terça-feira, 23 de abril de 2024

Humberto de Campos - Livro Cartas e Crônicas - Chico Xavier - Cap. 29 - Bichinhos



Humberto de Campos - Livro Cartas e Crônicas - Chico Xavier - Cap. 29


Bichinhos


Declara-se você esgotado pelos conflitos internos da instituição espírita de que se fez devotado servidor, e revela-se faminto de uma solução para os problemas que lhe atormentam a antiga casa de fé.

Lutas entre companheiros e hostilidades constantes minaram o altar do templo, onde, muitas vezes, você observou a manifestação da Providência Divina, através de abnegados mensageiros da luz, e hoje, ao invés da fraternidade e da confiança, do entusiasmo e da alegria, imperam no santuário a discórdia e a dúvida, o desânimo e a tristeza.

Pede-nos você um esclarecimento, entretanto, a propósito do assunto, lembro-me de velha e valorosa árvore que conheci em minha primeira infância. Verde e forte, assemelhava-se a uma catedral na obra prodigiosa da Natureza. Cheia de ninhos, era o palácio predileto das aves cantoras que, em suas frondes, trinavam felizes: Tropeiros exaustos encontravam à sua sombra, que protegia cristalina fonte, o reconforto é a paz, o repouso e o abrigo. 

Lenhadores, de quando em quando, furtavam-lhe pedaços vivos e peregrinos ingratos roubavam-lhe ramos preciosos para utilidades diversas. Tempestades terríveis caíam sobre ela, anualmente, oprimindo-a e dilacerando-a, mas parecia refazer-se, sempre mais bela. Coriscos alcançaram-na em muitas ocasiões; mas a árvore robusta ressurgia, sublime. 

Ventanias furiosas, periodicamente, inclinavam-lhe a copa, decepando-lhe galhos vigorosos; a canícula demorada impunha-lhe pavorosa sede e a enxurrada costumava rodeá-la de pesados detritos… O tronco, porém, sempre adornado de milhares e milhares de folhas seivosas, parecia inabalável e invencível.

Um dia, contudo, alguns bichinhos começaram a penetrá-la de modo imperceptível.

Ninguém lhes conferiria qualquer significação.

Microscópicos, incolores, quase intangíveis, que mal poderiam trazer ao gigante do solo?

Viajores e servos do campo não lhes identificaram a presença.

Mas os bichinhos multiplicaram-se, indefinidamente, invadiram as raízes e ganharam o coração da árvore vigorosa, devorando-o, pouco a pouco…

E o vegetal que superara as ameaças do céu e as tentações da terra, em reduzido tempo, triste e emurchecido, transformava-se em lenho seco, destinado ao fogo.

Assim também, meu caro, são muitas das associações respeitáveis, quando não se acautelam contra os perigos, aparentemente sem importância. São admiráveis na caridade e na resistência aos golpes do exterior. Suportam, com heroísmo e serenidade, estranhas provações e contundentes pedradas. Afrontam a calúnia e a maldade, a perseguição e o menosprezo público, dentro de inalterável paciência e indefinível força moral…

Visitadas, entretanto, pelos vermes invisíveis da inveja ou do ciúme, da incompreensão ou da suspeita, depressa se perturbam e se desmantelam, incapazes de reconhecer que os melindres pessoais são parasitos destruidores das melhores organizações do espírito.

Quando o “disse-me-disse” invade uma instituição; o demônio da intriga se incumbe de toldar a água viva do entendimento e da harmonia, aniquilando todas as sementes divinas do trabalho digno e do aperfeiçoamento espiritual.

Que fazer? — Pergunta você, assombrado.

Dentro de minha nova condição, apenas conheço um remédio: nossa adaptação individual e coletiva à prática real do Evangelho do Cristo.

Contra os corrosivos bichinhos do egoísmo degradante, usemos os antissépticos da Boa Nova.

— “Se alguém quiser alcançar comigo a luz divina da ressurreição, — disse o Senhor, — negue a si mesmo, tome a cruz dos próprios deveres, cada dia, e siga os meus passos.” 

Quando pudermos realizar essa caminhada, com esquecimento de nossas carunchosas suscetibilidades, estaremos fora do alcance dos sinistros micróbios da treva, imunizados e tranquilos em nosso próprio coração.


Humberto de Campos
(Irmão X)











segunda-feira, 22 de abril de 2024

Auta de Souza - Livro Auta de Souza - Chico Xavier - Cap. 21 - Ora e vem



Auta de Souza - Livro Auta de Souza - Chico Xavier - Cap. 21


Ora e vem


Depois da prece doce em teu recanto,
Onde a luz do conforto surge, acesa,
Vem ouvir os gemidos de tristeza
Da miséria que a noite afoga em pranto.

Contemplarás velhinhos de alma presa
Às algemas de angústia e desencanto
E crianças que o frio envolve, enquanto
Mães fatigadas tremem de incerteza…

Ora e traze o consolo que te invade
Por flama de alegria e caridade,
Onde espinhos e lágrimas divises!…

E entenderás na fé viva e sincera
Que a presença do Cristo nos espera,
Entre as chagas dos grandes infelizes.


Auta de Souza











(Psicografado em Uberaba, MG, em 27 de janeiro de 1959.)

Emmanuel - Livro Espera Servindo - Chico Xavier - Cap. 16 - Escora



Emmanuel - Livro Espera Servindo - Chico Xavier - Cap. 16


Escora


Se não consegues usar a paciência, por te encontrares sob os constrangimentos de uma enfermidade qualquer, a inconformação apenas te agravará a luta orgânica, prejudicando-te o tratamento.

Se perdas de recursos materiais te dilapidaram as reservas econômicas e te afastas do trabalho, a fim de protestar contra o mundo, isso te colocará sob entraves maiores.

Se te revoltas ante a doença em pessoa querida, essa atitude ampliará o mal-estar na criatura enferma a quem te dedicas.

Se te rebelas contra o amigo que não mais te abraça os pontos de vista, semelhante comportamento te fixará no azedume sem razão de ser.

Se não aceitas as condições de trabalho a que a vida te destina e te negas à precisa renovação, nada mais obterás, além do desapontamento no desemprego.

Se não conservas a calma necessária, diante de ofensas e críticas, entrarás inevitavelmente nas grades da desesperação.

A paciência é a escora da paz em todas as crises e provações nas quais te vejas. Trocá-la por reclamação e cólera, descontentamento e intolerância, será sempre deixar a pequena dificuldade em que te encontras para cair na pior.


Emmanuel












Fonte: Bíblia do Caminho † Testamento Xavieriano

Emmanuel - Livro Fonte Viva - Chico Xavier - Cap. 81 - A candeia viva



Emmanuel - Livro Fonte Viva - Chico Xavier - Cap. 81


A candeia viva


“Ninguém acende a candeia e a coloca debaixo do módio, mas no velador, e assim alumia a todos os que estão na casa.” — Jesus. (MATEUS, 5.15)


Muitos aprendizes interpretaram semelhantes palavras do Mestre como apelo à pregação sistemática, e desvairaram-se através de veementes discursos em toda parte. 

Outros admitiram que o Senhor lhes impunha a obrigação de violentar os vizinhos, através de propaganda compulsória da crença, segundo o ponto de vista que lhes é particular.

Em verdade o sermão edificante e o auxílio fraterno são indispensáveis na extensão dos benefícios divinos da fé.

Sem a palavra, é quase impossível a distribuição do conhecimento. 

Sem o amparo irmão, a fraternidade não se concretizará no mundo.

A assertiva de Jesus, todavia, atinge mais além.

Atentemos para o símbolo da candeia. 

A claridade na lâmpada consome força ou combustível. Sem o sacrifício da energia ou do óleo não há luz.

Para nós, aqui, o material de manutenção é a possibilidade, o recurso, a vida.

Nossa existência é a candeia viva.

É um erro lamentável despender nossas forças, sem proveito para ninguém, sob a medida de nosso egoísmo, de nossa vaidade ou de nossa limitação pessoal.

Coloquemos nossas possibilidades ao dispor dos semelhantes.

Ninguém deve amealhar as vantagens da experiência terrestre somente para si. 

Cada Espírito provisoriamente encarnado, no Círculo humano, goza de imensas prerrogativas, quanto à difusão do bem, se persevera na observância do Amor Universal.

Prega, pois, as revelações do Alto, fazendo-as mais formosas e brilhantes em teus lábios; insta com parentes e amigos para que aceitem as verdades imperecíveis, mas, não olvides que a candeia viva da iluminação espiritual é a perfeita imagem de ti mesmo.

Transforma as tuas energias em bondade e compreensão redentoras para toda gente, gastando, para isso, o óleo de tua boa vontade, na renúncia e no sacrifício, e a tua vida, em Cristo, passará realmente a brilhar.


Emmanuel













Emmanuel - Livro Instruções Psicofônicas - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 42 - Divino Amigo, vem!



Emmanuel - Livro Instruções Psicofônicas - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 42


Divino Amigo, vem!


Com a nossa reunião, na noite de 23 de dezembro de 1954, estávamos encerrando as atividades do ano. Era um ciclo de tempo a fechar-se, diante de outro que prestes se abriria… Trazendo-nos imenso júbilo, nosso amigo Emmanuel controlou os recursos psicofônicos do médium e orou conosco, em voz alta, sentidamente.


Senhor,

Tu que nos deste no Tempo

O sábio condutor de nossos destinos,

Faze-nos entender a bênção dos minutos,

A fim de não perdermos o tesouro dos séculos…


Porque o Tempo, Senhor,

Guardando-nos a alma

Nos braços das horas incessantes,

Embora nos amadureça o entendimento,

Não nos ergue da Terra

Ao encontro de Ti.


Por ele, temos a hora do berço

E a hora do túmulo,

A hora de semear

E a hora de colher,

A hora de rir

E a hora de chorar…


Com ele, temos a experiência

Da dor e da alegria,

Da ilusão e da realidade,

Do conforto e da angústia,

Que, em nos transformando o raciocínio,

Não nos alteram o coração.


É por isso, Senhor,

Que Te rogamos

Assistência e socorro!…


Ajuda-nos a cooperar com os dias,

Para que os dias colaborem conosco.

Ensina-nos a buscar

A hora de buscar-Te,

No respeito aos Teus desígnios,

No trabalho bem vivido,

No estudo de Tuas leis,

No serviço aos semelhantes,

Na contemplação de Tua grandeza

E na ação constante do bem.


Livra-nos da inércia,

Porque sem Tua bênção

A ronda dos milênios

É só repetição,

Prova e monotonia…


Divino Amigo, vem!…

E ampara-nos a senda

Porque, sem Ti, o Tempo,

Embora sendo luz

E embora sendo vida,

Sem que Te procuremos,

Deixar-nos-á clamando

Nos abismos da sombra,

Da aflição e da morte…


Emmanuel













domingo, 21 de abril de 2024

André Luiz - Livro Libertação - Chico Xavier - Cap. 13 - Convocação familiar



André Luiz - Livro Libertação - Chico Xavier - Cap. 13


Convocação familiar


Alcançando a grande residência em que Margarida descansava, antes de nos instalarmos de novo junto à enferma, Gúbio, assistido agora pelo enorme respeito de Saldanha, dirigiu-lhe a palavra, examinando a oportunidade de conversarmos com o juiz e analisar a situação da filhinha de Jorge, ali refugiada.

O magistrado residia com os parentes na ala central do vasto edifício de que Gabriel e a esposa usavam pequena dependência. Até então, não lhe havíamos atingido a zona domiciliar.

— É possível, — informou o nosso Instrutor, — promovermos benéfica reunião, convocando alguns encarnados a possível ajuste. O juiz, certamente, dispõe de alguma peça em que possamos permanecer congregados por alguns minutos.

Saldanha concordou, através de monossílabos, ao modo do aprendiz que se vê na obrigação de aderir, indiscriminadamente, ao mestre.

— A noite é propícia, — prosseguiu o Instrutor, prestativo e simples, — e atravessamos os primeiros minutos da madrugada.

Entramos, respeitosos, mas confesso que o sono do magistrado não poderia ser tão calmo quanto desejaria, em virtude do grande número de entidades sofredoras que lhe batiam às portas internas. Algumas rogavam socorro em altos brados. A maioria reclamava justiça.

Dispúnhamo-nos a visitar os aposentos particulares do dono da casa, quando um rapaz encarnado nos surge à frente, cauteloso, deslocando-se a caminho do pavimento inferior.

Saldanha tocou, de leve, o braço de Gúbio e notificou:

— Este é Alencar, irmão de Margarida e perseguidor de minha neta.

— Vejamo-lo, — exclamou o interpelado, alterando-nos a direção.

Seguimos o jovem, que nem de longe conseguiria registar-nos a presença, e observamos que, após descer alguns degraus, se postava à entrada de compartimento modesto, tentando forçá-la.

Em torno, inalava-se-lhe o hálito viciado, percebendo-se que o jovem procedia de grandes libações.

— Todas as noites, — comentou Saldanha, preocupado, — procura abusar de nossa pobre menina. Não tem o mínimo respeito a si mesmo. Reparando a resistência de Lia, estende os processos de perseguição, com ameaças diversas, e acredito que, se ainda não atingiu os fins indignos para os quais se orienta, é porque permaneço a postos, agindo na defesa com a brutalidade que me é característica.

Notamos, admirados, o tom de humildade que transparecia das palavras do vigoroso verdugo.

Saldanha ressurgia visceralmente transfigurado. A consideração que dispensava a Gúbio dava-nos conhecimento da súbita transformação que nele se operara. Mostrava compreensão e doçura nos gestos reverentes.

Ouvindo-o, nosso orientador, sem qualquer alarde de superioridade, concordou:

— Efetivamente, Saldanha, este rapaz se revela possuído de forças degradantes e precisa colaboração enérgica que o auxilie a buscar higiene mental.

Em seguida, atentamente, ministrou-lhe passes magnéticos nos órgãos visuais.

Escoados alguns minutos, Alencar retirou-se, algo cambaleante, para a câmara de dormir, de pálpebras semicerradas, acreditando Saldanha que alguma enfermidade inofensiva, por alguns dias, a partir daquela hora, o ajudaria a meditar nos deveres do homem de bem.

O obsidente de Margarida demonstrava indisfarçável contentamento.

Logo após, em companhia de nosso devotado orientador, passamos ao apartamento privado do juiz.

O magistrado se mantinha de corpo repousado sobre o colchão macio, mostrando, contudo, a mente inquieta, flagelada.

Permitiu Gúbio que eu lhe tocasse a fronte, auscultando-lhe os pensamentos mais profundos.

Naquela hora avançada da noite, o encanecido cavalheiro meditava: “Onde estariam centralizados os supremos interesses da vida? Onde a ambicionada paz espiritual que não conquistara em mais de meio século de experiência ativa na Terra? 

Por que arquivava no coração os mesmos sonhos e necessidades do homem de quinze anos, quando ultrapassara já os sessenta? Crescera, estudara, casara-se. Todas as lutas, no fundo, não lhe haviam modificado a personalidade. 

Conquistara os títulos que assinalam no mundo os sacerdotes do direito e, por centenas de vezes, envergara a toga para julgar processos difíceis. Proferira sentenças inúmeras e tivera nas mãos, sob o próprio desígnio, a destinação de muitos lares e de coletividades inteiras. 

Recebera homenagens de pobres e ricos, grandes e pequenos, no transcurso da viagem pelo encapelado mar da experiência terrestre em face da posição que desfrutava no ataviado barco do tribunal. 

Respondera a milhares de consultas em casos de harmonia social, mas, na vida íntima, singular deserto lhe povoava a alma toda. Sentia sede de fraternidade com os homens; todavia, a posse do ouro e a eminência na atividade pública impunham-lhe grandes obstáculos para ler a verdade na máscara dos semelhantes. 

Experimentava intraduzível fome de Deus. No entanto, os dogmas das religiões sectárias e as discórdias entre elas, afastavam-lhe o espírito de qualquer acordo com a fé atuante no mundo. 

Por outro lado, a ciência comum, negativista e impenitente, ressecara-lhe o coração. Toda a existência se resumiria a simples fenômenos mecânicos dentro da natureza? Adotada essa hipótese, toda a vida humana seria tão importante como a bolha d’água a desfazer-se ao vento. 

Sentia-se dilacerado, oprimido, exausto. Ele que esclarecera a muitos, quanto às mais elevadas normas de conduta pessoal, como elucidaria, agora, a si mesmo? 

Defrontado pelos primeiros sintomas da velhice do corpo de carne, reagia, magoado, contra a extinção gradual das energias orgânicas. Porque as rugas do rosto, o alvejar dos cabelos, o enfraquecimento da visão e o empobrecimento do celeiro vital, se a mocidade lhe vibrava na mente ansiosa por renovação?

Seria a morte simplesmente a noite sem alvorada? Que misterioso poder dispunha, assim, da vida humana, conduzindo-a a objetivos inesperados e ocultos?”

Retirei a destra, percebendo que o respeitável funcionário tinha os olhos úmidos.

Aproximou-se Gúbio e colocou-lhe as mãos sobre a fronte, comunicando-nos que prepará-lo-ia para a conversação próxima, dirigindo-lhe a intuição para as reminiscências do processo em que Jorge fora implicado.

Daí a instantes, notei que os olhos do juiz exibiam modificada expressão. Dir-se-ia contemplarem cenas distanciadas, com indizível tortura. Mostravam-se angustiados, doridos…

O Instrutor recomendou-me tornar à auscultação psíquica e voltei a pousar a mão direita sobre o cérebro dele.

Com as minhas percepções gerais algo desenvolvidas, ouvi-lhe os pensamentos novos.

— “Por que razão se detinha, — meditava o pai de Margarida, — naquele processo liquidado, a seu ver, desde muito, ferindo o próprio coração? 

Anos haviam transcorrido sobre o crime obscuro, entretanto, o assunto lhe revivia na cabeça, qual se a memória lho impusesse, tirânica e desapiedada, por disco de estranho padecimento moral. 

Que motivos o levavam a rememorar semelhante peça judiciária com tanta força? Via Jorge, mentalmente, esquecido no abismo da inconsciência e lembrava-lhe as palavras veementes, afirmando inocência. 

Não conseguia explicar por que fortes razões lhe recolhera a filha, introduzindo-a no próprio lar. Debalde procurava o móvel secreto que o induzia a demorar-se no assunto, naquela madrugada de inexplicável insônia. 

Recordou que o sentenciado perdera a assistência dos melhores amigos e a própria esposa suicidara-se em pleno desespero… No entanto, porque reter-se naquele caso sem importância? 

Ele, o juiz, chamado a processos incontáveis, apreciara enigmas muito mais intrincados e importantes. Não conseguia, pois, justificar-se, quanto às reminiscências do humilde condenado, réu de crime comum…”

Nesse comenos, o Instrutor recomendou a Elói e a mim o trazimento de Jorge, fora do veículo carnal, ao domicílio do magistrado, enquanto prepararia a este último o desligamento parcial do corpo através do sono.

Voltamos, o companheiro e eu, ao cubículo do obsidiado que se achava ausente do vaso físico, em grande prostração.

Administrei-lhe ao organismo perispiritual recursos fluídicos reparadores e transportamo-lo à residência indicada.

A essa altura, o dono da casa e a neta de Saldanha, provisoriamente libertos das teias fisiológicas, já se encontravam ao lado de Gúbio, que recebeu Jorge com desvelado carinho, e, unindo os três como que identificando-os a uma corrente magnética de forte expressão, emprestou-lhes forças à mente, por intermédio de operações fluídicas, para que o ouvissem acordados, em Espírito, tanto quanto possível. 

Notei, então, que o despertamento não era análogo para os três. Variava de acordo com a posição evolutiva e condições mentais de cada um. O magistrado era mais lúcido pela agilidade dos raciocínios; a jovem Lia colocava-se em segundo lugar pelas singulares qualidades de inteligência; situava-se Jorge em posição inferior, em face do esgotamento em que se encontrava.

Vendo-se à frente do antigo réu e da filha, que identificou, de pronto, o categorizado expoente da justiça perguntou a esmo, absorvido de insofreável espanto:

— Onde estamos? Onde estamos?

Nenhum de nós se atreveu à resposta.

Gúbio, no entanto, orava em silêncio; e quando formosa luz se lhe irradiou do tórax e do cérebro, dando-nos a entender que o sentimento e a razão se achavam nele irmanados em claridade celeste, exclamou para o assombrado interlocutor, tocando-lhe afavelmente os ombros:

— Juiz, o lar do mundo não é tão somente um asilo de corpos que o tempo transformará. É igualmente o ninho das almas, onde o Espírito pode entender-se com o Espírito, quando o sono sela os lábios de carne, suscetíveis de mentir. Congregamo-nos em teu próprio abrigo para uma audiência com a realidade.

O chefe daquele santuário doméstico escutava, perplexo.

— O homem encarnado na Terra, — continuou Gúbio empolgante, — é uma alma eterna usando um corpo perecível, alma que procede de milenários caminhos para a integração com a verdade divina, à maneira do seixo que desce, rolando nos séculos, do cimo do monte para o seio recôndito do mar. 

Somos, todos, atores do drama sublime da evolução universal, através do amor e da dor… Indébita é a nossa interferência nos destinos uns dos outros, quando nossos pés trilham retos caminhos. Todavia, se nos desviamos da rota adequada, é razoável o apelo do amor para que a dor diminua.

O magistrado ligou os conceitos ouvidos à presença de Jorge, na sala, e inquiriu, aflito:

— Apelam, porventura, em favor deste condenado?

— Sim, — respondeu nosso Instrutor, sem hesitar. Não acreditas que esta vítima aparente de inconfessável erro judiciário já tenha esgotado o cálice do martírio oculto?

— O caso dele, porém, permanece liquidado.

— Não, juiz, nenhum de nós chegou ao fim dos processos redentores que nos dizem respeito. Não seria Jorge, acusado penitente, o único sentenciado indigno de uma pausa nas dores da remissão.

O interlocutor arregalou os olhos, mostrando certo orgulho ferido e retorquiu, quase sarcástico:

— Mas, eu fui o juiz da causa. Consultei os códigos necessários, antes de emitir a sentença. O crime foi averiguado e os laudos testemunhais condenaram o réu. Não posso, em sã consciência, aceitar intromissões, mesmo tardias, sem argumentação ponderosa e cabível.

Gúbio contemplou-o, compadecidamente, e considerou:

— Compreendo-te a negativa. Os fluidos da carne tecem um véu pesado demais para ser facilmente rompido pelos que se não afeiçoam, ainda, diariamente, ao contato da espiritualidade superior. 

Invocas a tua condição de sacerdote da lei, para esmagares o destino de um trabalhador que já perdeu tudo quanto possuía, a fim de que resgatasse, intensivamente, os erros do passado distante. 

Referes-te ao título que a convenção humana te conferiu, certamente atendendo a injunções do Poder Divino; entretanto, não me pareces amoldado aos sublimes fundamentos de tua elevada missão no mundo, porquanto o homem que aceitou a mordomia, no quadro dos bens materiais ou espirituais do Planeta, nunca alardeia superioridade, quando consciente das obrigações que lhe cabem, por entender na administração fiel um caminho de aprimoramento, mesmo através de extremo sofrimento moral. 

Distribuir amor e justiça, simultaneamente, na atualidade da Terra, em que a maioria das criaturas menosprezam semelhantes dádivas, é crivar-se de dores. 

Admites que o homem viverá sem contas, ainda mesmo aquele que se supõe capacitado para julgar o próximo, em definitivo? Acreditas haja o teu raciocínio acertado em todos os enigmas da senda? Terás agido imparcialmente em todas as decisões? 

Não creias… O Justo Juiz foi crucificado num madeiro de linhas retas por devotar-se no mundo à extrema retidão. 

Todos nós, na estrada multissecular do conhecimento edificante, muita vez colocamos o desejo acima do dever e o capricho a cavaleiro dos princípios redentores que nos compete observar. 

Em quantas ocasiões já se te inclinou o mandato às contrafações da política desintegrante dos homens, ávidos de transitório poder? Em quantos processos permitiste que os teus sentimentos se turvassem no personalismo delinquente?!

O homem, em cuja presença identificava Saldanha perigoso inimigo, revelava-se infinitamente confundido. Palidez cadavérica lhe cobria o semblante, sobre o qual grossas lágrimas principiaram a correr.

— Juiz, — continuou Gúbio, em voz firme, — não fosse a compaixão divina que te concede ao ministério diversos auxiliares invisíveis, amparando-te as ações, por amor à Justiça que representas, e as vítimas dos teus erros involuntários e das paixões obcecantes daqueles que te cercam não te permitiriam a permanência no cargo. 

Teu palácio residencial mostra-se repleto de sombras. Muitos homens e mulheres, dos que já sentenciaste em mais de vinte anos, nas lides do direito, arrebatados pela morte, não conseguiram seguir adiante, colados que se acham aos efeitos de tuas decisões e demoram-se em tua própria casa, aguardando-te explicações oportunas. 

Missionário da lei, sem hábitos de prece e meditação, únicos recursos através dos quais poderias abreviar o trabalho de esclarecimento que te assiste, grandes surpresas te reserva o transe final do corpo.

Verificando-se pausa mais longa, o magistrado exteriorizou nos olhos indefinível terror, caiu de joelhos e rogou:

— Benfeitor ou vingador, ensina-me o caminho! Que devo fazer a benefício do condenado?

— Facilitarás a revisão do processo e restituí-lo-ás à liberdade.

— Ele é, então, inocente? — Indagou o interlocutor, exigindo bases sólidas a futuras conclusões.

— Ninguém sofre sem necessidade à frente da Justiça Celeste e tão grande harmonia rege o Universo que os nossos próprios males se transubstanciam em bênçãos. Explicaremos tudo.

E, dando-nos a perceber que precisava gravar na mente do juiz quanto se lhe pedia da ação providencial, continuou:

— Não te circunscreverás à mencionada medida. Amparar-lhe-ás a filha, hoje internada por favor em tua casa, em estabelecimento condigno, onde possa receber a necessária educação.

— Mas, — interveio o jurista, — esta menina não é minha filha.

— Não serias, entretanto, convocado por nós a semelhante encargo, se não pudesses recebe-lo. 

Crês, porém, que o dinheiro em disponibilidade deva satisfazer tão somente as exigências daqueles que se reuniram a nós, dentro dos laços consanguíneos? 

Liberta o coração, meu amigo! Respira em mais alto clima. Aprende a semear amor no chão em que pisas. Quanto mais eminentemente colocada na experiência humana, mais intensivo pode tornar-se o esforço da criatura, na própria elevação. 

Na Terra, a justiça abre tribunais para examinar o crime em seus aspectos variados, especializando-se na identificação do mal; todavia, no Céu, a Harmonia descerra santuários, apreciando-nos a bondade e a virtude, consagrando-se à exaltação do bem, na totalidade dos seus ângulos divinos. 

Enquanto é tempo, faze de Jorge um amigo e da filha dele uma companheira de luta que te afague, um dia, os cabelos brancos e te ofereça, mais tarde, a luz da prece, quando teu Espírito for compelido a transpor o escuro portal do túmulo.

O juiz, em pranto, interrogou:

— Como agir, porém?

— Amanhã, — informou o Instrutor, calmo e persuasivo, — te erguerás do leito sem a lembrança integral do nosso entendimento de agora, porque o cérebro de carne é um instrumento delicado, incapaz de suportar a carga de duas vidas, mas ideias novas surgir-te-ão formosas e claras, com respeito ao bem que necessitas praticar. 

A intuição, contudo, que é o disco milagroso da consciência, funcionará livremente, retransmitindo-te as sugestões desta hora de luz e paz, qual canteiro de bênçãos ofertando-te flores perfumosas e espontâneas. 

Chegado esse momento, não permitas que o cálculo te abafe o impulso das boas obras. No coração hesitante, o raciocínio vulgar luta contra o sentimento renovador, turvando-lhe a corrente límpida, com o receio de ingratidão ou com ruinosa obediência aos preconceitos estabelecidos.

Diante de Saldanha que acompanhava a cena, demonstrando indizível bem-estar, Jorge e a filha trocavam olhares de alegria e esperança.

O magistrado contemplou-os, pensativo, notando-se-lhe o propósito de endereçar ao nosso Instrutor novas interpelações. Dominado, no entanto, pelas emoções do minuto, calou-se, resignado e humilde.

Gúbio, entretanto, perscrutando lhe os pensamentos, tocou-lhe a fronte, de leve, com ambas as mãos e falou em voz firme:

Gostarias que me expressasse a respeito da culpabilidade do réu, a fim de que a tua consciência de julgador consolide certos pontos de vista, já esposados no processo a que nos reportamos. Em verdade, quanto ao delito de que é presentemente acusado, Jorge tem as mãos limpas. 

Entretanto, a existência humana é como precioso tecido de que os olhos mortais apenas enxergam o lado avesso. Nos sofrimentos de hoje, solvemos os débitos de ontem. 

Com isto, não desejamos dizer que nossas falhas, muita vez oriundas da ociosidade ou da impenitência de agora, gerando resultados ruinosos para nós mesmos e para outrem, sejam recursos providenciais ao pagamento de alheias dívidas, porque assim consagraríamos a fatalidade por soberana do mundo, quando, em todas as horas, criamos causas e consequências com os nossos atos cotidianos. 

As entidades que pranteiam às tuas portas não choram sem razão e, mais dia menos dia, a toga que envergas temporariamente acertará contas com todos aqueles que, em torno dela, se lastimam. 

Jorge, porém, que aqui não se encontra em reclamações e, sim, trazido por nós para benéfico entendimento, liberou certa parte do pretérito doloroso.

Gúbio, a essa altura, fez grande pausa em suas elucidações, fixou o interlocutor mais profundamente e prosseguiu, com grave entono:

— Juiz, pessoas e sucessos que nos afetam a consciência de maneira particular não constituem objeto vulgar na marcha reveladora da vida. 

Por agora, trazes a mente subjugada pelo choque biológico do retorno à carne e não poderias seguir-nos na exumação do passado recente. Já te auscultei, no entanto, os arquivos mentais e vejo os quadros que o tempo não destrói. 

No século findo, guardavas o título de posse sobre extensa faixa de terra e orgulhavas-te da posição de senhor de dezenas de escravos que, em maioria reencarnados, atualmente te integram a falange de colaboradores nos trabalhos comuns a que te sentes constrangido pela máquina funcional. A todos eles, deves assistência e carinho, auxílio e compreensão. 

Nem todos os servos do passado, porém, se confundem no mesmo naipe de relações com o teu Espírito. Alguns se salientaram no drama que viveste e volvem ao teu caminho, impressionando-te o coração. 

Jorge de hoje era ontem teu escravo, embora nascesse quase sob o mesmo teto que te assinalou os primeiros vagidos. Era teu servidor, perante os códigos terrestres, e irmão consanguíneo, ante as divinas leis, não obstante afagado por outra mãe. 

Nunca lhe perdoaste semelhante aproximação, considerada em tua casa por aviltante ultraje ao nome familiar. Chegados ambos à tarefa da paternidade, teu filho de ontem e de hoje lhe transviou a filha do pretérito e de agora e, quando semelhante amargura sobreveio, com escárnio supremo para um lar cativo e triste, determinaste medidas condenáveis que culminaram no insofreável desespero de Jorge em outros tempos, o qual, desarvorado e semilouco, não somente roubou a vida ao corpo de teu filho que lhe invadira o santuário doméstico, mas também a própria existência, suicidando-se em dramáticas circunstâncias. 

Todavia, nem a dor, nem a morte apagam as aflições da responsabilidade que só o regresso à oportunidade de reconciliação consegue remediar. E aqui te encontras, de novo, diante do condenado, junto do qual sempre te inclinaste à antipatia gratuita, e ao lado da jovem a quem prometeste amparar por filha muito querida ao coração. 

Trabalha, meu amigo! Vale-te dos anos, porque Alencar e tua pupila serão atraídos à bênção do matrimônio. Age enquanto podes. Todo bem praticado felicitará a ti mesmo, porquanto outro caminho para Deus não existe, fora do entendimento construtivo, da bondade ativa, do perdão redentor. 

Jorge, humilhado e desiludido, apagou o desvario deplorável, suportando inominável martírio moral em poucos anos de acusação indébita e prisão tormentosa, com viuvez, enfermidades e privações de toda a espécie.

O nosso orientador fitou-o, compadecido, na pausa mais ou menos longa que se fizera, e rematou:

— Não te dispões, por tua vez, aos testemunhos salvadores?

Abalo salutar, oculto à nossa apreciação, certamente sulcava, fundo, o Espírito do magistrado, que mostrava o semblante extremamente transformado. Vimo-lo levantar-se, em lágrimas, cambaleante. A força magnética do nosso Instrutor alcançara-lhe as fibras mais íntimas, porquanto os olhos dele pareciam iluminados de súbita determinação.

Abeirou-se de Jorge, estendeu-lhe a destra em sinal de fraternidade, que o filho de Saldanha beijou igualmente em pranto, e, em seguida, acercou-se da jovem, abriu-lhe os braços acolhedores e exclamou comovido:

— Serás minha filha, doravante, para sempre!…

Indescritível contentamento marcou-nos o inolvidável minuto.

Gúbio ajudou-os a partir na direção do interior doméstico, e, quando nos dispúnhamos a reconduzir Jorge ao presídio de cura onde o corpo em repouso o esperava, Saldanha, plenamente modificado por uma alegria misteriosa que lhe refundia as expressões fisionômicas, avançou para o nosso Instrutor e, tentando oscular-lhe as mãos, murmurou:

— Nunca pensei encontrar noite tão gloriosa quanto esta!

Ia desmanchar-se em palavras de reconhecimento, mas Gúbio, com naturalidade, obrigou-o a reajustar-se, acrescentando:

— Saldanha, nenhum júbilo, depois do amor de Deus, é tão grande quanto aquele que recolhemos no amor espontâneo de um amigo. Semelhante alegria, neste momento, é nossa, porque te sentimos a amizade nobre e sincera no coração.

E um abraço de carinhosa fraternidade coroou a tocante e inesquecível cena.


André Luiz





VÍDEO:

Libertação - Cap. 13 - Convocação familiar
O Espírito da Letra

Apresentação: André Luiz Ruiz 




O Espírito da Letra - Libertação - Analisando a obra de André Luiz psicografia de Chico Xavier.

Produção - TV Alvorada Espírita - http://www.tvalvoradaespirita.com.br 

Realização - TV Mundo Maior - http://www.tvmundomaior.com.br







Agar - Livro Cartas do Coração - Espíritos Diversos / Chico Xavier - 1ª Parte, Cap. 11 - Bilhete do coração



Agar - Livro Cartas do Coração - Espíritos Diversos / Chico Xavier - 1ª Parte, Cap. 11


Bilhete do coração


Hoje compreendo que os golpes do mundo são amparo providencial às nossas necessidades de reparação.

Que seria de nós sem o sofrimento que nos ajuda a retificar e aprender?

Terra sem arado, permaneceríamos entre os vermes e as plantas daninhas ou, pedra bruta, jamais nos transformaríamos na obra de utilidade e beleza que o buril deve realizar.

Tenhamos calma e paciência.

Devemos à enxada a alegria da mesa farta e, por vezes, ao remédio amargo, a felicidade da cura.

Um dia saberemos tudo. Por agora, baste-nos a convicção de que nos compete trabalhar, incessantemente, para o bem, porquanto a chave do serviço nos descerrará a sublimidade da experiência e com a experiência elevada marcharemos para a comunhão com Deus.

Não nos cansemos de ajudar. O auxílio aos outros tem uma força desconhecida em nosso favor.

Quem tudo dá, tudo recebe.

Quem se afasta da ilusão, aproxima-se da verdade, adquirindo a companhia da humildade e do amor, os dois anjos invisíveis que abrem as portas do Céu.

Cultivando a serenidade e o bem, no círculo de nossa luta, roguemos, pois, ao Senhor ilumine a nossa cruz.


Agar