quarta-feira, 1 de maio de 2024

Joanna de Ângelis - Livro Vida Feliz - Divaldo P. Franco - Cap. 111 - Exame de consciência



Joanna de Ângelis - Livro Vida Feliz - Divaldo P. Franco - Cap. 111


Exame de consciência


Faze um exame de consciência, quando possas e quantas vezes te seja viável.

Muitas queixas e reclamações desapareceriam se o descontente analisasse melhor o próprio comportamento.

Sempre se vê o problema na outra pessoa e o erro estampado no semblante do outro.

Normalmente, quando alguém te cria dificuldades e embaraços está reagindo contra a tua conduta, à forma como te expressaste e à maneira como agiste.

Tem a coragem de examinar-te com mais severidade, rememorando atitudes e palavras. Ao descobrires erros, apressa-te em corrigi-los; busca aquele a quem magoaste e recompõe a situação.

Não persevere em erro, seja qual for a justificação.


Joanna de Ângelis









Fonte: Vida Feliz -pdf

Emmanuel - Livro Paulo e Estêvão - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 9 - Abigail cristã

 

Emmanuel - Livro Paulo e Estêvão - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 9


Abigail cristã


Desde o martírio de Estêvão, agravara-se em Jerusalém o movimento de perseguição a todos os discípulos ou simpatizantes do “Caminho”. Como se fora tocado de verdadeira alucinação, ao substituir Gamaliel nas funções religiosas mais importantes da Cidade, Saulo de Tarso deixava-se fascinar por sugestões de fanatismo cruel.

Impiedosas devassas foram ordenadas a respeito de todas as famílias que revelassem inclinação e simpatia pelas ideias do Messias Nazareno. A igreja modesta, onde a bondade de Pedro prosseguia socorrendo os mais desgraçados, era rigorosamente guardada por soldados, com ordem de impedir as prédicas que representavam o brando consolo dos infelizes. Obcecado pela ideia de resguardar o patrimônio farisaico, o moço tarsense entregava-se aos maiores desmandos e tiranias. Homens de bem foram expulsos da cidade por meras suspeitas.

Operários honestos e até mães de família eram interpelados em escandalosos processos públicos, que o perseguidor fazia questão de movimentar. Iniciou-se um êxodo de grandes proporções, como Jerusalém de há muito não via. A cidade começou a despovoar-se de trabalhadores. O “Caminho” havia seduzido para as suas doces consolações a alma do povo, cansada na incompreensão e no sacrifício. Livre das prestigiosas advertências de Gamaliel, que se retirara para o deserto, e sem a carinhosa assistência de Abigail, que lhe facultava generosas inspirações, o futuro rabino parecia um louco, em cujo peito o coração estivesse ressequido. Debalde, mulheres indefesas suplicavam-lhe piedade; inutilmente, crianças misérrimas pediram complacência para os pais, abandonados como prisioneiros infelizes.

O moço de Tarso parecia dominado por uma indiferença criminosa. As rogativas mais sinceras encontravam no seu Espírito um rochedo áspero. Incapaz de compreender as circunstâncias que lhe haviam modificado os planos e esperanças da vida, imputava o insucesso dos seus sonhos de mocidade àquele Cristo que não conseguira entender. Odiá-lo-ia enquanto vivesse. Não sendo possível encontrá-lo para uma vingança direta, persegui-lo-ia na pessoa dos seus caudatários, através de todos os caminhos. A seu ver, era ele, o carpinteiro anônimo, o causador dos seus fracassos em relação ao amor de Abigail, agora envenenado no seu coração impulsivo por sentimentos estranhos, que, dia a dia, cavavam profundos abismos entre sua figura inolvidável e as lembranças que lhe eram mais carinhosas. Não mais voltara à casa de Zacarias, e, embora os amigos da estrada de Jope instassem por suas notícias, mantinha-se irredutível no círculo do seu egoísmo sufocante. De vez em quando, sentia-se premido por uma saudade singular. Experimentava imensa falta da ternura de Abigail, cuja lembrança nunca mais se lhe havia apartado da alma enrijecida e ansiosa. Mulher alguma poderia substituí-la no carinho do seu coração. Entre angústias extremas, recordava a agonia de Estêvão, sua invejável paz de consciência, as palavras de amor e de perdão; em seguida, via a noiva genuflexa, implorando-lhe amparo com um clarão de generosidade nos olhos súplices. Jamais esqueceria aquela prece angustiada e comovedora, que ela fizera ao abraçar o irmão nos derradeiros instantes de vida. Não obstante a perseguição cruel que o transformara em mola-central de todas as atividades contra a igreja humilde do “Caminho”, Saulo sentia que as necessidades espirituais se multiplicavam no Espírito sedento de consolação.

Oito meses de lutas incessantes passaram sobre a morte de Estêvão, quando o moço tarsense, capitulando ante a saudade e o amor que lhe dominavam a alma, resolveu rever a paisagem florida da estrada de Jope, onde por certo reconquistaria o afeto de Abigail, de maneira a reorganizarem todos os projetos de um futuro ditoso.

Tomou o carro minúsculo com o coração opresso. Quantas hesitações não vencera para retornar à antiga situação, humilhando a vaidade de homem convencionalista e inflexível! A luz crepuscular enchia a Natureza de reflexos de ouro fulgurante. Aquele céu muito azul, a verdura agreste, as brisas cariciosas da tarde, eram os mesmos. Sentia-se reviver. Sonhos e esperanças continuavam, também, intangíveis. E refletia na melhor maneira de reaver a dedicação da mulher escolhida, sem humilhação para sua vaidade. Contar-lhe-ia sua desesperação, diria das suas insônias, da continuidade do imenso amor que nenhuma circunstância conseguira destruir. Embora mantivesse firme o propósito de omitir toda e qualquer alusão ao carpinteiro de Nazaret, falaria a Abigail do remorso por não lhe haver estendido mãos amigas no instante em que todas as esperanças de sua alma feminina se haviam abalado, ante o imprevisto da morte dolorosa do irmão, em circunstâncias tão amargas. Esclareceria os detalhes de seus sentimentos. Havia de referir-se à recordação indelével da sua prece angustiosa e ardente, quando Estêvão penetrava os umbrais da morte. Atraí-la-ia ao coração que jamais a esquecera, beijar-lhe-ia os cabelos, formularia novos projetos de amor e felicidade.

Mergulhado em tais pensamentos, atingiu a porta de entrada, identificando as roseiras em flor.

O coração batia-lhe descompassado, quando Zacarias surgiu com grande surpresa. Um abraço demorado assinalou o reencontro. Abigail foi objeto de sua primeira interrogação. Com estranheza notou que Zacarias entristeceu.

— Pensei que algum de teus amigos já te houvesse levado a desagradável notícia — começou dizendo, enquanto o jovem buscava ouvi-lo ansioso. — Abigail, há mais de quatro meses, adoeceu dos pulmões e, para falar com franqueza, não temos qualquer esperança.

Saulo fizera-se lívido.

— Logo depois que voltou precipitadamente de Jerusalém, esteve mais de um mês entre a vida e a morte. Em vão nos esforçamos, eu e Ruth, para restituir-lhe o viço e as cores da juventude. A pobrezinha entrou a definhar e, em pouco tempo, acamou-se abatida. Solicitei tua presença, com ansiedade, a fim de resolvermos o possível em seu benefício, mas não apareceste. Parecia-me que um ambiente novo lhe proporcionaria o restabelecimento da saúde, mas, faltaram-me os recursos para uma iniciativa mais ampla, tal como se impunha.

— Mas, Abigail fez alguma queixa a meu respeito? — perguntou Saulo, aflito.

— De modo algum. Aliás, o regresso inesperado de Jerusalém, a enfermidade súbita e teu injustificável afastamento desta casa eram de molde a causar-nos dúvidas e receios; mas logo se verificaram melhoras positivas, após o período mais agudo da febre, e ela nos tranquilizou a respeito. Explicou a necessidade da tua ausência, disse estar ciente dos teus muitos afazeres e encargos políticos; referiu-se com gratidão ao acolhimento que lhe dispensaram teus parentes e, quando Ruth, para confortá-la, qualifica de ingrato o teu procedimento, Abigail é sempre a primeira a defender-te.

Saulo quis dizer alguma coisa, enquanto Zacarias fazia uma pausa, mas nada lhe ocorreu à mente. A emoção que lhe causava a nobreza espiritual da noiva amada, paralisava-lhe as ideias.

— Apesar do seu esforço para tranquilizar-nos — continuava o marido de Ruth —, temos a impressão de que nossa filha adotiva se encontra dominada por desgostos profundos, que procura ocultar. Enquanto podia andar, visitava os pessegueiros, à mesma hora em que costumava faze-lo contigo. A princípio, minha mulher surpreendeu-a chorando, nas sombras da noite; mas, em vão procuramos sondar a causa de seus íntimos padecimentos. O único motivo que alegava era justamente o da enfermidade, que começava a minar-lhe o organismo. Mais tarde estagiou uma semana, por aqui, um pobre velho chamado Ananias. Deu-se então um fato estranho: Abigail encontrou-o em casa dos nossos rendeiros e, todas as tardes, detinha-se a ouvi-lo horas a fio, manifestando daí para cá muita fortaleza espiritual. Ao despedir-se, o pobre mendigo deu-lhe como lembrança alguns pergaminhos com os ensinamentos do famoso carpinteiro de Nazaret…

— Do carpinteiro? — atalhou Saulo evidentemente contrariado. — E depois?

— Tornou-se dedicada leitora do chamado Evangelho dos galileus. Consideramos a conveniência de afastá-la de semelhante novidade espiritual, mas Ruth ponderou ser essa, agora, a sua única distração. Com efeito, desde que começou a falar no discutido Jesus Nazareno, observamos que Abigail se enchera de profundas consolações. E o fato é que não mais a vimos chorar, embora se lhe não apagasse do semblante abatido a dolorosa expressão de amargura e melancolia. Sua conversação, daí por diante, parece haver adquirido inspirações diferentes. A dor transformou-se-lhe em confortadora expressão de alegria íntima. E fala a teu respeito com um amor cada vez mais puro. Dá impressão de haver descoberto nos misteriosos escaninhos da alma a energia de uma vida nova.

Depois de um suspiro, Zacarias terminava:

— E, contudo, a mudança não alterou a marcha da enfermidade que a devora devagarinho. Dia a dia, vemo-la inclinar-se para o túmulo, como flor que tomba do hastil ao sopro do vento forte.

Saulo experimentava indisfarçável angústia. Penosa emoção revolvia-lhe a alma generosa e sensível. Como definir-se? Esmagavam-lhe o espírito amargurosas interrogações. Quem era, afinal, aquele Jesus que o topava em toda parte? O interesse de Abigail pelo Evangelho perseguido revelava a vitória do carpinteiro nazareno a contrastar os próprios sonhos da sua mocidade.

— Mas, Zacarias — perguntou irritadiço o doutor de Tarso —, por que não impediste semelhante contato? Esses velhos feiticeiros percorrem as estradas disseminando a confusão. Surpreende-me essa condescendência, porquanto nossa fidelidade à Lei não admite, ou, pelo menos, nunca deverá admitir transigências.

O interpelado recebeu a recriminação com serenidade e acentuou:  

— Antes de tudo, importa considerar que pedi em vão o socorro da tua presença, para orientar-me. E, além do mais, quem teria coragem de sonegar o remédio ao doente amado? Desde que lhe vi a resignação santificada, fiz o propósito de não me referir aos seus novos pontos de vista em matéria de crença religiosa.

E como Saulo estivesse engolfado em profundas cismas, sem saber o que responder, o bom homem rematou:

— Vem comigo, verás com os próprios olhos!…

O rapaz seguiu-lhe os passos, cambaleando. As ideias baralhavam-se-lhe no cérebro dolorido. Aquelas notícias inesperadas envenenavam-lhe o coração.

Reclinada no leito, assistida pela afeição maternal de Ruth, a moça de Corinto estampava no rosto um profundo abatimento. Muito magra, a epiderme adquirira a cor do marfim, mas o olhar lúcido denotava absoluta calma espiritual. Carinhosa serenidade estampava-se-lhe na fisionomia entristecida. De vez em quando, renovava-se a dispneia com prolongada aflição, voltando-se então para a janela aberta, como se dali esperasse remédio ao seu cansaço, através das brisas frescas que chegavam do seio generoso da Natureza.

Ao vê-la, Saulo não dissimulou o seu espanto. A jovem, por sua vez, recebendo a jubilosa surpresa, tomou-se de sincera e transbordante alegria.

Saudações afetuosas se trocaram entre ambos, enquanto os olhos traduziam a saudade angustiosa com que haviam esperado aquele momento. O futuro rabino acariciou-lhe as mãos mimosas, que pareciam agora modeladas em cera translúcida. Falaram da esperança que os alentara, constante, antes do reencontro. Notando que eles desejavam ficar sós, para confidenciar mais à vontade, Zacarias e Ruth retiraram-se discretamente.

— Abigail! — exclamou Saulo comovidíssimo, logo que se vira a sós — abdiquei o meu orgulho e a minha vaidade de homem público para vir até aqui, perguntar se me perdoaste, se me não esqueceste!

— Esquecer-te? — respondeu ela de olhos úmidos. Por mais rude e longa que seja a estação de sol ardente, a folha do deserto não poderá esquecer a chuva benéfica que lhe deu vida. Não me fales, igualmente, em perdão, pois acaso poderá alguém perdoar-se a si mesmo? E nós, Saulo, pertencemo-nos um ao outro para a eternidade. Não me disseste, muitas vezes, que eu era o coração do teu cérebro?

Ouvindo o timbre caricioso daquela voz amada, o jovem de Tarso comovia-se nas entranhas do próprio ser arrebatado e ardente. Aquela humildade e aquele tom de ternura penetravam-lhe o coração, reconquistando-lhe o discernimento para o caminho reto.

Guardando, entre as suas, as mãos pálidas da noiva, exclamou com um lampejo de alegria nos olhos:

— Por que dizes que “eras o coração”, se ainda és e sê-lo-ás para sempre? Deus abençoará nossas esperanças. Realizaremos nosso ideal. Voltei para levar-te comigo. Teremos um lar, serás nele a rainha!…

Dominada por indefinível alegria, a noiva, que o contemplava com lágrimas, murmurou:

— Desconfio, Saulo, que os lares da Terra não foram feitos para nós!… Deus sabe quanto desejei, ardentemente, ser a mãe carinhosa de teus filhos; como conservei o ideal acima de todas as circunstâncias, para aformosear tua existência com o meu carinho! Desde menina, em Corinto, vi mulheres que desbaratavam os tesouros do Céu, simbolizados no amor do esposo e dos filhinhos; e pensei que o Senhor me concederia o mesmo patrimônio de esperanças divinas, pois aguardava as bênçãos do santuário doméstico para glorificá-lo de todo o coração. Para exaltá-lo, idealizei a vida do homem amado, que me auxiliaria a erguer o altar da prole; e, assim que me chegaste, organizei vastos planos de uma vida santa e venturosa, na qual pudéssemos honrar a Deus.

Saulo escutava comovido. Nunca lhe observara tamanha largueza de raciocínio e lucidez, naquele tom de ternura tranquila.

— Mas o Céu — prosseguiu resignada — retirou-me as possibilidades de semelhante ventura na Terra. Nos meus primeiros dias de solidão, visitava os lugares ermos, como a procurar-te, requisitando o socorro do teu afeto. Os pessegueiros de nossa predileção pareciam dizer que nunca mais voltarias; a noite amiga aconselhava-me a esquecer; o luar, que me ensinaste a bem-querer, agravava as minhas recordações e amortecia as minhas esperanças. Da peregrinação de cada noite, voltava com lágrimas nos olhos, filhas do desespero do coração. Embalde procurava tua palavra confortadora. Sentia-me profundamente só. Para lembrar e seguir tuas advertências, recordava que me chamaste a atenção, à última vez que nos encontramos, para a amizade de Zacarias e de Ruth. É verdade que não tenho outros amigos mais fiéis e generosos que eles; entretanto, não lhes poderia ser mais pesada na vida, além do que sou. Evitei, então, confiar-lhes minhas angústias. Nos primeiros meses da tua ausência, amarguei sem consolo a minha grande desdita. Foi quando surgiu aqui um velhinho respeitável, chamado Ananias, que me deu a conhecer as luzes sagradas da nova revelação. Conheci a história do Cristo, o Filho de Deus vivo; devorei o seu Evangelho de redenção, edifiquei-me nos seus exemplos. Desde essa hora, compreendi-te melhor, conhecendo a minha própria situação.

Súbito acesso de tosse cortou-lhe a narrativa.

As palavras da noiva caíam-lhe no coração como gotas de fel. Nunca experimentara dor moral tão aguda. Verificando a sinceridade natural, o carinho doce daquelas confissões, sentia-se pungido de acerbos remorsos. Como pudera abandonar, assim, a escolhida de sua alma, olvidando-lhe a fidelidade e o amor? Onde encontrara tamanha dureza de espírito para esquecer deveres tão sagrados? Agora, vinha encontrá-la exânime, desiludida de realizar na Terra os sonhos da juventude. Além de tudo, o carpinteiro odiado parecia tomar-lhe o lugar no coração da noiva adorada. Naquele momento, não experimentava apenas o desejo de lhe arrasar a doutrina e os adeptos, mas sentia ciúmes dele na alma caprichosa. De que poderes podia dispor o nazareno obscuro e martirizado na cruz, para conquistar os sentimentos mais puros da noiva carinhosa?

— Abigail — disse comovido —, abandona as ideias tristes que poderiam envenenar os sonhos de nossa mocidade. Não te entregues a ilusões. Renovemos nossas esperanças. Breve estarás restabelecida. Sei que me perdoaste a morte de teu irmão, e minha família te receberá em Tarso com júbilos sinceros! Seremos felizes, muito felizes!…

Seus olhos pareciam pairar numa região de sonhos deliciosos, procurando reavivar no coração amado os seus projetos de felicidade terrena.

Ela, porém, misturando sorrisos e lágrimas, acrescentava:

— Francamente, querido, eu também desejaria reviver!… Ser tua, entretecer teus sonhos de juventude, inventar estrelas para o céu da tua existência; tudo isso constitui meu ideal de mulher!… Ah! se pudesse, buscaria os teus parentes com amor, haveria de conquistá-los para o meu coração, ao preço de um grande afeto; mas, pressinto que os planos de Deus são diferentes, no que concerne aos nossos destinos. Jesus chamou-me para a sua família espiritual…

— Ai de mim! — exclamou Saulo cortando-lhe a palavra — em toda parte, topo expressões do carpinteiro de Nazaret! Que flagelo! Não repitas semelhante coisa. Deus não seria justo se te sequestrasse ao meu afeto. Quem poderia, então, como esse Cristo, interpor-se aos nossos votos?

Mas Abigail fixou-o com um gesto súplice e falou:

— Saulo, de que nos valeria a desesperação? Não será melhor inclinarmo-nos com paciência aos sagrados desígnios? Não alimentemos dúvidas prejudiciais. Este leito é de meditação e de morte. O sangue, várias vezes, já me golfou prenunciando o fim. Mas nós cremos em Deus e sabemos que esse fim é apenas corporal. Nossa alma não morrerá, amar-nos-emos eternamente…

— Não concordo — respondia ele extremamente aflito —, essas presunções são fruto de ensinamentos absurdos, quais os desse fanático nazareno que morreu na cruz, entre a humilhação e a covardia. Nunca assim foste, melancólica e desalentada; somente os sortilégios galileus podiam convencer-te de tais absurdos funestos. Mas, procura raciocinar por ti mesma! Que te deu o crucificado senão tristeza e desolação?

— Enganaste, Saulo! Não me sinto desanimada, embora convicta da impossibilidade de minha ventura terrena. Jesus não foi um mestre vulgar de sortilégios, foi o Messias dispensador de consolação e vida. Sua influência renovou-me as forças, saturou-me de bom ânimo e verdadeira compreensão dos desígnios supremos. Seu Evangelho de perdão e amor é o tesouro divino dos sofredores e deserdados do mundo.

O jovem não conseguia dissimular a irritação que lhe vagava na alma.

— Sempre o mesmo refrão — disse confuso — invariavelmente, a afirmativa de ter vindo para os infelizes, para os doentes e infortunados. Mas, as tribos de Israel não se compõem apenas de criaturas dessa espécie. E os homens valorosos do povo escolhido? E as famílias de tradições respeitáveis? Estariam fora da influência do Salvador?

— Tenho lido os ensinamentos de Jesus — respondeu a moça com firmeza — e suponho compreender as tuas objeções. O Cristo, cumprindo a sagrada palavra dos profetas, revela-nos que a vida é um conjunto de nobres preocupações da alma, a fim de que marchemos para Deus pelos caminhos retos. Não podemos conceber o Criador como juiz ocioso e isolado, senão como Pai desvelado no benefício de seus filhos. Os homens valorosos a que te referes, os forros de enfermidades e sofrimentos, na posse das bênçãos reais de Deus, deviam ser filhos laboriosos, preocupados com o rendimento da tarefa que foram chamados a cumprir, a prol da felicidade de seus irmãos. Mas, no mundo, temos contra nossas tendências superiores o inimigo que se instala em nosso próprio coração. O egoísmo ataca a saúde, o ciúme prejudica o mandato divino, como a ferrugem e a traça que inutilizam nossas vestes e instrumentos, quando nos descuidamos. São poucos os que se recordam da proteção divina, nos dias alegres da fartura, como raríssimos os que trabalham à revelia do aguilhão. Isso demonstra que o Cristo é um roteiro para todos, constituindo-se em consolo para os que choram e orientação para as almas criteriosas, chamadas por Deus a contribuir nas santas preocupações do bem.

Saulo estava impressionado com aquela clareza de raciocínio. Mas a conversação exigira da enferma maior esforço e consequente fadiga. A respiração tornara-se difícil, e não tardou que o sangue lhe borbotasse do peito em prolongada hemoptise. Aquele sofrimento, adornado de ternura e humildade, comovia e exasperava profundamente o noivo. Compreendeu que seria impiedoso atacar perante a noiva aquele Jesus que lhe cumpria perseguir até ao fim. Não queria crer que a sua Abigail estivesse nas vésperas da morte. Preferia encarar o futuro com otimismo. Restabelecida, fá-la-ia voltar aos seus antigos pontos de vista. Não toleraria a intromissão do Cristo no santuário doméstico. No esforço introspectivo, entretanto, concluiu que precisava dar uma trégua aos seus pensamentos antagônicos, para cogitar dos problemas essenciais da sua própria tranquilidade. A jovem enferma, após a crise que durara minutos longos e tristes, tinha os grandes olhos serenos e lúcidos. Contemplando-a naquela doce atitude de suprema resignação, Saulo de Tarso experimentou enternecedoras comoções íntimas. Seu temperamento arrebatado entregava-se facilmente às impressões extremadas. Aproximando-se mais da noiva amada, tinha os olhos úmidos. Desejou acariciá-la como se o fizesse a uma criança.

— Abigail — murmurou ternamente —, não falemos mais de ideias religiosas. Perdoa-me! Recordemos nosso porvir de flores, esqueçamos tudo para consolidar as melhores esperanças.

E as palavras lhe borbulhavam ardentes de emoção. O carinho que evidenciavam era sintoma do arrependimento e das aspirações nobres e sinceras que lhe trabalhavam, agora, no espírito angustiado. Entretanto, como se fora presa de singular abatimento depois do esforço despendido, a jovem de Corinto estava lânguida, receando prosseguir no colóquio, em virtude dos acessos de tosse que a ameaçavam frequentemente. O noivo, preocupado, compreendeu a situação e, apertando-lhe as mãos transparentes, beijou-as enternecido.

— Precisas repousar — disse com inflexão carinhosa —, não te preocupes por minha causa. Dar-te-ei de minhas próprias forças. Breve estarás restabelecida.

E, depois de envolvê-la num olhar cheio de gratidão e infinita ternura, rematava:

— Voltarei a ver-te todas as noites que possa afastar-me de Jerusalém, e logo que puderes voltaremos a ver o luar, lá no jardim, para que a Natureza abençoe os nossos sonhos, sob as vistas de Deus.

— Sim, Saulo — disse pausadamente —, Jesus nos concederá o melhor. De qualquer modo, no entanto, estarás no meu coração, sempre, sempre…

O doutor da Lei ia despedir-se, mas refletiu que a noiva nada lhe dissera com referência ao irmão. A generosidade daquele silêncio impressionava-o. Preferia ser acusado, discutir o feito com as suas penosas circunstâncias, para que também se justificasse. Mas, em vez de reprimendas, encontrava carícias, em vez de exprobrações, uma tranquilidade generosa, com que a meiga jovem sabia ocultar as profundas feridas que lhe iam n'alma.

— Abigail — exclamou algo hesitante —, antes de partir, quisera saber francamente se me desculpaste pela morte de Estêvão. Nunca mais pude falar-te das contingências que me levaram a tão triste desfecho; no entanto, estou convicto de que tua bondade olvidou minha falta.

— Por que te recordas disso? — respondeu-lhe esforçando-se por manter a voz firme e clara. — Minh'alma está agora tranquila. Jeziel está com o Cristo e morreu legando-te um pensamento amistoso. Que poderia eu reclamar de minha parte, se Deus tem sido tão misericordioso para comigo? Ainda agora, estou agradecendo ao Pai justo, de todo o coração, a dádiva da tua presença nesta casa. Há muito vinha pedindo ao Céu não me deixasse morrer sem te rever e ouvir.

Saulo calculou a extensão daquela generosidade espontânea e teve os olhos úmidos. Despediu-se. A noite fresca estava repleta de sugestões para o seu espírito. Nunca meditara nos insondáveis desígnios do Eterno, como naquele momento em que recebera tão profundas lições de humildade e amor, da mulher amada. Experimentava na alma opressa o embate de duas forças antagônicas, que lutavam entre si para a posse do seu coração generoso e impulsivo.

Não compreendia Deus senão como um senhor poderoso e inflexível. À sua vontade soberana, dobrar-se-iam todas as preocupações humanas. Mas começava a perquirir o motivo de suas dolorosas inquietudes. Por que não encontrava, em parte alguma, a paz anelada ardentemente? E, todavia, aquela gente miserável do “Caminho” entregava-se às algemas do cárcere, sorridente e tranquila. Homens enfermos e valetudinários, isentos de qualquer esperança do mundo, suportavam-lhe as perseguições com louvores no coração. O próprio Estêvão, cuja morte lhe servira de exemplo inesquecível, abençoara-o pelos sofrimentos recebidos por amor ao carpinteiro de Nazaret. Aquelas criaturas desamparadas gozavam de uma tranquilidade que ele desconhecia. O quadro da noiva doente não lhe saía dos olhos. Abigail era sensível e afetuosa, mas lembrava sua ansiedade feminina, a intensidade de suas preocupações de mulher, quando, eventualmente, não conseguia comparecer com pontualidade no adorável recanto da estrada de Jope. Aquele Jesus desconhecido proporcionara-lhe forças ao coração. Se era inconteste que a enfermidade lhe extinguia a vida aos poucos, também evidente era o rejuvenescimento das suas energias espirituais. A noiva falara-lhe como que tocada de novas inspirações; aqueles olhos pareciam contemplar interiormente a paisagem de outros mundos.

Essas reflexões não lhe deram ensejo à admiração da Natureza. Reentrando em Jerusalém, guardou a impressão de que despertava de um sonho. À sua frente desenhavam-se as linhas majestosas do grande santuário. O orgulho de raça falava-lhe mais forte ao espírito. Era impossível conferir superioridade aos homens do “Caminho”. Bastou a visão do Templo para que encontrasse em si mesmo os esclarecimentos que desejava. A seu ver, a serenidade dos discípulos do Cristo provinha, naturalmente, da ignorância que lhes era apanágio. Geralmente, os que se afeiçoavam aos galileus eram, apenas, criaturas que o mundo desclassificara pela decadência física, pela educação falha, pelo supremo abandono. O homem de responsabilidade, por certo, não poderia encontrar a paz a preço tão vil. Figurara-se-lhe haver resolvido o problema. Continuaria a luta. Contava com o breve restabelecimento da noiva; logo que possível desposaria Abigail e, com facilidade, dissuadi-la-ia dos fantasiosos quão perigosos engodos daqueles ensinamentos condenados. Do âmbito do seu lar, feliz, prosseguiria na perseguição de quantos esquecessem a Lei, trocando-a por outros princípios.

Esses raciocínios lhe acalmaram, de certo modo, as inquietações.

Mas, no dia seguinte, manhã alta, um mensageiro de Zacarias golpeava-lhe a alma com uma notícia grave: Abigail piorara, estava agonizante!

Incontinente, tomou o caminho de Jope, ansioso de arrebatar a bem-amada ao perigo iminente.

Ruth e o marido estavam desolados. Desde a madrugada, a enferma caíra em penosa prostração. Os vômitos de sangue sucediam-se ininterruptos. Dir-se-ia que só esperava a visita do noivo para morrer. Saulo escutou-os, lívido como cera. Mudo, dirigiu-se para o quarto, onde o ar fresco penetrava embalsamado, trazendo a mensagem das flores do pomar e do jardim, que pareciam enviar despedidas às mãos delicadas e carinhosas que lhes haviam dado a vida.

Abigail recebeu-o com um raio de infinita alegria nos olhos translúcidos. O tom de marfim do semblante abatido acentuara-se rapidamente. O peito arfava-lhe precípite, o coração batia sem ritmo. Sua expressão geral evidenciava a derradeira agonia. Saulo aproximou-se angustiado. Pela primeira vez na vida, sentia-se trêmulo diante do irremediável. Aquele olhar, aquela palidez de mármore, aquela aflição tocada de angústia, anunciavam-lhe o desenlace. Depois de inquiri-la, quanto à razão daquele abatimento inesperado, tomou-lhe as mãos flácidas, banhadas do suor frio dos moribundos.

— Como foi isso, Abigail? — dizia perturbado — ainda ontem, deixei-te tão esperançado… Pedi sinceramente a Deus te curasse para mim!…

Extremamente sensibilizados, Zacarias e sua mulher afastaram-se.

Vendo que a noiva tinha imensa dificuldade em expor as últimas ideias, Saulo ajoelhou-se a seu lado, cobriu-lhe as mãos de beijos ardentes. A agonia dolorosa parecia-lhe o sofrimento injustificável, que o Céu houvera enviado a um anjo. Ele, que trazia o espírito ressecado pela hermenêutica das leis humanas, sentiu que chorava intensamente pela primeira vez. Lendo-lhe a sensibilidade através das lágrimas que lhe desciam silenciosamente dos olhos, Abigail esboçou um gesto de carinho com dificuldade infinita. Conhecia Saulo e comprovara-lhe a rigidez do caráter. Aquele pranto revelava o calvário íntimo do bem-amado, mas demonstrava, igualmente, o alvorecer de uma vida nova para o seu espírito.

— Não chores, Saulo — murmurou dificilmente —, a morte não é o fim de tudo…

— Quero-te comigo em toda a vida — replicou o rapaz desfeito em lágrimas.

— E, contudo, é preciso morrer para vivermos verdadeiramente — acrescentava a agonizante, cortando as palavras com a respiração opressa. — Jesus nos ensinou que a semente caindo na terra fica só, mas se morrer dá muitos frutos!… Não te rebeles contra os desígnios supremos que me arrebatam do teu convívio material! Se nos uníssemos pelo matrimônio, talvez tivéssemos muitas alegrias; teríamos um lar com os nossos filhos; mas destruindo nossas esperanças de uma felicidade passageira na Terra, Deus nos multiplica os sonhos generosos… Enquanto esperamos a união indissolúvel, auxiliar-te-ei de onde estiver e te consagrarás ao Eterno, em esforços sublimes e redentores…

Via-se que a agonizante movimentava recursos supremos para pronunciar as derradeiras palavras.

— Quem te deu semelhastes ideias? — perguntou o jovem ralado de angústia.

— Esta noite, depois que partiste, senti que alguém se aproximava enchendo o quarto de luz… Era Jeziel que vinha ver-me… Ao avistá-lo, lembrei-me de Jesus no inefável mistério da sua ressurreição. Anunciou-me que Deus santificava os nossos propósitos de ventura, mas que eu seria levada ainda hoje à Vida Espiritual. Ensinou-me a quebrar o egoísmo de minh'alma, encheu-me de bom ânimo e trouxe-me a grata nova de que Jesus ama-te muito, tem esperanças em ti!… Refleti, então, que seria útil entregar-me jubilosa às mãos da morte, pois, quem sabe, se ficasse no mundo não iria perturbar a missão que o Salvador te destinou… Jeziel afirmou que nós te ajudaremos de um Plano mais alto! Por que, então, deixarei de ser tua companheira?… Seguirei teus passos no caminho, levar-te-ei onde se encontrem nossos irmãos do mundo, em abandono, auxiliarei teus raciocínios a descobrir sempre a verdade!.. Ainda não aceitaste o Evangelho, mas Jesus é bom e terá algum meio de nos unir os pensamentos na verdadeira compreensão!..

O esforço da moribunda havia sido imenso. A voz extinguira-se-lhe na garganta. De seus olhos, profundamente lúcidos, as lágrimas corriam abundantes.

— Abigail! Abigail! — gritava Saulo desesperado.

Mas, após longos minutos de angustiosa ansiedade, ela dizia num arranco supremo:

— Jeziel já veio… buscar-me…

Instintivamente, Saulo compreendeu que era chegado o momento fatal. Em vão chamou pela moribunda, cujos olhos se empanavam; debalde lhe beijou as mãos geladas, agora cobertas de um palor de neve translúcida. Como louco, gritou por Zacarias e Ruth. Esta, soluçante, desfeita em pranto, abraçou-se a Abigail que, desde a morte do filho, resumia todo o seu tesouro maternal.

A agonizante fixou o olhar, respectivamente, em cada um, como a evidenciar amoroso agradecimento. Depois… uma só lágrima silenciosa foi o seu último adeus.

Do jardim próximo chegavam perfumes brandos; o céu crepuscular tonalizava-se de nuvens aurifulgentes, enquanto os pássaros em recolhida cruzavam os ares alegremente…

Pesada amargura abatera-se sobre a mansão da estrada de Jope. Alara-se ao Céu a filha dileta, a noiva amada, a amiga carinhosa das flores e dos passarinhos.

Saulo de Tarso ali se deixou ficar mudo, estarrecido, enquanto Ruth, lavada em lágrimas, cobria de rosas a morta adorada, que parecia dormir.


Emmanuel













Maria Dolores - Livro Antologia da Espiritualidade - Chico Xavier - Cap. 26 - Onde



Maria Dolores - Livro Antologia da Espiritualidade - Chico Xavier - Cap. 26


Onde


Onde escutes a voz
Que blasfema, ironiza, amaldiçoa,
Não ponhas discussão agravando o azedume;
Ao invés de revide,
Usa sem mágoa o verbo que abençoa.

Onde o crime enlameie,
Com temerários ímpetos de fera,
A face da existência,
Não atires instinto contra instinto,
Semeia a tolerância! Ajuda e espera!…

Onde o erro domine,
Entretecendo cárceres e dores,
Não deites pedras no caminho alheio,
Patenteia a verdade sem reproche,
Dando bondade e luz por onde fores.

Onde o fracasso grite,
No cortejo de sombras em que avança,
Não repouses no chão de desalento,
A ninguém desanimes…
E recupera o clima da esperança.

Onde o mal apareça,
Azorragando o mundo sofredor,
Procuremos com Deus a Infinita Bondade
E sejamos em paz, pelos dons do serviço,
Uma bênção de amor.


Maria Dolores














Léon Denis - Livro O Problema do Ser, do Destino e da Dor - 3ª Parte - As Potências da Alma - Cap. 23 - O pensamento



Léon Denis - Livro O Problema do Ser, do Destino e da Dor - 3ª Parte - As Potências da Alma - Cap. 23


O pensamento


O pensamento é criador. Assim como o pensamento do Eterno projeta sem cessar no espaço os germens dos seres e dos mundos, assim também o do escritor, do ora­dor, do poeta, do artista, faz brotar incessante flores­cência de idéias, de obras, de concepções, que vão influenciar, impressionar para o bem ou para o mal, se­gundo sua natureza, a multidão humana.

Aqui a missão dos obreiros do pensamento é ao mesmo tempo grande, temível e sagrada. Grande e sagrada, porque o pensamento dissipa as sombras do caminho, resolve os enigmas da vida e traça o caminho da Humanidade; é a sua chama aquece as almas e ilumina os desertos da existência. temível, porque seus efeitos são poderosos tanto para a descida como para a ascensão.

Mais cedo ou mais tarde todo produto do espírito reverte para seu autor com suas conseqüências, acarre­tando-lhe, segundo o caso, o sofrimento, uma diminuição, uma privação de liberdade, ou, então, satisfações íntimas, uma dilatação, uma elevação do ser.

A vida atual é, como se sabe, um simples episódio de nossa longa história, um fragmento da grande cadeia que se desenrola para todos através da imensidade. E constantemente recaem sobre nós, em brumas ou clari­dades, os resultados de nossas obras. A alma humana percorre seu caminho cercada de uma atmosfera brilhan­te ou turva, povoada pelas criações de seu pensamento. isto, na vida do Além, sua glória ou sua vergonha.

Para dar ao pensamento toda a força e amplitude, nada há mais eficaz do que a investigação dos grandes problemas.

Por bem dizer, é preciso sentir com veemência; para saborear as sensações elevadas e profundas, é necessário remontar à nascente de que deriva toda a vida, toda a harmonia, toda a beleza.

O que há de nobre e elevado no domínio da inteli­gência emana de uma causa eterna, viva e pensante. Quanto mais largo é o voo do pensamento para essa causa, tanto mais alto ela paira, tanto mais radiosas também são as claridades entrevistas, mais inebriantes as alegrias sentidas, mais poderosas as forças adquiridas, mais geniais as inspirações! Depois de cada voo, o pensamento torna a descer vivificado, esclarecido para o campo terrestre, a fim de prosseguir a tarefa pela qual continuará a desenvolver-se, porque é o trabalho que faz a inteligência como é a inteligência que faz a beleza, o esplendor da obra acabada.

Eleva teu olhar, ó pensador, ó poeta! Lança teu brado de apelo, de aspiração e prece! Diante do mar de reflexos variáveis, à vista de brancos cimos longínquos ou do infinito estrelado, não passaste nunca horas de êxtase e embriaguez, em que a alma se sente imersa num sonho divino, em que a inspiração chega poderosa como um relâmpago, rápido mensageiro do Céu à Terra?

Escuta bem! Nunca ouviste, no fundo de teu ser, vibrarem as harmonias estranhas e confusas, os rumores do mundo invisível, vozes de sombra que te acalentam pensamento e o preparam para as intuições supremas?

Em todo poeta, artista ou escritor há germens de mediocridade inconsciente, incalculáveis, e que desejam desabrochar; por eles o obreiro do pensamento entra com o manancial inexorável e recebe sua parte de revelação. Esta revelação de estética, apropriada à sua natureza, ao gênero de seu talento, tem ele por missão exprimi-la em obras que farão penetrar na alma das multidões uma vibração das forças divinas, uma radiação das verdades eternas.

É na comunhão frequente e consciente com o mundo dos Espíritos que os gênios do futuro hão de encontrar os elementos de suas obras. Desde hoje, a penetração dos segredos de sua dupla vida vem oferecer ao homem socorros e luzes que as religiões desfalecidas já lhe não podem proporcionar.

Em todos os domínios, a ideia espírita vai fecundar o pensamento em atividade.

A Ciência dever-lhe-á a renovação completa de suas teorias e métodos. Dever-lhe-á a descoberta de forças incalculáveis e a conquista do universo oculto. 

A Filo­sofia obterá um conhecimento mais extenso e preciso da personalidade humana. Esta, no transe e na exterioriza­ção, é como uma cripta que se abre, cheia de coisas estra­nhas e onde está escondida a chave do mistério do ser.

As religiões do futuro hão de encontrar no Espiritismo as provas da sobrevivência e as regras da vida no Além, ao mesmo tempo que o princípio de uma união das duas humanidades, visível e invisível, em sua ascensão para o Pai comum.

A Arte, em todas as suas formas, descobrirá nele mananciais inexauríveis de inspiração e emoção.

O homem do povo, nas horas de cansaço, beberá nele a coragem moral. Compreenderá que a alma pode desen­volver-se tanto pela lide humilde como pela obra majes­tosa e que não se deve desprezar dever algum; que a inveja é irmã do ódio e que, muitas vezes, o ser é menos feliz no luxo que na mediocridade. O poderoso aprenderá nele a bondade com o sentimento da solidariedade que a todos liga através de nossas vidas e pode obrigar-nos voltar pequenos para adquirirmos as virtudes modes­tas. O céptico achará nele a fé; o desanimado as espe­ranças duradouras e as resoluções viris; todos os que sofrem encontrarão a ideia profunda de que uma lei de justiça preside a todas as coisas, de que não há, em nenhum domínio, efeito sem causa, parto sem dor, vitó­ria sem combate, triunfo sem rudes esforços, mas que, acima de tudo, reina uma perfeita e majestosa sanção e que ninguém está abandonado por Deus, de que é uma parcela.

Assim, vagarosamente se operará a renovação da Humanidade, tão nova ainda, tão ignorante de si mesma, mas cujos desejos se dirigem pouco a pouco para a com­preensão de sua tarefa e de seu fim, ao mesmo tempo que se alarga seu campo de exploração e a perspectiva de um futuro ilimitado. E em breve eis que ela avançará mais consciente de si mesma e de sua força, consciente de seu magnífico destino. A cada passo que transpõe, vendo e querendo mais, sentindo brilhar e avivar-se o foco que arde em si, vê também as trevas recuarem, fun­direm-se, resolverem-se os sombrios enigmas do mundo e iluminar-se o caminho com um raio poderoso.

Com as sombras, desvanecem-se pouco a pouco os preconceitos, os vãos terrores; as contradições aparentes do Universo dissipam-se; faz-se a harmonia nas almas nas coisas. Então, a confiança e a alegria penetram­-lhe e o homem sente desenvolver-se-lhe o pensamento e o coração. E de novo avança pelo caminho das idades para o termo de sua obra; mas, esta não tem termo. Porque, de cada vez que a Humanidade se eleva para um novo ideal, julga ter alcançado o ideal supremo, quando, na realidade, só atingiu a crença ou o sistema correspondente ao seu grau de evolução. Mas, de cada vez também, de seus impulsos e de seus triunfos decorrem­-lhe felicidades e forças novas, e ela encontra a recom­pensa de seus labores e angústias no próprio labor, na alegria de viver e progredir, que é a lei dos seres, comunhão mais íntima com o Universo, numa posse mais completa do Bem e do Belo.

Os, poetas, vós, cujo número au­menta todos os dias, cujas produções se multiplicam e sobem como a maré, belas muitas vezes pela forma, mas fracas no fundo, superficiais e materiais, quanto talento não gastais com coisas medíocres! Quantos esforços des­perdiçados e postos ao serviço de paixões nocivas, de volúpias inferiores e interesses vis!

Quando vastos e magníficos horizontes se desdo­bram, quando o livro maravilhoso do Universo e da alma se abre de par em par diante de vós e o Gênio do pensa­mento vos convida para nobres tarefas, para obras cheias de seiva, fecundas para o adiantamento da Humanidade, vós vos comprazeis bastas vezes com estudos pueris e estéreis, com trabalhos em que a consciência se estiola, em que a inteligência se abate e definha no culto exage­rado dos sentidos e dos instintos impuros.

Quem de vós dirá a epopeia da alma lutando pela conquista de seus destinos no ciclo imenso das idades e dos mundos, suas dores e alegrias, suas quedas e levan­tamentos, a descida aos abismos da vida, o bater de asas para a luz, as imolações, os holocaustos que são um res­gate, as missões redentoras, a participação cada vez maior das concepções divinas!

Quem dirá também as poderosas harmonias do Uni­verso, harpa gigantesca vibrando ao pensamento de Deus, o canto dos mundos, o ritmo eterno que embala a gênese dos astros e das humanidades! Ou, então, a lenta elabo­ração, a dolorosa gestação da consciência através dos estádios inferiores, a construção laboriosa de uma indi­vidualidade, de um ser moral!

Quem dirá a conquista da vida, cada vez mais com­pleta, mais ampla, mais serena, mais iluminada pelos raios do Alto, a marcha, de cimo em cimo, em busca da felicidade, do poder e do puro amor? Quem cantará a obra do homem, lutador imortal, erguendo, através de suas dúvidas, dilaceramentos, angústias e lágrimas o edi­fício harmônico e sublime de sua personalidade pensante e consciente ? Sempre para a frente, para mais longe e para mais alto! Responderão: Não sabemos. E perguntam: Quem nos ensinará essas coisas?

Quem? As vozes interiores e as vozes do Além. Aprendei a abrir, a folhear, a ler o livro oculto em vós, o livro das metamorfoses do ser. Ele vos dirá o que fostes e o que sereis, ensinar-vos-á o maior dos mistérios, a criação do "eu" pelo esforço constante, a ação sobe­rana que, no pensamento silencioso, faz germinar a obra e, segundo vossas aptidões, vosso gênero de talento, far-vos-á pintar as telas mais encantadoras, esculpir as mais ideais formas, compor as sinfonias mais harmonio­sas, escrever as páginas mais brilhantes, realizar os mais belos poemas.

Tudo está aí, em vós, em roda de vós. Tudo fala, tudo vibra, o visível e o invisível, tudo canta e celebra a glória de viver, a ebriedade de pensar, de criar, de associar-se à obra universal. Esplendores dos mares e do céu estrelado, majestade dos cimos, perfumes das flores­tas, melodias da terra e do espaço, vozes do invisível que falam no silêncio da noite, vozes da consciência, eco da voz divina, tudo é ensino e revelação para quem sabe ver, escutar, compreender, pensar, agir!

Depois, acima de tudo, a Visão Suprema, a visão sem formas, o Pensamento incriado, verdade total, harmonia final das essências e das leis que, desde o fundo de nosso ser até a estrela mais distante, liga tudo e todos em sua unidade resplandecente. A cadeia de vida, que se eleva e desenrola no Infinito, escada das potências espirituais que levam a Deus os apelos do homem pela oração e trazem ao homem as respostas de Deus pela inspiração.

Agora, uma última pergunta. Por que é que, no meio do imenso labor e da abundante produção intelectual que caracterizam nossa época, se encontram tão poucas obras viris e concepções geniais? Porque deixamos de ver as coisas divinas com os olhos da alma! Porque deixamos de crer e amar!

Remontemos, pois, às origens celestes e eternas; é o único remédio para nossa anemia moral. Dirijamos pensamento para as coisas solenes e profundas. Ilumi­ne-se e complete-se a Ciência com as intuições da consciência e as faculdades superiores do espírito. O Espiri­tualismo moderno a auxiliará.


Léon Denis














Léon Denis - Livro O Problema do Ser e do Destino - Cap. 25 - O Amor



Léon Denis - Livro O Problema do Ser e do Destino - Cap. 25


O Amor


O amor, como comumente se entende na Terra, é um sentimento, um impulso do ser, que o leva para outro ser com o desejo de unir-se a ele. Mas, na realidade, o amor reveste formas infinitas, desde as mais vulgares até as mais sublimes. Princípio da vida universal, proporciona à alma, em suas manifestações mais elevadas e puras, a intensidade de radiação que aquece e vivifica tudo em roda de si; é por ele que ela se sente estreitamente ligada ao Poder divino, foco ardente de toda a vida, de todo o amor.

Acima de tudo, Deus é amor. Por amor, criou os seres para associá-los às suas alegrias, à sua obra. O amor é um sacrifício; Deus hauriu nele a vida para dá-la às almas. Ao mesmo tempo que a efusão vital, elas receberiam o princípio afetivo destinado a germinar e expandir- se pela provação dos séculos, até que tenham aprendido a dar-se por sua vez, isto é, a dedicar-se, a sacrificar-se pelas outras. Com este sacrifício, em vez de se amesquinharem, mais se engrandecem, enobrecem e aproximam do Foco supremo.

O amor é uma força inexaurível, renova-se sem cessar e enriquece ao mesmo tempo aquele que dá e aquele que recebe. É pelo amor, sol das almas, que Deus mais eficazmente atua no mundo. Por ele atrai para si todos os pobres seres retardados nos antros da paixão, os Espíritos cativos na matéria; eleva-os e arrasta-os na espiral da ascensão infinita para os esplendores da luz e da liberdade.

O amor conjugal, o amor materno, o amor filial ou fraterno, o amor da pátria, da raça, da humanidade, são refrações, raios refratados do amor divino, que abrange, penetra todos os seres, e, difundindo-se neles, faz rebentar e desabrochar mil formas variadas, mil esplêndidas florescências de amor.

Até as profundidades do abismo da vida, infiltram-se as radiações do amor divino e vão acender nos seres rudimentares, pela afeição à companheira e aos filhos, as primeiras claridades que, nesse meio de egoísmo feroz, serão como a aurora indecisa e a promessa de uma vida mais elevada.

É o apelo do ser ao ser, é o amor que provocará, no fundo das almas embrionárias, os primeiros rebentos do altruísmo, da piedade, da bondade. Mais acima, na escala evolutiva, entreverá o ser humano, nas primeiras felicidades, nas únicas sensações de ventura perfeita que lhe é dado gozar na Terra, sensações mais fortes e suaves que todas as alegrias físicas e conhecidas somente das almas que sabem verdadeiramente amar.

Assim, de grau em grau, sob a influência e irradiação do amor, a alma desenvolver-se-á e engrandecerá, verá alargar-se o círculo de suas sensações. Lentamente, o que nela não era senão paixão, desejo carnal, ir-se-á depurando, transformando num sentimento nobre e desinteressado; a afeição a um só ou a alguns converter-se-á na afeição a todos, à família, à pátria, à humanidade. E a alma adquirirá a plenitude de seu desenvolvimento quando for capaz de compreender a vida celeste, que é todo amor, e a participar dela.

O amor é mais forte do que o ódio, mais poderoso do que a morte. Se o Cristo foi o maior dos missionários e dos profetas, se tanto império teve sobre os homens, foi porque trazia em si um reflexo mais poderoso do Amor divino. Jesus passou pouco tempo na Terra; foram bastantes três anos de evangelização para que o seu domínio se estendesse a todas as nações. Não foi pela Ciência nem pela arte oratória que ele seduziu e cativou as multidões, foi pelo amor! Desde sua morte, seu amor ficou no mundo como um foco sempre vivo, sempre ardente. Por isso, apesar dos erros e faltas de seus representantes, apesar de tanto sangue derramado por eles, de tantas fogueiras acesas, de tantos véus estendidos sobre seu ensino, o Cristianismo continuou a ser a maior das religiões; disciplinou, moldou a alma humana, amansou a índole feroz dos bárbaros, arrancou raças inteiras à sensualidade ou à bestialidade.

Todo o poder da alma resume-se em três palavras: querer, saber, amar!

Querer, isto é, fazer convergir toda a atividade, toda a energia, para o alvo que se tem de atingir, desenvolver a vontade e aprender a dirigi-la.

Saber, porque sem o estudo profundo, sem o conhecimento das coisas e das leis, o pensamento e a vontade podem transviar-se no meio das forças que procuram conquistar e dos elementos a quem aspiram governar.

Acima, porém, de tudo, é preciso amar, porque, sem amor, a vontade e a ciência seriam incompletas e muitas vezes estéreis. O amor ilumina-as, fecunda-as, centuplica-lhes os recursos. Não se trata aqui do amor que contempla sem agir, mas do que se aplica a espalhar o bem e a verdade pelo mundo. A vida terrestre é um conflito entre as forças do mal e as do bem. O dever de toda alma viril é tomar parte no combate, trazer-lhe todos os seus impulsos, todos os seus meios de ação, lutar pelos outros, por todos aqueles que se agitam ainda na via escura.

A todas as interrogações do homem, a suas hesitações, a seus temores, a suas blasfêmias, uma voz grande, poderosa e misteriosa, responde: Aprende a amar! O amor é o resumo de tudo, o fim de tudo. Dessa maneira, estende-se e desdobra-se sem cessar sobre o universo a imensa rede de amor tecida de luz e ouro. Amar é o segredo da felicidade. Com uma só palavra o amor resolve todos os problemas, dissipa todas as obscuridades. O amor salvará o mundo; seu calor fará derreter os gelos da dúvida, do egoísmo, do ódio; enternecerá os corações mais duros, mais refratários.

Amemos, pois, com todo o poder do nosso coração; amemos até ao sacrifício, como Joana d’Arc amou a França, como o Cristo amou a humanidade, e todos aqueles que nos rodeiam receberão nossa influência, sentir-se-ão nascer para nova vida.

Homem, procure ao seu redor as chagas sobre as quais pensar, os males a curar, as aflições a consolar. Alargue as inteligências; guie os corações transviados; associe as forças e as almas. Trabalhe para construir a alta cidade de paz e de harmonia que será a cidade de amor, a cidade de Deus! Ilumine, levante, purifique! Que importa se rirem de você; que importa se a ingratidão e a maldade se levantarem no seu caminho? Aquele que ama não recua por tão pouco; mesmo que colha apenas espinhos e pedras, continue sua obra, porque seu dever está aí. Ele sabe que a abnegação nos engrandece. 

E depois, o sacrifício também tem suas alegrias; feito com amor, transforma as lágrimas em sorriso, faz nascer em nós alegrias desconhecidas do egoísta e do mau. Para aquele que sabe amar, as coisas mais banais são de interesse: tudo parece se iluminar; mil sensações novas despertam nele.

São necessárias à sabedoria e à ciência longos esforços, uma lenta e difícil ascensão para nos conduzir às altitudes do pensamento. O amor e o sacrifício nos fazem chegar lá de um pulo só, com um único bater de asas. Em seu ímpeto, conquistam a paciência, a coragem, a benevolência, todas as virtudes fortes e doces. O amor purifica a inteligência, engrandece o coração, e é pela soma de amor acumulado em nós que podemos avaliar o caminho que temos percorrido para Deus.

A todas as interrogações do homem, a suas hesitações, a seus temores, a suas blasfêmias, uma grande voz, poderosa e misteriosa, responde: Aprende a amar! O amor é a síntese de tudo, o objetivo de tudo, o final de tudo. Dessa maneira, estende-se e desdobra-se sem cessar, no universo, a imensa rede de amor, tecida de ouro e de luz. Amar é o segredo da felicidade. Com uma só palavra, o amor resolve todos os problemas, dissipa todas as obscuridades. O amor salvará o mundo; seu calor fará derreter os gelos da dúvida, do egoísmo, do ódio; enternecerá os corações mais duros, os mais refratários.

Em todas as suas magníficas variantes, o amor é sempre um esforço para a beleza. Nem mesmo o amor sexual, do homem e da mulher, deixa, por mais material que pareça, de poder aureolar-se de ideal e de poesia, de perder todo caráter vulgar, se nele houver um sentimento de estética e um pensamento superior. E isso depende principalmente da mulher. Aquela que ama sente e vê coisas que o homem não pode conhecer. Possui em seu coração inesgotáveis reservas de amor, uma espécie de intuição que pode dar uma ideia do amor eterno.

A mulher é sempre, de algum modo, irmã do mistério, e a parte de seu ser que toca o infinito parece ter mais extensão do que nos homens. Quando o homem responde como a mulher aos apelos do invisível, quando seu amor é isento de todo desejo brutal, se o sentem mais pelo Espírito que pelo corpo, então, no abraço desses dois seres que se penetram, se completam para transmitir a vida, passará como um relâmpago, como uma chama, o reflexo das mais altas felicidades que se podem sentir. Todavia, as alegrias do amor terrestre são fugitivas e misturadas de amarguras. Não existem sem decepções, sem recuos e sem quedas. Apenas Deus é o amor em sua plenitude. É o braseiro ardente e, ao mesmo tempo, o abismo do pensamento e da luz, de onde saem e para quem remontam, eternamente, a quente emanação de todos os astros, a ternura apaixonada de todos os corações das mulheres, mães, esposas, e as afeições vigorosas de todos os corações dos homens. Deus gera e chama o amor, pois é a beleza infinita, perfeita, e é próprio da beleza provocar o amor.

Quem é que, num dia de verão, quando o sol brilha, quando a imensa cúpula azulada se desenrola sobre nossas cabeças e, dos prados e bosques, dos montes e do mar sobem a adoração, a prece muda dos seres e das coisas, não sentiu essas radiações de amor enchendo o infinito?

É preciso nunca ter aberto sua alma a essas influências para ignorá-las ou negá-las. Muitas almas terrestres, é verdade, permanecem hermeticamente* fechadas às coisas divinas. Ou então, se sentem sua harmonia e beleza, escondem cuidadosamente o segredo em si mesmas. Elas parecem ter vergonha de confessar o que conhecem ou o que experimentam de maior e de melhor.

Mas tentai a experiência! Abri o vosso ser interior, abri as janelas da prisão da alma às vibrações da vida universal e, de repente, essa prisão se encherá de claridade, de melodia; todo um mundo de luz penetrará em vós. Vossa alma arrebatada conhecerá êxtases, felicidades que não podem ser descritas; compreenderá que há ao seu redor um oceano de amor, de força e de vida divina, no qual pode penetrar, e que lhe basta querer para ser banhada por suas águas regeneradoras. Sentirá no universo um poder soberano e maravilhoso que nos ama, nos envolve, nos sustenta, que vela sobre nós como um avarento sobre a joia preciosa, e invocando-o, ao lhe dirigir um ardente apelo, será logo envolvida por sua presença e seu amor. Essas coisas se sentem, mas se exprimem dificilmente; só as podem compreender os que as saboreiam. Entretanto, todos podem chegar a conhecê-las, a possuí-las, ao despertar o que há de divino em si; não há homem tão tenebroso, tão mau que, na hora de abandono e de sofrimento, não veja abrir-se uma fresta, por onde um pouco da claridade das coisas superiores, um pouco de amor se filtrem até ele.

Basta ter experimentado uma única vez essas impressões para não mais as esquecer. E quando chega o declínio da vida com seus desencantos, quando as sombras crepusculares se acumulam sobre nós, então essas sensações poderosas se revelam com a memória de todas as alegrias sentidas. E essa lembrança das horas em que amamos verdadeiramente cai como delicioso orvalho sobre nossas almas dissecadas pelo vento áspero das provas e da dor.


Léon Denis











Fonte: O Problema do Ser e do Destino-pdf

Allan Kardec - O Livro dos Médiuns - 2ª parte - Das manifestações espíritas - Capítulo XX - Da influência moral do médium - Questões diversas. Item 228



Allan Kardec - O Livro dos Médiuns - 2ª parte - Das manifestações espíritas - Capítulo XX


Da influência moral do médium


228. Todas as imperfeições morais são outras tantas portas abertas ao acesso dos maus Espíritos. A que, porém, eles exploram com mais habilidade é o orgulho, porque é a que a criatura menos confessa a si mesma. O orgulho tem perdido muitos médiuns dotados das mais belas faculdades e que, se não fora essa imperfeição, teriam podido tornar-se instrumentos notáveis e muito úteis, ao passo que, presas de Espíritos mentirosos, suas faculdades, depois de se haverem pervertido, aniquilaram-se e mais de um se viu humilhado por amaríssimas decepções.

O orgulho, nos médiuns, traduz-se por sinais inequívocos, a cujo respeito tanto mais necessário é se insista, quanto constitui uma das causas mais fortes de suspeição, no tocante à veracidade de suas comunicações. Começa por uma confiança cega nessas mesmas comunicações e na infalibilidade do Espírito que lhas dá. Daí um certo desdém por tudo o que não venha deles: é que julgam ter o privilégio da verdade.

O prestígio dos grandes nomes, com que se adornam os Espíritos tidos por seus protetores, os deslumbra e, como neles o amor-próprio sofreria, se houvessem de confessar que são ludibriados, repelem todo e qualquer conselho; evitam-nos mesmo, afastando-se de seus amigos e de quem quer que lhes possa abrir os olhos. Se condescendem em escutá-los, nenhum apreço lhes dão às opiniões, porquanto duvidar do Espírito que os assiste fora quase uma profanação. Aborrecem-se com a menor contradita, com uma simples observação crítica e vão às vezes ao ponto de tomar ódio às próprias pessoas que lhes têm prestado serviço. Por favorecerem a esse insulamento a que os arrastam os Espíritos que não querem contraditores, esses mesmos Espíritos se comprazem em lhes conservar as ilusões, para o que os fazem considerar coisas sublimes as mais polpudas absurdidades. Assim, confiança absoluta na superioridade do que obtém, desprezo pelo que deles não venha, irrefletida importância dada aos grandes nomes, recusa de todo conselho, suspeição sobre qualquer crítica, afastamento dos que podem emitir opiniões desinteressadas, crédito em suas aptidões, apesar de inexperientes: tais as características dos médiuns orgulhosos.

Devemos também convir em que, muitas vezes, o orgulho é despertado no médium pelos que o cercam. Se ele tem faculdades um pouco transcendentes, é procurado e gabado e entra a julgar-se indispensável. Logo toma ares de importância e desdém, quando presta a alguém o seu concurso. Mais de uma vez tivemos motivo de deplorar elogios que dispensamos a alguns médiuns, com o intuito de os animar.


Allan Kardec