segunda-feira, 29 de março de 2021

Léon Denis - Livro Depois da Morte - Cap. 47 - A caridade




Léon Denis - Livro Depois da Morte - Cap. 47

A caridade


Em oposição às religiões exclusivas que tomaram como preceito: “Fora da Igreja não há salvação”, como se seu ponto de vista puramente humano pudesse decidir a sorte dos seres na vida futura, Allan Kardec coloca essas palavras no frontispício de suas obras: Fora da Caridade, não há salvação. Os espíritos nos ensinam, com efeito, que a caridade é a virtude por excelência; só ela dá a chave dos planos elevados.

“É preciso amar os homens”, repetem após o Cristo, que resumira nessas palavras todos os mandamentos da lei moral.

Mas, objetam, os homens não são muito amáveis. Muita maldade incuba-se neles e a caridade é muito difícil de se praticar com relação a eles. 

Se os julgamos dessa forma, não será porque nos agrada considerar unicamente o lado mau dos seus caracteres, seus defeitos, suas paixões, suas fraquezas, esquecendo, com muita frequência, de que nós mesmos não estamos isentos e que, se eles têm necessidade de caridade, teremos menos necessidade de indulgência?

Todavia, o mal não reina sozinho nesse mundo. Há no homem, também, o bem, qualidades, virtudes. Há, sobretudo, sofrimentos. Se queremos ser caridosos e devemos sê-lo, em nosso próprio interesse como no interesse da ordem social, não nos prendamos, nos nossos julgamentos sobre nossos semelhantes, naquilo que pode nos levar à maledicência, à difamação, mas vejamos sobretudo no homem um companheiro de provas, um irmão de armas na luta da vida. Vejamos os males que ele suporta em todas as classes da sociedade. Quem é que não esconde uma chaga no fundo da sua alma? Quem não suporta o peso de desgostos, de amarguras? Se nos colocássemos nesse ponto de vista para considerar o próximo, nossa maledicência transformar-se-ia rapidamente em simpatia.

Ouve-se, muitas vezes, recriminar a grosseria e as paixões brutais das classes operárias, as cobiças e as reivindicações de alguns homens do povo. Refletimos bastante nos maus exemplos que os envolveram desde a infância? As necessidades da vida, as necessidades imperiosas de cada dia lhes impõem uma tarefa rude e absorvente. Nenhum lazer, nenhum espaço de tempo para esclarecer sua inteligência. As doçuras do estudo, os gozos da arte lhes são desconhecidos. O que sabem sobre as leis morais, sobre seu destino, sobre o mecanismo do Universo? Poucos raios consoladores projetam-se nessas trevas. Para eles, a luta cruel contra a necessidade é de todos os instantes. O desemprego, a doença, a negra miséria os ameaçam e assediam, incessantemente. Qual o caráter que não se exasperaria em meio a tantos males? Para suportá-los com resignação, é preciso um verdadeiro  estoicismo, uma força da alma tanto mais admirável quanto mais instintiva que racional. 

Ao invés de atirar pedras nesses desafortunados, apliquemo-nos em aliviar seus males, enxugar suas lágrimas, trabalhar com todas as nossas forças para introduzir na Terra uma partilha mais equitativa dos bens materiais e dos tesouros do pensamento. Não se sabe suficientemente o que podem fazer sobre essas almas ulceradas: uma boa palavra, um sinal de interesse, um cordial aperto de mão. Os vícios do pobre desagradam-nos e, entretanto, quanta desculpa não merece por causa de sua miséria! Mas queremos ignorar suas virtudes, que são muito mais admiráveis, por desabrocharem no lodaçal.

Que devotamentos obscuros entre os humildes! Que lutas heroicas e tenazes contra a adversidade! Pensemos nas inumeráveis famílias que vegetam sem-apoio, sem-socorro, nas crianças privadas do necessário, em todos esses seres que tiritam de frio, no fundo de casebres úmidos e sombrios ou em mansardas desoladas. Qual é o papel da mulher do povo, da mãe de família em tais lugares, quando o inverno se abate sobre a Terra, o fogão sem-lume, a mesa sem-alimentos, sobre o leito gelado farrapos substituem o cobertor vendido ou hipotecado para se ter pão! Seu sacrifício não é de todos os instantes? Como seu pobre coração se parte diante das dores dos seus! O ocioso opulento não deveria enrubescer de expor sua riqueza em meio a tanto sofrimento? Que responsabilidade esmagadora para ele se, no meio da sua abundância, esquece aqueles a quem a necessidade oprime!

Sem dúvida, muito lodo e coisas repugnantes se misturam às cenas da vida dos pequenos. Lamentos e blasfêmias, embriaguez e alcovitice, crianças desapiedadas e pais desalmados, todas as deformidades aí se confundem; mas sob esses  exteriores repugnantes, é sempre a alma humana que sofre, a alma nossa irmã, cada vez mais digna de interesse e afeição.

Arrancá-la da lama, esclarecê-la, fazê-la subir degrau por degrau a escada de reabilitação, que grande tarefa! Tudo se purifica no fogo da caridade. É esse fogo que abrasava o Cristo, Vicente de Paulo, todos aqueles que, no seu imenso amor pelos fracos e os decaídos, encontraram o princípio de sua abnegação sublime.

Acontece o mesmo com aqueles que têm a faculdade de muito amar e muito sofrer. A dor é para eles como uma iniciação à arte de consolar e sustentar os outros. Eles sabem elevar-se acima de seus próprios males para ver apenas os males de seus semelhantes e buscar-lhe o remédio. Daí, os grandes exemplos dados por essas almas de elite que, no fundo de sua aflição, de sua agonia dolorosa, encontram ainda o segredo de curar os ferimentos dos vencidos da vida.

A caridade tem outras formas que não a solicitude pelos desgraçados. A caridade material ou a beneficência, pode se aplicar a um certo número de nossos semelhantes, sob a forma de socorro, de sustentação, de encorajamentos. A caridade moral deve se estender a todos aqueles que partilham da nossa vida nesse mundo. Ela não consiste mais em esmolas, mas numa benevolência que deve envolver todos os homens, do mais virtuoso ao mais criminoso e regular nossas relações com eles. Essa caridade, todos podemos praticá-la, por mais modesta que seja nossa condição.

A verdadeira caridade é paciente e indulgente. Não magoa, não desdenha a ninguém, é tolerante e se procura dissuadir, é com doçura, sem machucar nem atacar as ideias enraizadas.

Entretanto, essa virtude é rara. Um certo fundo de egoísmo nos leva muito mais a observar, a criticar os defeitos do próximo, enquanto nos cegamos para com os nossos. Mesmo que haja em nós tantos defeitos, empregamos voluntariamente nossa sagacidade para fazer sobressair os defeitos dos nossos semelhantes. Por isso, não há verdadeira superioridade moral sem a caridade e a modéstia. Não temos o direito de condenar nos outros faltas a que nós mesmos estamos expostos; e, embora nossa elevação moral nos tenha libertado dessas fraquezas para sempre, não devemos esquecer de que houve um tempo em que nos debatíamos contra a paixão e o vício.

Há poucos homens que não tenham maus hábitos a corrigir, deploráveis pendores a reformar. Lembremo-nos de que seremos julgados com a mesma medida que nos tenha servido para medir nossos semelhantes. As opiniões que temos deles são quase sempre um reflexo da nossa própria natureza. Sejamos mais prontos em desculpar do que em censurar.

Nada é mais funesto para o futuro da alma do que as más intenções, do que essa maledicência incessante que alimenta a maior parte das conversas. O eco das nossas palavras repercutem na vida futura, a atmosfera dos nossos pensamentos malévolos forma como uma espessa nuvem que envolve e entenebrece o espírito. Abstenhamo-nos dessas críticas, dessas apreciações malignas, dessas palavras escarnecedoras que envenenam o futuro. Fujamos da maledicência como de uma peste; retenhamos nos lábios qualquer intenção amarga pronta para escapar. Nossa felicidade tem esse preço. 

O homem caridoso faz o bem ocultamente; dissimula suas boas ações, enquanto que o vaidoso proclama o pouco que faz. “A mão esquerda deve ignorar o que dá a direita”, disse Jesus. “Aquele que faz o bem com ostentação já recebeu sua recompensa”.

Dar em segredo, ser indiferente aos elogios dos homens, é mostrar uma verdadeira elevação de caráter, é se colocar acima dos julgamentos de um mundo passageiro e procurar a justificação de seus atos na vida que não termina.

Nessas condições, a ingratidão e a injustiça não podem atingir o homem caridoso. Ele faz o bem porque é seu dever e sem esperar nenhuma vantagem, nenhuma recompensa; deixa a lei eterna o cuidado de fazer gotejar as conseqüências de seus atos, ou melhor, nem pensa nisso. É generoso sem cálculo. Para estimular os outros, sabe privar-se a si mesmo, ciente de que não há nenhum mérito em dar seu supérfluo. É por isso que o óbolo do pobre, a moeda da viúva, o pedaço de pão repartido com o companheiro de infortúnio, têm mais valor do que a generosidade do rico. O pobre, na sua penúria, pode ainda socorrer o mais pobre que ele.

Há mil maneiras de se tornar útil, de vir em socorro de seus irmãos. O ouro não tarifa todas as lágrimas e não pensa todas as feridas. Há males para os quais uma amizade sincera, uma ardente simpatia, uma efusão da alma farão mais do que as riquezas.

Sejamos generosos para com aqueles que sucumbiram na luta contra suas paixões e foram arrastados para o mal, generosos para com os pecadores, os criminosos, os endurecidos. Sabemos nós por que fases suas almas passaram, que tentações suportaram antes de falir? Tinham esse conhecimento das leis superiores que sustentam na hora do perigo? Ignorantes, incertos, agitados por todos os sopros externos, podiam resistir e vencer? A responsabilidade é proporcional ao saber; mais será pedido àquele que conhece a verdade.

Tudo que o homem faz pelo seu irmão grava-se no grande livro fluídico cujas páginas se desenrolam através do espaço, páginas luminosas onde se inscrevem nossos atos, nossos sentimentos, nossos pensamentos. E essas dívidas nos serão pagas amplamente nas existências futuras.

Nada fica perdido, nada fica esquecido. Os laços que unem as almas através dos tempos são tecidos com os benefícios do passado. A sabedoria eterna tudo regulou para o bem dos seres. As boas obras executadas aqui na Terra tornam-se, para o seu autor, a fonte de infinitas alegrias no futuro.

A perfeição do homem se resume em duas palavras: caridade, verdade. A caridade é a virtude por excelência; ela é de essência divina. Irradia sobre os mundos, reaquece as almas como um olhar, como um sorriso do eterno. Ultrapassa em resultados o saber, o gênio. Esses não caminham sem o orgulho. São contestados, às vezes, desconhecidos, mas a caridade, sempre doce e benevolente, enternece os corações mais duros, desarma os espíritos mais perversos, inundando-os de amor.


Léon Denis






Fonte: Depois da Morte -pdf

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