sexta-feira, 26 de março de 2021

Emmanuel - Livro Ave, Cristo! - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 1 - Preparando caminhos




Emmanuel - Livro Ave, Cristo! - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 1


Preparando caminhos


Quase duzentos anos de Cristianismo começavam a modificar a paisagem do mundo.

De Nero aos Antoninos, todavia, as perseguições aos cristãos haviam recrudescido. Triunfantemente assentada sobre as sete colinas, Roma prosseguia ditando o destino dos povos, à força das armas, alimentando a guerra contra os princípios do Nazareno, mas o Evangelho caminhava sempre, por todo o Império, construindo o espírito da Era Nova.

Se na organização terrestre a Humanidade se desdobrava em movimentação intensa, no trabalho da transformação ideológica, o serviço nos Planos superiores atingia culminâncias.

Presididas pelos apóstolos do Divino Mestre, todos então na vida espiritual, as obras de soerguimento humano multiplicavam-se, em vários setores.

Tornara Jesus ao sólio resplendente de sabedoria e de amor, de onde legisla para todas as criaturas terrenas, mas os continuadores do seu ministério, entre os homens encarnados, qual enxame crescente de abelhas da renovação, prosseguiam ativos, preparando o solo dos corações para o Reino de Deus.

Enquanto exércitos compactos de cristãos desapareciam nas fogueiras e nas cruzes, nos suplícios intermináveis ou nas mandíbulas das feras, templos de esperança se levantavam felizes, além das fronteiras de sombra, dentro dos quais falanges enormes de Espíritos convertidos ao Bem se ofereciam para a batalha de suor e sangue, em que, usando a vestimenta física, dariam testemunhos de fé e boa vontade, colaborando na expansão da Boa Nova, para a redenção da Terra.

Assim é que, em formosa cidade espiritual, nas adjacências da Crosta Planetária, vamos encontrar grande assembleia de almas atraídas ao Roteiro Divino, escutando a exortação de iluminado orientador, que lhes falava, de coração posto nos lábios:

— Irmãos — dizia ele, envolvido em suaves irradiações de luz —, o Evangelho é código de paz e felicidade que precisamos substancializar dentro da própria vida!

O Sol que jorra bênçãos sobre o mundo incorpora-se à Natureza, sustentando-a e renovando-lhe as criações. A folha da árvore, o fruto nutriente, o cântico do ninho e a riqueza da colmeia são dádivas do astro sublime, materializadas pelos princípios da Eterna Inteligência.

Cristo é o Sol Espiritual dos nossos destinos.

Urge, pois, associarmo-nos voluntariamente aos ensinamentos dele, concretizando-lhes a essência em nossas atividades de cada dia.

Não podemos esquecer, entretanto, que a mente do homem jaz petrificada na Terra, dormindo nas falsas concepções da vida celeste.

A política de dominação militar asfixiou as velhas tradições dos primitivos santuários. As coortes romanas abafaram as vozes da filosofia grega, como os povos bárbaros sufocaram a revelação egípcia.

Adensou-se o nevoeiro da estagnação e da morte entre as criaturas.

As águias imperiais assentaram na cega idolatria de Júpiter a mentirosa religião da vaidade e do poder…

E enquanto os deuses de pedra absorvem os favores da fortuna, alonga-se a miséria e a ignorância do povo, reclamando o pronunciamento do Céu.

Como se expressará, porém, a intervenção divina, sem a cooperação humana?

Sem a heroica renunciação dos que se consagram ao progresso e ao aprimoramento das almas, a educação não passará de letra morta.

Imprescindível, portanto, é que saibamos escrever com o nosso próprio exemplo as páginas vivas do Cristianismo remissor.

O Mestre Crucificado é divino desafio.

Até agora, os conquistadores do mundo conseguiram avançar no carro purpúreo da vitória, matando ou destruindo, valendo-se das legiões de guerreiros e lidadores cruéis.

Jesus, no entanto, triunfou pelo sacrifício.

César, atado às vicissitudes humanas, governa os assuntos referentes à carne em trânsito para a renovação.

Cristo reina sobre a alma que nunca morre, aos poucos sublimando-a para a glória imperecível…

O tribuno venerável fizera uma pausa, como que intencional, porque o clangor distante de muitos lítuos reunidos se fazia ouvir, em pleno céu, dando a ideia de uma convocação para alguma batalha próxima.

As centenas de entidades que se conchegavam umas às outras, no admirável recinto cuja abóbada deixava perceber a luz tremeluzente das estrelas remotas, entreolharam-se, ofegantes…

Todos os Espíritos, ali congregados, pareciam ansiosos pela oportunidade de servir.

Alguns traziam no semblante expressões de saudade e dor, qual se estivessem ligados à batalha da Terra por feridas de aflição, somente curáveis com o retorno às angústias do passado.

Mas, a expectação não durou muito.

Superando as clarinadas, que ecoavam pela noite, a voz do pregador ressurgiu:

— Muitos de vós, amados irmãos, deixastes à retaguarda velhos compromissos de amor e desejais voltar ao áspero trilho da carne, como quem afronta as labaredas de um incêndio para salvar afeições inesquecíveis. Entretanto, devotados agora à verdade divina, aprendestes a colocar os desígnios do Senhor acima dos próprios desejos. Entediados da ilusão, consultais a realidade, buscando engrandece-la, e a realidade aceita o vosso concurso decisivo para impor-se no mundo.

Não olvideis, todavia, que somente colaborareis na obra do Cristo, ajudando sem exigir e trabalhando sem apego aos resultados. Como o pavio da vela, que deve submeter-se e consumir-se a fim de que as trevas se desfaçam, sereis constrangidos ao sofrimento e à humilhação para que novos horizontes se abram ao entendimento das criaturas.

Por muito tempo, ainda, o programa dos cristãos não se afastará das legendas do Apóstolo Paulo. Em tudo sereis atribulados, mas não aniquilados; perplexos, mas não desalentados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos, trazendo sempre, por toda a parte, a exemplificação do Senhor Jesus, no próprio corpo, para que a vida divina se manifeste no mundo.

E, assim, quantos renascerem nas sombras da matéria mais densa, estarão incessantemente entregues ao sacrifício, por amor à verdade, a fim de que a lição do Divino Mestre brilhe mais intensamente nos domínios da carne mortal.

O mentor explanou ainda, por vários minutos, quanto aos deveres que aguardavam os legionários do Evangelho, entre os obstáculos do mundo, descendo, por fim, da tribuna dourada para o cultivo da conversação fraterna.

Vários amigos oscularam-lhe as mãos, comentando, com entusiasmo, os mapas de trabalho a que se prenderiam, de futuro.

Diminuíam os entendimentos e as rogativas de proteção, quando o pregador foi procurado por alguém com intimidade afetuosa.

— Varro! — exclamou ele, abraçando o recém-chegado e contendo a emoção.

Tratava-se de velho romano, de olhar percuciente e triste, cuja túnica muito alva, confundida com a roupagem brilhante do companheiro assemelhava-se a uma nesga de neblina apagada, de encontro a repentino clarão de aurora.

No amplexo de ternura que permutavam, era bem de ver-se a reaproximação de dois amigos que, por momentos, olvidavam a autoridade e a aflição de que eram portadores, para se transfundirem um no outro, depois de longa separação.

Trocadas as primeiras impressões em que antigos eventos do pretérito foram recordados, Quinto Varro, o romano de fisionomia simpática e amargurada, explicou ao companheiro, então guindado a Esfera superior, que pretendia voltar ao Plano físico, em breve tempo.

O representante da Esfera Mais Alta ouviu-o com atenção e obtemperou, admirado:

— Mas, porquê? Conheço-te o acervo de serviços, não somente à causa da ordem, mas igualmente à causa do amor. No mundo patrício, as tuas derradeiras romagens foram as do homem correto até ao extremo sacrifício e os teus primeiros ensaios na edificação cristã foram dos mais dignos. Não seria aconselhável o prosseguimento de tua marcha, acima das inquietantes paisagens da carne?

O interlocutor fixou um gesto silencioso de súplica e aduziu:

— Clódio, abençoado amigo! peço-te!… Sei que conservas o poder de autorizar minha volta. Sim, sem dúvida, os apelos de cima comovem-me a alma!… Anseio por reunir-me, em definitivo, aos nossos da vanguarda… No entanto — e a voz dele se fez quase sumida pela emotividade —, de todos os que ficaram para trás, tenho um filho do coração, perdido nas trevas, que eu desejaria socorrer…

— Taciano? — indagou o mentor, intrigado.

— Ele mesmo…

E Varro prosseguiu, com encantadora humildade:

— Sonho conduzi-lo ao Cristo, com os meus próprios braços. Tenho implorado ao Senhor semelhante graça, com todo o fervor de meu paternal carinho. Taciano é para mim o que a rosa significa para o arbusto espinhoso em que nasceu. Em minha indigência, ele é o meu tesouro e, em minha fealdade, é a beleza de que desejava orgulhar-me. Daria tudo por dedicar-me a ele, de novo… Acariciá-lo, junto do coração, para orientar-lhe os passos na direção de Jesus, é o Céu a que aspiro…

E, como se quisesse sondar a impressão que causava no amigo, acrescentava:

— Porventura estarei errado em minha aspiração?

 O velho orientador afagou-o, com visíveis demonstrações de piedade, passou a destra pela fronte banhada de luz e falou:

— Não discuto os teus sentimentos, que sou constrangido a respeitar, mas… valeria tamanha renunciação?

Como se articulasse as próprias reminiscências para exprimir-se com segurança, fez longa pausa, que ele próprio interrompeu, acentuando:

— Não acredito que Taciano esteja preparado. Vi-o, há alguns dias, no Templo de Vesta, chefiando larga legião de inimigos da luz. Não me pareceu inclinado a qualquer serviço do Evangelho. Vagueia nos santuários das divindades olímpicas, promovendo arruaças contra o Cristianismo nascente e ainda se compraz nos festins dos circos, encontrando incentivo e alegria nas efusões de sangue.

— Tenho acompanhado meu filho, nesse lamentável estado — concordou Quinto Varro, melancólico —, contudo, nos últimos dias, noto-o amargurado e aflito. Quem sabe estará Taciano à beira da grande renovação? Compreendo que ele tem sido recalcitrante no mal, consagrando-se, indefinidamente, às sensações inferiores que lhe impedem a percepção de mais altos horizontes da vida. Mas concluo, de mim para comigo, que algo deve ser feito quando temos necessidade do reajustamento daqueles a quem amamos…

E talvez porque Clódio silenciasse, pensativo, o afetuoso pai voltou a dizer:

— Abnegado amigo, permite-me voltar…

— Estarás, todavia, consciente dos riscos da empresa? Ninguém salvará um náufrago sem expor-se ao chicote das ondas. Para ajudar Taciano, mergulhar-te-ás nos perigos em que ele se encontra.

— Sei disso — atalhou Varro, decidido, prosseguindo em tom de súplica —; auxilia-me a pretensão, em nome de nossa velha amizade. Procurarei servir ao Evangelho com todas as minhas forças, aceitarei todos os sacrifícios, comerei o pão de fel embebido em suor e pranto; contudo, rogo permissão para convocar meu filho ao trabalho do Cristo, por todos os recursos que estiverem ao meu alcance… Certo, o caminho estará juncado de obstáculos, entretanto, com o amparo do Senhor e com o auxílio dos amigos, conto vencer.

O respeitável mentor, francamente compadecido, como quem não desejava delongar-se na conversação de ordem pessoal, indagou:

— Quanto tempo consideras imprescindível ao cometimento?

— Ouso colocar a resposta em teu próprio critério.

— Pois bem — concluiu o companheiro generoso —, endosso-te a decisão, confiantemente. Concedo-te vinte lustros para o trabalho a realizar. Creio que um século bastará. Determinaremos medidas para que sejas sustentado na nova roupagem de carne. Teus serviços à causa do Evangelho serão creditados em Esfera Superior e, quanto ao mérito ou demérito de Taciano, à frente de tua renunciação, admito que o assunto será privativo de tua própria responsabilidade.

Instado por amigos, na liquidação de outros problemas, Clódio lançou-lhe compassivo olhar e finalizou:

— Não te esqueças de que, pela oração, continuaremos juntos. Ainda mesmo sob o pesado  véu do esquecimento na luta física, ouviremos teus apelos, amparando-te com o nosso esforço assistencial. Vai em paz, quando quiseres, e que Jesus te abençoe.

Varro dirigiu-lhe comovedoras palavras de reconhecimento, reafirmou as promessas que formulara e ausentou-se, cismarento, sem saber ao certo que estranhas emoções lhe povoavam a alma, entre raios de alegria e dardos de amargura.

Em esplêndido crepúsculo, enquanto o sol, como um braseiro, tombava para os lados de Óstia, o Espírito de Quinto Varro, solitário e pensativo, chegou à Ponte Céstio, demorando-se na contemplação da corrente do Tibre, como que detido por obcecantes recordações.

Brisas suaves deslizavam cantando, qual se fossem ecos isolados de melodias ocultas no céu escampo.

Roma engalanara-se para celebrar as vitórias de Séptimo Severo sobre os seus temíveis competidores. Pescênio Níger, depois de tríplice derrota, fora colhido pelas forças imperiais e decapitado, às margens do Eufrates, e Albino, o escolhido das legiões da Bretanha, seria vencido nas Gálias, matando-se em desespero.

Diversos dias de festa comemoravam a glória brilhante do imperador africano, mas, por solicitação dos augustais, o término das solenidades estava marcado para a noite próxima, no grande anfiteatro, com todas as pompas do triunfo.

Mostrando fisionomia expectante e entristecida, Varro atravessou o pequeno território da ilha do Tibre e, ganhando o Templo da Fortuna, observou a multidão dos grupos esparsos de povo, a se adensarem na praça, em direção ao soberbo edifício.

As liteiras de altos dignitários da Corte, cercadas de escravos, dispersavam pequenas assembleias de cantores e dançarinos. Bigas faustosas e carros adornados varavam por entre a turba, conduzindo tribunos jovens e damas patrícias de famílias tradicionais. Marinheiros e soldados querelavam com vendedores de refrigerantes e frutas, enquanto a onda popular crescia sempre.

Gladiadores de corpo descomunal chegavam sorridentes, cortejados por jogadores inveterados da arena.

E, enquanto os sons de alaúdes e atabales se misturavam ao distante rugido das feras enjauladas para o soberbo espetáculo, a glória de Severo e o suplício dos cristãos eram os temas preferidos de todas as palestras.

O viandante espiritual fitava não só a multidão ávida de prazeres, mas também as falanges bulhentas de entidades ignorantes ou perversas que dominavam nas sombrias comemorações.

Varro tentou adiantar-se, revelando estar à procura de alguém, mas a pesada atmosfera reinante obrigou-o a recuar. Contornou o famoso anfiteatro, palmilhou as vielas que se estreitavam entre o Célio e o Palatino, atravessou a Porta Capena e atingiu o campo, dirigindo-se para os sepulcros da Via Ápia.   

A noite clara descera sobre o casario romano.

Milhares de vozes entoavam cânticos de júbilo, à prateada claridade do luar em plenilúnio. Eram cristãos desencarnados, preparando-se para receber os companheiros de sacrifício. Os mártires supostamente mortos iam saudar os mártires que, nessa noite, iam morrer.

Quinto Varro uniu-se ao extenso grupo e orou, fervorosamente, suplicando ao Alto forças para a difícil empresa a que pretendia consagrar-se.

Preces e comentários santificantes foram ouvidos.

Depois de algumas horas, a enorme assembleia espiritual deslocou-se no rumo do anfiteatro.

Hinos de alegria elevaram-se às alturas.

Não somente os mensageiros da Via Ápia alcançavam o anfiteatro em harmoniosas orações.

Enviados do Monte Vaticano e trabalhadores espirituais dos grupos de pregação evangélica do Esquilino, da Via Nomentana e da Via Salária, incluindo representantes de outras regiões romanas, penetravam o tumultuário recinto como exércitos de luz.

Introduzidos na arena para os derradeiros sacrifícios, os seguidores de Jesus igualmente cantavam.

Aqui e ali, vísceras de feras mortas, de mistura com os corpos horrivelmente mutilados de gladiadores e bestiários vencidos, eram retirados à pressa por guardas de serviço.

Alguns discípulos do Evangelho, notadamente os mais idosos, atados em postes de martírio, recebiam setas envenenadas, incendiando-se-lhes depois os corpos, a fim de servirem como tochas na festiva exibição, enquanto outros, de mãos postas, se entregavam, inermes, aos golpes de panteras e de leões da Numídia.  

Quase todos os supliciados desprendiam-se da carne, no sublimado êxtase da fé, recolhidos carinhosamente pelos irmãos que os esperavam em cânticos de vitória.

Quinto Varro, no entanto, em meio da claridade intensa com que as legiões espirituais haviam desintegrado as trevas, não se mostrava interessado na exaltação dos heróis.

Relanceava o olhar pelas arquibancadas repletas, até que, por fim, se deteve, com evidentes sinais de angústia, em álacre conjunto de Espíritos turbulentos, em arrojadas libações.

Ansiosamente, Varro abeirou-se de um jovem que desferia estrepitosas gargalhadas e, abraçando-o, com extremada ternura, sussurrava:

— Taciano, meu filho! meu filho!…

O rapaz que se mergulhava na mais profunda corrente de sensações inferiores não viu o benfeitor que o conchegava de encontro ao peito, mas, tomado de repentina inquietação, silenciou de imediato, abandonando o recinto, dominado por invencível amargura.

O jovem não identificava a presença do venerável amigo ao seu lado, contudo, abraçado por ele, experimentou imensa aversão pela odiosa solenidade.

Alheou-se dos companheiros e, sentindo fome de solidão, afastou-se, rápido, devorando ruas e praças.

Desejava pensar e reconsiderar, a sós, a senda por ele mesmo percorrida.

Depois de longo trajeto, alcançou a Porta Pinciana, em busca de insulamento. Nos jardins onde se venerava a memória de Esculápio, havia soberba estátua de Apolo, junto da qual, por vezes, gostava de meditar.

O corpo marmóreo da divindade olímpica levantava-se, magnífico, ostentando primorosa taça numa das mãos, de bordos voltados para o solo, como se procurasse fecundar a terra-mãe.

Num recipiente, aos pés do ídolo, fumegava o incenso ali colocado por mãos devotas e anônimas, embalsamando o sítio em aroma delicioso.

Atormentado por insopitável angústia, Taciano chorava sem querer, rememorando as próprias experiências.

Sabia-se fora do corpo físico, mas longe de encontrar as paisagens das narrações de Vergílio, cuja leitura lhe merecera especial atenção, vira-se incompreensivelmente atraído para as bacanais da sociedade em decadência, sendo surpreendido, depois do túmulo, tão somente por si próprio, com a sua velha sede de sensações. Delirara em banquetes e jogos, sorvera o prazer em todas as taças ao seu alcance, mas rendia-se ao tédio e ao arrependimento. Em que se resumia a vida? — perguntava a si mesmo, em solilóquio doloroso — onde se domiciliavam os deuses de sua antiga fé? Valeria a procura da felicidade, na temporária satisfação dos sentidos humanos, depois da qual havia sempre larga dose de fel? Como localizar as antigas afeições no misterioso país da morte? por que razões vagueava preso ao reino doméstico, sem equilíbrio e sem rumo? Não seria mais justo, se possível, adquirir novo corpo e respirar entre os homens comuns? Suspirava por mais íntimo contato com o plano da carne, em cuja penetração poderia esquecer a si mesmo… Oh! se pudesse olvidar os enigmas torturantes da existência, conchegando-se à matéria para dormir e refazer-se! — meditava.

Conhecia amigos que, depois de longas súplicas ao Céu, haviam desaparecido na direção do renascimento. Não ignorava que o Espírito imortal pode usar vários corpos, entre os homens; entretanto, não se sentia com a força precisa para dominar-se e oferecer às Divindades uma prece fundamentada no verdadeiro equilíbrio moral.

Naquele instante, porém, sentia-se mais angustiado que de outras vezes.

Saudade imensa e indefinível pungia-lhe o coração.

Depois de chorar em silêncio, fixou o semblante impassível da estátua e suplicou:

— Grande Hélios! Deus de meus avós!… Compadece-te de mim! Renova-me o sentimento na pureza e na energia que encarnas para a nossa raça! Se possível, faze-me esquecer o que fui. Ampara-me e concede-me a graça de viver, de conformidade com o exemplo dos meus antepassados!…

Com as inexprimíveis reminiscências do seu antigo lar, Taciano, inclinado para o solo, lamentava-se, amarguradamente; mas, quando enxugou as lágrimas que lhe obscureciam a visão e tornou a fitar a imagem do deus, não mais viu o ídolo primoroso e sim o Espírito de Quinto Varro, nimbado de intensa luz, a olhá-lo com enternecimento e tristeza.

O jovem quis recuar, transido de assombro, mas indefiníveis emoções subjugavam-lhe agora todo o ser.

Como que dobrado por forças misteriosas, ajoelhou-se ante a visita inesperada.

Desejou falar, mas não conseguiu, assinalando estranha constrição nas cordas vocais.

Pranto mais intenso jorrava-lhe dos olhos.

Identificou a personalidade do genitor e, esmagado por inexprimível emoção, notou que Varro caminhava para ele, de afetuoso olhar encimando triste sorriso.

A entidade amorosa afagou-lhe a cabeça atormentada e falou:

— Taciano, meu filho!… Que o Supremo Senhor nos abençoe a senda de redenção. Deixa que as lágrimas te lavem todos os escaninhos da alma! Milagrosa lixívia, o pranto purifica nossas chagas de vaidade e ilusão.

Não te julgues relegado ao abandono!…

Ainda mesmo quando as nossas preces se expandam ardentes, perante os ídolos sem alma, o coração augusto do Senhor as recolhe na misteriosa concha do seu amor infinito, apressando o socorro às nossas necessidades.

Tem calma e confiança, filho meu! Voltaremos à experiência da carne para resgatar e reaprender.

Nesse instante, Taciano, magnetizado pelo olhar paterno, tentou erguer-se para abraçá-lo ou rojar-se até o chão, a fim de oscular-lhe os pés; no entanto, como se estivesse imobilizado por laços invisíveis, não conseguiu articular qualquer movimento.

— Ouve-me! — prosseguiu Varro, compadecidamente — pedes o retorno à liça terrestre, entediado de ti mesmo, e receberás semelhante concessão. Estaremos novamente reunidos, na cela corpórea do mundo físico — abençoada escola de nossa regeneração para a vida eterna, todavia, não mais na exaltação do orgulho e do poder.

Nossos deuses de pedra estão mortos.

Júpiter, com o seu carro de triunfo, passou para sempre. Em lugar dele, surge o Mestre da Cruz, o escultor divino da perfeição espiritual imperecível, que nos toma por tutelados felizes do seu coração.

Outrora, acreditávamos que a púrpura romana sobre o sangue dos vencidos era o símbolo de nossa felicidade racial e admitíamos que os gênios celestes deviam permanecer submetidos aos nossos caprichosos impulsos. Hoje, porém, o Cristo nos orienta o passo por estradas diversas. A Humanidade é a nossa família e o mundo é o nosso Lar  Maior, onde todos somos irmãos. Diante do Céu, não há escravos nem senhores e sim criaturas ligadas entre si pela mesma origem divina.

Os cristãos que não compreendes agora são os alicerces da glória futura. Humilhados e escarnecidos, vilipendiados e mortos no sacrifício, representam a promessa de paz e sublimação para o mundo.

Um dia, ninguém se lembrará do fausto de nossas mentirosas celebrações. A ventania que sopra dos montes gelados espalhará sobre o chão escuro a cinza de nossa miserável grandeza, então convertida em lamentação e pó. Mas a renúncia dos homens e das mulheres que hoje se deixam imolar por uma vida melhor estará cada vez mais santificada e mais viva, na fraternidade que reinará soberana!…

Talvez reparando a profunda surpresa do jovem que o escutava, trêmulo e abatido, Quinto Varro acentuou:

— Prepara-te como valoroso soldado do bem. Em breve tempo, regressaremos à escola da carne. Serás para mim a estrela da manhã, indicando-me a chegada do sol, cada dia. Certo, sofrimentos cruéis abater-se-ão sobre nós, qual ocorre aos servidores da verdade nesta noite de tormentosa flagelação. Indubitavelmente, a dor espreitar-nos-á a existência, porque a dor é o selo do aperfeiçoamento moral no mundo… Conheceremos a separação e a desventura, o fel e o martírio, mas o pão da graça celeste entre os homens por muitos séculos ainda será amassado no suor e nas aflições dos servidores da luz! Seguirei teus passos, à maneira do cão fiel, e espero que, unido ao meu coração, poderás repetir, mais tarde:

— Ave, Cristo! os que vão viver para sempre te glorificam e saúdam!…

O mensageiro fez longa pausa, enquanto aves noturnas piavam, doloridamente, no arvoredo mergulhado nas sombras.

Roma dormia, agora, em pesada quietação.

Quinto Varro inclinou-se, carinhosamente, apertou o filho de encontro ao peito e beijou-lhe a fronte.

Nesse instante, porém, talvez porque sensações contraditórias lhe turvassem o campo íntimo, Taciano cerrou os olhos para interromper a corrente das lágrimas copiosas, mas, ao descerrá-los, de novo, observou que seu pai havia desaparecido.

A paisagem fizera-se inalterada.

A estátua de Apolo brilhava, refletindo o luar esmaecido da madrugada.

Premido de angústia, Taciano alongou os braços para a noite que lhe pareceu, então, desolada e vazia, bradando, desesperado:

— Meu pai! meu pai!…

E porque seus gritos se perdessem sem eco, no espaço imenso, cansado e abatido estendeu-se na terra, soluçando…

Anos e anos se dobaram sobre estes acontecimentos…


Emmanuel






(Nota do Autor espiritual) — II Coríntios, 4:8-11
Fonte: Bíblia do Caminho † Testamento Xavieriano

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