração da vida de seus habitantes.

Seguramente, se tal lei existe, um dia ela será reconhecida. O Espiritismo, que assimila todas as verdades, quando são constatadas, não irá repelir essa. Mas como, até o presente, essa lei não é atestada nem por um número suficiente de fatos nem por uma demonstração categórica, com ela devemos preocupar-nos muito pouco, porquanto ela só nos interessa de maneira muito indireta. Não dissimulamos a importância dessa lei, se é que ela existe, mas como as portas do Espiritismo estarão sempre abertas a todas as ideias progressivas, a todas as aquisições da inteligência, ele se ocupa com as necessidades do momento, sem receio de ser ultrapassado pelas conquistas do futuro.

Tendo sido esta questão submetida aos Espíritos num grupo muito sério do interior, e por isto mesmo geralmente bem assistido, foi respondido:

“Há, certamente, no conjunto dos fenômenos morais, como nos fenômenos físicos, relações baseadas nos números. A lei da concordância das datas não é uma quimera; é uma das que vos serão reveladas mais tarde e vos darão a chave das coisas que vos parecem anomalias, porque, acreditai, a Natureza não tem caprichos; ela marcha sempre com precisão e passo seguro. Além do mais, essa lei não é exatamente como imaginais; para compreendê-la na sua razão de ser, no seu princípio e na sua utilidade, necessitais adquirir ideias que ainda não tendes, e que virão com o seu tempo. Por ora, esse conhecimento seria prematuro, razão pela qual não vos é dado. Portanto, seria inútil insistir. Limitai-vos a recolher os fatos; observai sem nada concluir, para não vos confundirdes. Deus sabe dar aos homens o alimento intelectual à medida que eles estão em condições de absorvê-lo. Trabalhai sobretudo por vosso adiantamento moral, que é o essencial, porque é por esse caminho que merecereis possuir novas luzes.”

Nós somos dessa opinião. Pensamos, até, que haveria mais inconvenientes do que vantagens em vulgarizar prematuramente uma crença que, nas mãos da ignorância, poderia degenerar em abuso e práticas supersticiosas, por falta do contrapeso de uma teoria racional.

O princípio da concordância das datas é, pois, inteiramente hipotético; mas se nada é ainda permitido afirmar a esse respeito, a experiência demonstra que, na Natureza, muitas coisas estão subordinadas a leis numéricas, suscetíveis do mais rigoroso cálculo. Este fato, de uma grande importância, talvez possa um dia lançar a luz sobre a primeira questão. É assim, por exemplo, que as chances do acaso são submetidas, em seu conjunto, a uma periodicidade de admirável precisão; a maior parte das combinações químicas para a formação dos corpos compostos dão-se em proporções definidas, e isto significa que é necessário um determinado número de moléculas de cada um dos corpos elementares, e que uma molécula a mais ou a menos muda completamente a Natureza do corpo composto (vide A Gênese, Cap. X, itens 7 e seguintes); a cristalização se opera sob ângulos de uma abertura constante; em Astronomia, os movimentos e as forças seguem progressões de um rigor matemático, e a mecânica celeste é tão exata quanto a mecânica terrestre; dá-se o mesmo com a reflexão dos raios luminosos, calóricos e sonoros; é em cálculos positivos que são estabelecidas as possibilidades de sobrevivência e os riscos de mortalidade nos seguros.

É certo, pois, que os números estão na Natureza e que leis numéricas regem a maior parte dos fenômenos de ordem física. Dá-se o mesmo nos fenômenos de ordem moral e metafísica? É o que seria presunção afirmar, sem dados mais precisos do que aqueles que possuímos. Esta questão, aliás, levanta outras que têm a sua importância, e sobre as quais julgamos útil apresentar algumas observações de um ponto de vista geral.

Levando-se em consideração que uma lei numérica rege os nascimentos e a mortalidade das criaturas, não poderia dar-se o mesmo, porém numa escala mais vasta, para as individualidades coletivas, tais como as raças, os povos, as cidades etc.? As fases de sua marcha ascendente, de sua decadência e de seu fim; as revoluções que marcam as etapas do progresso da Humanidade, não estariam sujeitas a uma certa periodicidade? Quanto às unidades numéricas para o cômputo dos períodos da história da Humanidade, se não são os dias nem os anos nem os séculos, poderiam eles ter por base as gerações, como alguns fatos tenderiam a fazê-lo supor.

Aí não está um sistema; é ainda menos uma teoria, mas uma simples hipótese, uma ideia baseada numa probabilidade, e que um dia poderá servir de ponto de partida para ideias mais positivas.

Mas, perguntarão, se os acontecimentos que decidem a sorte da Humanidade, de uma nação, de uma tribo, têm seus prazos regulados por uma lei numérica, é a consagração da fatalidade e, então, em que se torna o livre-arbítrio do homem? Então o Espiritismo estaria errado quando diz que nada é fatal e que o homem é o senhor absoluto de suas ações e de sua sorte?

Para responder a esta objeção, há que tomar a questão de mais alto. Digamos, para começar, que o Espiritismo jamais negou a fatalidade de certas coisas, e que, ao contrário, sempre a reconheceu. Mas ele diz que essa fatalidade não entrava o livre-arbítrio. Eis o que é fácil de demonstrar.

Todas as leis que regem o conjunto dos fenômenos da Natureza têm consequências necessariamente fatais, isto é, inevitáveis, e essa fatalidade é indispensável à manutenção da harmonia universal. O homem, que sofre essas consequências, está, pois, sob alguns aspectos, submetido à fatalidade, em tudo quanto não depende de sua iniciativa. Assim, por exemplo, ele deve morrer fatalmente: é a lei comum, à qual ele não pode subtrair-se e, em virtude dessa lei, ele pode morrer em qualquer idade, quando chegar a sua hora; entretanto, se ele voluntariamente apressa a sua morte, pelo suicídio ou por seus excessos, age em virtude de seu livre-arbítrio, pois ninguém pode constrangê-lo a praticar esse ato. Ele deve comer para viver: é a fatalidade; mas se ele come além do necessário, pratica um ato de liberdade.

Em sua cela, o prisioneiro é livre de mover-se à vontade, no espaço que lhe é concedido, mas as paredes que não pode transpor são para ele a fatalidade que lhe restringe a liberdade. A disciplina é para o soldado uma fatalidade, pois o obriga a atos independentes de sua vontade, mas ele não é menos livre em suas ações pessoais, pelas quais é responsável. Assim é com o homem na Natureza. A Natureza tem as suas leis fatais, que lhe opõem uma barreira, mas aquém da qual ele pode mover-se à vontade.

Por que Deus não deu ao homem uma liberdade completa? Porque Deus é como um pai previdente, que limita a liberdade de seus filhos ao nível do seu raciocínio e do uso que dela podem fazer. Se os homens já se servem tão mal da que lhes é concedida, se não sabem governar-se a si mesmos, que seria se as leis da Natureza estivessem à sua disposição, e se não lhes opusessem um freio salutar?

O homem pode, pois, ser livre em suas ações, a despeito da fatalidade que preside o conjunto; ele é livre numa certa medida, no limite necessário para lhe deixar a responsabilidade de seus atos. Se, em virtude dessa liberdade, ele perturba a harmonia por um mal que faz; se ele põe um obstáculo na marcha providencial das coisas, ele é o primeiro a sofrer as consequências disso, e como as leis da Natureza são mais fortes do que ele, acaba sendo arrastado na corrente; então ele sente a necessidade de retornar ao caminho do bem, e tudo retoma o seu equilíbrio, de sorte que a volta ao bem é ainda um ato livre, posto que provocado, nas não imposto pela fatalidade.

O impulso dado pelas leis da Natureza, bem como os limites que elas estabelecem, são sempre bons, porque a Natureza é obra da sabedoria divina. A resistência a essas leis é um ato de liberdade e essa resistência sempre atrai o mal. Sendo o homem livre para observar ou infringir essas leis, no que se refere à sua pessoa, é, pois, livre de fazer o bem ou o mal. Se ele pudesse ser fatalmente levado a fazer o mal, e não podendo essa fatalidade vir senão de um poder a ele superior, Deus seria o primeiro a infringir as suas leis.

A quem não ocorreu muitas vezes dizer: “Se eu não tivesse agido como agi em tal circunstância, não estaria na posição em que estou; se eu tivesse que recomeçar, agiria de outra maneira?” Não é reconhecer que tinha liberdade para fazer ou  não fazer? Que estava livre para fazer melhor, se se apresentasse outra oportunidade? Ora, Deus, que é mais sábio do que ele, prevendo os erros nos quais ele pode cair e o mau uso que ele poderia fazer de sua liberdade, dá-lhe indefinidamente a possibilidade de recomeçar, pela sucessão de suas existências corporais, e ele recomeçará até que, instruído pela experiência, não mais erre o caminho.

O homem pode, portanto, conforme a sua vontade, apressar ou retardar o termo de suas provas, e é nisto que consiste a liberdade. Agradeçamos a Deus não nos ter fechado para sempre o caminho da felicidade, decidindo a nossa sorte definitiva após uma existência efêmera, notoriamente insuficiente para chegar ao topo da escada do progresso, e de nos haver dado, pela própria fatalidade da reencarnação, os meios de progredir incessantemente, renovando as provas nas quais fracassamos.

A fatalidade é absoluta para as leis que regem a matéria, porque a matéria é cega; ela não existe para o Espírito que é, ele próprio, chamado a reagir sobre a matéria, em virtude de sua liberdade. Se as doutrinas materialistas fossem verdadeiras, elas seriam a mais formal consagração da fatalidade, porque se o homem fosse apenas matéria, não poderia ter iniciativa. Ora, se lhe concedeis iniciativa, seja no que for, é que ele é livre, e se é livre, é que tem em si algo além da matéria. Sendo o materialismo a negação do princípio espiritual, é, por isso mesmo, a negação da liberdade. E ─ contradição bizarra! ─ os materialistas, aqueles mesmos que proclamam o dogma da fatalidade, são os primeiros a dela tirar partido; a constituir-se senhores de sua liberdade; a reivindicá-la como um direito, na sua mais absoluta plenitude, junto aos que a restringem, e isto sem suspeitar que significa reclamar o privilégio do Espírito e não da matéria.

Aqui se apresenta outra questão. A fatalidade e a liberdade são dois princípios que parecem excluir-se. A liberdade da ação individual é compatível com a fatalidade das leis que regem o conjunto, e essa ação não vem perturbar a harmonia? Alguns exemplos tomados dos mais vulgares fenômenos da ordem material deixarão evidente a solução do problema.

Dissemos que as chances do acaso se equilibram com uma surpreendente regularidade. Com efeito, há um resultado muito conhecido no jogo do vermelho e preto que, a despeito da irregularidade de saída a cada lançamento, as cores são em número igual ao cabo de certo número de jogadas; isto significa que em cem jogadas haverá cinquenta vermelhos e cinquenta pretos; em mil, quinhentos de uma e quinhentos de outra, com uma diferença de poucas unidades. Dá-se o mesmo com os números pares e ímpares e com todas as chances ditas duplas. Se, em lugar de duas cores, houver três, haverá um terço de cada; se forem quatro, um quarto etc. Muitas vezes a mesma cor sai em séries de duas, três, quatro, cinco, seis vezes seguidas; num certo número de jogadas haverá tantas séries de duas vermelhas quanto de duas pretas; tantas de três vermelhas quanto de três pretas, e assim por diante. No entanto, as jogadas de duas serão 50% menos numerosa do que as de uma; as de três, um terço das de uma; as de quatro, um quarto etc.

Nos dados, como estes têm seis faces, jogando-o sessenta vezes, chegar-se-á a dez vezes um ponto, dez vezes dois pontos, dez vezes três pontos e assim com os outros.

Na antiga loteria da França havia noventa números colocados numa roleta. Sorteava-se cinco de cada vez. Nos registros de vários anos constatou-se que cada número havia saído na proporção de um nonagésimo e cada dezena na proporção de um nono.

A proporção é tanto mais exata quanto mais considerável o número de jogadas. Em dez ou vinte jogadas, por exemplo, pode ser muito desigual, mas o equilíbrio se estabelece à medida que aumenta o número, e isto com uma regularidade matemática. Sendo isto um fato constante, é bem evidente que uma lei numérica preside a essa repartição, quando abandonada a si mesma, e que nada vem forçá-la ou entravá-la. O que se chama acaso está, pois, submetido a uma lei matemática, isto é, não há acaso. A irregularidade caprichosa que se manifesta em cada jogada, ou num pequeno número de jogadas, não impede a lei de seguir o seu curso, de onde pode-se concluir que há nessa repartição uma verdadeira fatalidade, mas essa fatalidade que preside ao conjunto é nula, ou pelo menos inapreciável, para cada jogada isolada.

Estendemo-nos um pouco no exemplo dos jogos, porque é um dos mais chocantes e dos mais fáceis de verificar, pela possibilidade de multiplicar os fatos à vontade, em curto espaço de tempo. E como a lei ressalta do conjunto dos fatos, foi essa multiplicidade que permitiu reconhecê-la, sem o que é provável que ainda a ignorássemos.

A mesma lei pôde ser observada com precisão nas chances de mortalidade. A morte, que parece ferir indistintamente e às cegas, não segue menos, em seu conjunto, uma marcha regular e constante, segundo a idade. Sabemos perfeitamente que de mil indivíduos de todas as idades, em um ano morrerão tantos de um a dez anos, tantos de dez a vinte, tantos de vinte a trinta, e assim por diante; ou então que após um período de dez anos, o número dos sobreviventes será de tantos de um a dez anos, tantos de dez a vinte etc. Causas acidentais de mortalidade podem momentaneamente perturbar esta ordem, como no jogo a saída de uma longa série da mesma cor rompe o equilíbrio. No entanto, se em vez de um período de dez anos ou de um número de mil indivíduos, estendermos a observação a cinquenta anos e a cem mil indivíduos, encontraremos o equilíbrio restabelecido.

De acordo com isto, é permitido supor que todas as eventualidades que parecem efeito do acaso, na vida individual, bem como na dos povos e da Humanidade, são regidas por leis numéricas, e que o que falta para reconhecê-las é poder abarcar de um golpe de vista uma massa bastante considerável de fatos, e um lapso de tempo suficiente.

Pela mesma razão, nada haveria de absolutamente impossível que o conjunto dos fatos de ordem moral e metafísica fosse igualmente subordinado a uma lei numérica, cujos elementos e as bases, até agora, nos são totalmente desconhecidos. Em todo o caso, vê-se, pelo que precede, que essa lei, ou, se preferirem, essa fatalidade do conjunto, de modo algum eliminaria o livre-arbítrio. É o que nos tínhamos proposto demonstrar. Não se exercendo o livre-arbítrio senão sobre pontos isolados de detalhe, ele não entravaria o cumprimento da lei geral, assim como a irregularidade da saída de cada número não entravaria a repartição proporcional desses mesmos números sobre um certo número de jogadas. O homem exerce o seu livre-arbítrio na pequena esfera de sua ação individual; esta pequena esfera pode estar em desalinho, sem que isto a impeça de gravitar no conjunto segundo a lei comum, assim como os pequenos remoinhos causados nas águas de um rio, pelos peixes que se agitam, não impedem a massa das águas de seguir o curso forçado que lhes imprime a lei de gravitação.

Tendo o homem o livre-arbítrio, em nada entra a fatalidade em suas ações individuais; quanto aos acontecimentos da vida privada, que por vezes parecem atingi-lo fatalmente, eles têm duas causas bem distintas: uns são consequência direta de sua conduta na existência presente; muitas pessoas são infelizes, doentes, enfermas por sua culpa; muitos acidentes são resultado da imprevidência; ele não pode queixar-se senão de si mesmo, e não da fatalidade ou, como se diz, de sua má estrela. Os outros são inteiramente independentes da vida presente e parecem, por isto mesmo, devidos a uma certa fatalidade. Mas, ainda aqui o Espiritismo nos demonstra que essa fatalidade é apenas aparente, e que certas posições penosas da vida têm sua razão de ser na pluralidade das existências. O Espírito as escolheu voluntariamente na erraticidade, antes de sua encarnação, como provações para o seu adiantamento. Elas são, pois, produto do livre-arbítrio, e não da fatalidade. Se algumas vezes são impostas como expiação, por uma vontade superior, é ainda por força das más ações voluntariamente cometidas pelo homem em existência precedente, e não como consequência de uma lei fatal, porquanto ele poderia tê-las evitado, agindo de outro modo.

A fatalidade é o freio imposto ao homem por uma vontade superior a ele, e mais sábia que ele, em tudo o que não é deixado à sua iniciativa. Mas ela jamais é um entrave ao exercício de seu livre-arbítrio, no que toca às suas ações pessoais. Ela não pode impor-lhe nem o mal nem o bem. Desculpar uma ação má qualquer pela fatalidade ou, como se diz muitas vezes, pelo destino, seria abdicar a capacidade de discernimento que Deus lhe deu para pesar o pró e o contra, a oportunidade ou a falta de oportunidade, as vantagens e os inconvenientes de cada coisa. Se um acontecimento está no destino de um homem, ele realizar-se-á, a despeito de sua vontade, e será sempre para o seu bem, mas as circunstâncias da realização dependem do emprego que ele faça de seu livre-arbítrio, e muitas vezes ele pode reverter em seu prejuízo o que deveria ser um bem, se agir com imprevidência, e se se deixar arrastar pelas suas paixões. Ele se engana mais ainda se toma o seu desejo ou os desvios de sua imaginação por seu destino. (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. V, itens l a 11).

Tais são as reflexões que nos sugeriram os três ou quatro pequenos cálculos de concordância de datas que nos foram apresentados, e sobre os quais nos pediram conselho. Elas eram necessárias para demonstrar que em semelhante matéria, de alguns fatos idênticos não se podia concluir por uma aplicação geral. Aproveitamo-los para resolver, por novos argumentos, a grave questão da fatalidade e do livre-arbítrio.


Allan Kardec