segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Allan Kardec - Livro Obras Póstumas - 2ª Parte - Cap. 38 - Credo Espírita




Allan Kardec - Livro Obras Póstumas - 2ª Parte - Cap. 38


Credo Espírita 


Preâmbulo.

Os males da Humanidade provêm da imperfeição dos homens; pelos seus vícios é que eles se prejudicam uns aos outros. Enquanto forem viciosos, serão infelizes, porque a luta dos interesses gerará constantes misérias.

Sem dúvida, boas leis contribuem para melhorar o estado social, mas são impotentes para tornar venturosa a Humanidade, porque mais não fazem do que comprimir as paixões ruins, sem as eliminar. Em segundo lugar, porque são mais repressivas do que moralizadoras e só reprimem os mais salientes atos maus sem lhes destruir as causas. Aliás, a bondade das leis guarda relação com a bondade dos homens; enquanto estes se conservarem dominados pelo orgulho e pelo egoísmo, farão leis em benefício de suas ambições pessoais. A lei civil apenas modifica a superfície; somente a lei moral pode penetrar o foro íntimo da consciência e reformá-lo.

Reconhecido, pois, que o atrito oriundo do contato dos vícios é que faz infortunados os homens, o único remédio para seus males está em se melhorarem eles moralmente. Uma vez que nas imperfeições se encontra a causa dos males, a felicidade aumentará na proporção em que as imperfeições diminuírem.

Por melhor que seja uma instituição social, sendo maus os homens, eles a falsearão e lhe desfigurarão o espírito para a explorarem em proveito próprio. Quando os homens forem bons, organizarão boas instituições, que serão duráveis, porque todos terão interesse em conservá-las.

A questão social não tem, pois, por ponto de partida a forma de tal ou qual instituição; ela está toda no melhoramento moral dos indivíduos e das massas. Aí é que se acha o princípio, a verdadeira chave da felicidade do gênero humano, porque então os homens não mais cogitarão de se prejudicarem reciprocamente. Não basta se cubra de verniz a corrupção, é indispensável extirpar a corrupção.

O princípio do melhoramento está na natureza das crenças, porque estas constituem o móvel das ações e modificam os sentimentos. Também está nas ideias inculcadas desde a infância e que se identificam com o Espírito; está ainda nas ideias que o desenvolvimento ulterior da inteligência e da razão podem fortalecer, nunca destruir. É pela educação, mais do que pela instrução, que se transformará a Humanidade.

O homem que se esforça seriamente por se melhorar assegura para si a felicidade, já nesta vida. Além da satisfação que proporciona à sua consciência, ele se isenta das misérias materiais e morais, que são a consequência inevitável das suas imperfeições. Terá calma, porque as vicissitudes só de leve o roçarão. Gozará de saúde, porque não estragará o seu corpo com os excessos Será rico, porque rico é sempre todo aquele que sabe contentar-se com o necessário. Terá a paz do espírito, porque não experimentará necessidades fictícias, nem será atormentado pela sede das honrarias e do supérfluo, pela febre da ambição, da inveja e do ciúme. Indulgente para com as imperfeições alheias, menos sofrimentos lhe causarão elas, que, antes, lhe inspirarão piedade e não cólera. Evitando tudo o que possa prejudicar o seu próximo, por palavras e por atos, procurando, ao invés, fazer tudo o que possa ser útil e agradável aos outros, ninguém sofrerá com o seu contato.

Garante a sua felicidade na vida futura, porque, quanto mais ele se depurar, tanto mais se elevará na hierarquia dos seres inteligentes e cedo abandonará esta terra de provações, por mundos superiores, porquanto o mal que haja reparado nesta vida não terá que o reparar em outras existências; porquanto, na erraticidade, só encontrará seres amigos e simpáticos e não será atormentado pela visão incessante dos que contra ele tenham motivos de queixa.

Vivam juntos alguns homens, animados desses sentimentos, e serão tão felizes quanto o comporta a nossa terra. Ganhem assim, passo a passo, esses sentimentos todo um povo, toda uma raça, toda a Humanidade e o nosso globo tomará lugar entre os mundos ditosos.

Será isto uma utopia, uma quimera? Sê-lo-á para aquele que não crê no progresso da alma; não o será para aquele que crê na sua perfectibilidade indefinita.

O progresso geral é a resultante de todos os progressos individuais; mas, o progresso individual não consiste apenas no desenvolvimento da inteligência, na aquisição de alguns conhecimentos. Nisso mais não há do que uma parte do progresso, que não conduz necessariamente ao bem, pois que há homens que usam mal do seu saber. O progresso consiste, sobretudo, no melhoramento moral, na depuração do Espírito, na extirpação dos maus germens que em nós existem. Esse o verdadeiro progresso, o único que pode garantir a felicidade ao gênero humano, por ser o oposto mesmo do mal. Muito mal pode fazer o homem de inteligência mais cultivada; aquele que se houver adiantado moralmente só o bem fará. É, pois, do interesse de todos o progresso moral da Humanidade.

Mas, que importam a melhora e a felicidade das gerações futuras, àquele que acredita que tudo se acaba com a vida? Que interesse tem ele em se aperfeiçoar, em se constranger, em domar suas paixões inferiores, em se privar do que quer que seja a benefício de outrem? Nenhum. A própria lógica lhe diz que seu interesse está em gozar depressa e por todos os meios possíveis, visto que amanhã, talvez, ele nada mais será.

A doutrina do nadismo é a paralisia do progresso humano, porque circunscreve as vistas do homem ao imperceptível ponto da presente existência; porque lhe restringe as ideias e as concentra forçosamente na vida material. Com essa doutrina, o homem nada sendo antes, nem depois, cessando com a vida todas as relações sociais, a solidariedade é vã palavra, a fraternidade uma teoria sem base, a abnegação em favor de outrem mero embuste, o egoísmo, com a sua máxima — cada um por si, um direito natural; a vingança, um ato de razão; a felicidade, privilégio do mais forte e dos mais astuciosos; o suicídio, o fim lógico daquele que, baldo de recursos e de expedientes, nada mais espera e não pode safar-se do tremedal. Uma sociedade fundada sobre o nadismo traria em si o gérmen de sua próxima dissolução.

Outros, porém, são os sentimentos daquele que tem fé no futuro; que sabe que nada do que adquiriu em saber e em moralidade lhe estará perdido; que o trabalho de hoje dará seus frutos amanhã; que ele próprio fará parte das gerações porvindouras, mais adiantadas e mais ditosas. Sabe que, trabalhando para os outros, trabalha para si mesmo. Sua visão não se detém na Terra, abrange a infinidade dos mundos que lhe servirão um dia de morada; entrevê o glorioso lugar que lhe caberá, como o de todos os seres que alcançam a perfeição.

Com a fé na vida futura, dilata-se-lhe o círculo das ideias; o porvir lhe pertence; o progresso pessoal tem um fim, uma utilidade real. Da continuidade das relações entre os homens nasce a solidariedade; a fraternidade se funda numa lei da Natureza e no interesse de todos.

A crença na vida futura é, pois, elemento de progresso, porque estimula o Espírito; somente ela pode dar ao homem coragem nas suas provas, porque lhe fornece a razão de ser dessas provas, perseverança na luta contra o mal, porque lhe assina um objetivo. A formar essa crença no espírito das massas é, portanto, o em que devem aplicar-se os que a possuem.

Entretanto, ela é inata no homem. Todas as religiões a proclamam. Por que, então, não deu, até hoje os resultados que se deviam esperar? É que, em geral a apresentam em condições que a razão não pode aceitar. Conforme a pintam, ela rompe todas as relações com o presente; desde que tenha deixado a Terra, a criatura se torna estranha à Humanidade: nenhuma solidariedade existe entre os mortos e os vivos; o progresso é puramente individual; cada um, trabalhando para o futuro, unicamente para si trabalha, só em si pensa e isso mesmo para uma finalidade vaga, que nada tem de definido, nada de positivo, sobre que o pensamento se firme com segurança; enfim, porque é mais uma esperança que uma certeza material. Daí resulta, para uns, a indiferença, para outros, uma exaltação mística que, isolando da Terra o homem, é essencialmente prejudicial ao progresso real da Humanidade, porquanto negligencia os cuidados que reclama o progresso material, para o qual a Natureza lhe impõe o dever de contribuir.

Todavia, por muito incompletos que sejam os resultados, não deixam de ser efetivos. Quantos homens não se sentiram encorajados e sustentados na senda do bem por essa vaga esperança! Quantos não se detiveram no declive do mal, pelo temor de comprometer o seu futuro! Quantas virtudes nobres essa crença não desenvolveu! Não desdenhemos as crenças do passado, por imperfeitas que sejam, quando conduzem ao bem: elas estavam em correspondência com o grau de adiantamento da Humanidade.

Mas, tendo progredido, a Humanidade reclama crenças em harmonia com as novas ideias. Se os elementos da fé permanecem estacionários e ficam distanciados pelo espírito, perdem toda influência; e o bem que hajam produzido, em certo tempo, não pode prosseguir, porque aqueles elementos já não se acham à altura das circunstâncias.

Para que a doutrina da vida futura doravante dê os frutos que se devem esperar, é preciso, antes de tudo que satisfaça completamente à razão; que corresponda à ideia que se faz da sabedoria, da justiça e da bondade de Deus; que não possa ser desmentida de modo algum pela Ciência. É preciso que a vida futura não deixe no espírito nem dúvida, nem incerteza; que seja tão positiva quanto a vida presente, que é a sua continuação do mesmo modo que o amanhã é a continuação do dia anterior. É necessário seja vista, compreendida e, por assim dizer, tocada com o dedo. Faz-se mister, enfim, que seja evidente a solidariedade entre o passado, o presente e o futuro, através das diversas existências.

Tal a ideia que da vida futura apresenta o Espiritismo. O que a essa ideia dá força é que ela absolutamente não é uma concepção humana com o mérito apenas de ser mais racional, sem contudo oferecer mais certeza do que as outras. É o resultado de estudos feitos sobre os testemunhos oferecidos por Espíritos de diferentes categorias nas suas manifestações, que permitiram se explorasse a vida extracorpórea em todas as suas fases, desde o extremo superior ao extremo inferior da escala dos seres. As peripécias da vida futura, por conseguinte, já não constituem uma simples teoria, ou uma hipótese mais ou menos provável: decorrem de observações. São os habitantes do mundo invisível que vêm eles próprios, descrever os seus respectivos estados e há situações que a mais fecunda imaginação não conceberia, se não fossem patenteadas aos olhos do observador.

Ministrando a prova material da existência e da imortalidade da alma, iniciando-nos em os mistérios do nascimento, da morte, da vida futura, da vida universal, tornando-nos palpáveis as inevitáveis consequências do bem e do mal, a Doutrina Espírita, melhor do que qualquer outra, põe em relevo a necessidade da melhoria individual. Por meio dela, sabe o homem donde vem, para onde vai, por que está na Terra; o bem tem um objetivo, uma utilidade prática. Ela não se limita a preparar o homem para o futuro, forma-o também para o presente, para a sociedade. Melhorando-se moralmente os homens prepararão na Terra o reinado da paz e da fraternidade.

A Doutrina Espírita é assim o mais poderoso elemento de moralização, por se dirigir simultaneamente ao coração, à inteligência e ao interesse pessoal bem compreendido.

Por sua mesma essência, o Espiritismo participa de todos os ramos dos conhecimentos físicos, metafísicos e morais. São inúmeras as questões que ele envolve, as quais, no entanto, podem resumir-se nos pontos seguintes que, considerados verdades inconcussas, formam o programa das crenças espíritas.

Princípios fundamentais da Doutrina Espírita, reconhecidos como verdades inconcussas.


Allan Kardec







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