segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Allan Kardec - Revista Espírita - Ano VI, Outubro de 1863 - Benfeitores anônimos



Allan Kardec - Revista Espírita - Ano VI, Outubro de 1863


Benfeitores anônimos


O fato seguinte é relatado pelo Patrie, de abril último:

“O proprietário de uma casa na Rua do Cherche-Midi tinha permitido anteontem que o inquilino se mudasse sem saldar a conta, entretanto, mediante um reconhecimento de seu débito. Mas, enquanto carregavam os móveis, o proprietário arrependeu-se e quis ser pago antes da retirada dos móveis. O locatário se desesperava, sua mulher chorava, e dois filhos em tenra idade imitavam a mãe. Um cavalheiro, condecorado com a Legião de Honra, passava no momento por aquela rua. Ele parou. Tocado por esse espetáculo desolador, aproximou-se do infeliz devedor, e, sabedor do montante devido pelo aluguel, entregou-lhe duas notas e desapareceu, acompanhado pelas bênçãos daquela família que ele salvava do desespero.”

“O Opinion du Midi, jornal de Nîmes, em julho relatava outro caso do mesmo gênero:

“Acaba de passar-se um fato tão estranho, pelo mistério com que se realizou, quão tocante por seu objetivo e pela delicadeza do procedimento do seu autor.

“Há três dias noticiamos que um violento incêndio tinha consumido quase que inteiramente a loja e as oficinas de um tal Sr. Marteau, marceneiro em Nîmes. Contamos a dor desse infeliz em presença de um sinistro que consumava a sua ruína, pois o seguro que tinha feito era infinitamente inferior ao valor das mercadorias destruídas.

“Soubemos hoje que três carretas contendo madeira de várias qualidades e instrumentos de trabalho foram levadas à frente da casa do Sr. Marteau e descarregadas em suas oficinas meio devoradas pelo fogo.

“O encarregado do transporte respondeu às interpelações, alegando a ignorância em que se achava relativamente ao nome do doador cuja vontade executava. Alegou não conhecer a pessoa que o havia encarregado de transportar a madeira e os utensílios ao Sr. Marteau, e nada saber além dessa incumbência. Retirou-se após ter descarregado as três viaturas.

“A alegria e a felicidade substituíram no Sr. Marteau o aba­timento de que era impossível tirá-lo desde o dia do incêndio.

“Que o generoso desconhecido que tão nobremente veio em socorro de um infortúnio que, sem ele, talvez tivesse sido irreparável, receba aqui os agradecimentos e as bênçãos de uma família que desde hoje lhe deve a mais doce consolação e que em breve talvez lhe deva a prosperidade.”

O coração fica novamente sereno ao se ler fatos semelhantes, que vêm, de vez em quando, fazer a contrapartida aos relatos de crimes e torpezas que os jornais exibem em suas colunas.

Fatos como os acima relatados provam que a virtude não está inteiramente banida da Terra, como julgam certos pessimistas. Sem dúvida o mal ainda domina, mas quando se procura na sombra, verifica-se que sob a erva daninha há mais violetas, isto é, maior número de boas almas do que se espera. Se elas aparecem tão esparsas, é que a verdadeira virtude não se põe em evidência, por ser humilde. Ela se contenta com os prazeres do coração e com a aprovação da consciência, ao passo que o vício se manifesta afrontosamente, em plena luz. Ele faz barulho, porque é orgulhoso. O orgulho e a humildade são os dois polos do coração humano. Um atrai todo o bem, o outro, todo o mal. Um tem calma, o outro, tempestade. A consciência é a bússola que indica a rota conducente a cada um deles.

O benfeitor anônimo, como aquele que não espera a morte para dar aos que não têm, é, sem contradita, o tipo do homem de bem por excelência; é a personificação da virtude modesta, aquela que não busca aplausos dos homens.

Fazer o bem sem ostentação é um sinal inconteste de grande superioridade moral, porque é necessária uma fé viva em Deus e no futuro. É necessário fazer abstração da vida presente e identificar-se com a vida futura para esperar a aprovação de Deus e renunciar à satisfação proporcionada pelo testemunho atual dos homens.

O obsequiado abençoa de coração a mão generosa e desconhecida que o socorreu, e essa bênção sobe ao Céu mais que os aplausos da multidão. Aquele que preza mais o sufrágio dos homens que o de Deus prova ter mais fé nos homens do que em Deus e que para ele a vida presente tem mais valor que a vida futura. Se disser o contrário, age como quem não crê no que diz.

Quanta gente que não faz obséquios senão com a esperança de ver o obsequiado proclamar o benefício do alto dos telhados; que em plena luz daria uma grande soma, mas na obscuridade não daria uma simples moeda! Eis por que disse Jesus: “Os que fazem o bem com ostentação já receberam sua recompensa.” Com efeito, àquele que busca sua recompensa na Terra, Deus nada deve. Só lhe resta receber o preço de seu orgulho.

Talvez certos críticos perguntem: Que relação tem isto com o Espiritismo? Quantos casos não contareis, mais divertidos do que esta moral enfadonha! (Jugement de la morale spirite, do Sr. Figuier, vol. IV, pág. 369). Isto tem relação com o Espiritismo, no sentido que o Espiritismo, proporcionando uma fé inabalável na bondade de Deus e na vida futura, e graças a ele, fazendo os homens o bem pelo bem, eles serão um dia menos esparsos do que hoje. Então os jornais terão menos crimes e suicídios a registrar, e mais atos da natureza dos que deram lugar a estas reflexões.


Allan Kardec














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