André Luiz - Livro Entre a Terra e o Céu - Chico Xavier - Cap. 7
Consciência em desequilíbrio
(Sumário)
Consoante as recomendações que havíamos recebido, aguardamos dona Antonina, no estreito recinto em que se processara o culto familiar.
Agora, conseguíamos reparar o ancião desencarnado com mais atenção. Conservando integrais remanescentes da vida física, abatido e trêmulo, parecia inquieto, dementado…
Tentamos debalde uma aproximação.
Não nos via.
Lembrei ao meu companheiro que poderíamos densificar o nosso veículo, pela concentração da vontade, e apressamo-nos na providência.
Em momentos breves, fornecendo a impressão de recém-chegados, atraímos-lhe o interesse.
O velhinho precipitou-se para nós, exclamando:
— São oficiais ou praças? Estão pró ou contra?
Aquele olhar esgazeado era efetivamente o de um louco.
Hilário e eu trocamos impressões de curiosidade e espanto.
E antes que nos pronunciássemos, começou a chorar, convulsivamente, acentuando:
— Quem trouxe aqui a ideia de perdoar? em que ponto me situaria na questão? devo perdoar ou ser perdoado? Não entendo a necessidade de discussão em torno de um assunto como esse entre fraca mulher e três crianças… Comentários dessa natureza devem ser reservados para pessoas aflitas como eu, que trazem um vulcão no centro do crânio…
Assim dizendo, alteraram-se-lhe as feições fisionômicas.
Afigurou-se-nos mais distante da realidade, mais inconsciente.
Gritando quase, continuou:
— Tudo teria sido modificado se me houvessem facultado o encontro com o novo Generalíssimo… Sua Alteza compreender-me-ia a situação. Era propósito do Marechal requisitar-me para seu serviço exclusivo, entretanto, por influência do meu miserável perseguidor, sofri transferência injusta…
Nosso inesperado amigo vasculhou com os olhos os recantos da sala, qual se temesse a presença de alguma testemunha invisível, e prosseguiu:
— Ouçam, porém, o que lhes digo! Ele não somente pretendia afastar-me dos favores do Marechal doente, mas planejava furtar-me a mulher… Lola Ibarruri! como não haveria de querê-la com a paixão que me inspirou? Porque teria eu de seguir para Fecho dos Morros? O intento de me prejudicarem era evidente. Sem dúvida, fui constrangido a sair, mas não fui além de Tacuaral. O General Polidoro não me abandonaria… Devia regressar a Luque e regressei… O infame Esteves, contudo, agira sem descansar… Além de assaltar-me os direitos de enfermeiro no Quartel General, desviara a atenção de Lola… A formosa Ibarruri não mais me pertencia. Entregara-se ao amigo desleal… Nossa pequena chácara de laranjeiras e nosso jardim estavam esquecidos… Quem disse que não me sacrifiquei na aquisição da encantadora casinha, por mim confiada à pérfida mulher? Durante um mês longo e terrível, suspirei pelo retorno aos carinhos dela… Quando tornei ao lar, naquela estrelada noite de maio, encontrei-a nos braços do traidor… Lola tentou desculpar-se, mas surpreendi-os juntos… Quis vingar-me, de imediato, espetando-o com meu punhal, todavia, as tropas deixariam a cidade, daí a três dias, e o meu inimigo, que se esgueirara na sombra, ante a minha aproximação deu-se pressa em viajar, a serviço, no rumo de Itauguá… O ódio passou a dominar-me, enceguecendo-me… Encontrá-lo-ia em alguma parte, abraçá-lo-ia com a mesma cordialidade fingida com que me abraçara pela primeira vez e arrancar-lhe-ia a vida… Assim fiz… Aparentei ignorar a realidade e busquei-o, sorrindo… e, sorrindo, envenenei-o… Creiam, contudo, que somente me abalancei a semelhante ato, porque ele era impudente, libertino, cruel… Assassinar-me-ia, se eu não tivesse o arrojo de liquidá-lo…
Fez breve pausa e, em seguida, ajoelhando diante de nós, passou a clamar, de novo, em alta voz:
— Oh!… para mim, estou certo de que pratiquei a justiça, mas este homem realmente não me abandona! Lutei tanto!… Casei-me e organizei grande família!… Devotei-me à religião, desfrutei os benefícios dos santos sacramentos e admiti que tudo estivesse amplamente solucionado, entretanto, depois de retirar-me do corpo físico sob a imposição da velhice e da enfermidade, longe de encontrar o Céu que parece cada vez mais distante de mim, reconheço que este homem continua a perseguir-me por dentro!… Faz muitos anos que me despedi dos ossos fatigados e perambulo, aflito e infeliz, carregando o inferno, dentro de mim!… A princípio, procurei o sepulcro, na esperança de soerguer meus restos e, escondendo-me neles, esquecer… esquecer… Compreendendo, porém, que meu desejo era de todo frustrado, fugi para sempre do lugar que me asila os despojos e devoro ruas e praças, buscando autoridades que me socorram…
Depois de passar as mãos pelo rosto, enxugando as lágrimas, continuou:
— Ó senhores, por quem são!… ainda mesmo que o meu erro fosse tão clamoroso assim, tanto tempo de convívio com este monstro a fitar-me, imperturbável, não bastaria à expiação que me compete ao resgate? Se eu confessasse o crime e me demorasse por menos tempo no cárcere, não estaria redimido, diante dos tribunais?
Sentindo que algo nos caberia dizer à guisa de consolo, afaguei-lhe a cabeça branca e falei, tentando ser gentil:
— Acalme-se, meu irmão! quem de nós não terá desacertado no caminho da vida? sua dor não é única… Também nós trazemos o espírito pejado de aflitivas recordações. As lágrimas de desesperação desajudam a alma…
Pelas citações que ouvíramos, percebi que o nosso interlocutor se reportava ao tempo da Guerra do Paraguai e, buscando penetrar o labirinto de suas palavras que estabeleciam ligação do passado com o presente, indaguei:
— A que novo Generalíssimo se refere?
— Ah! ignoram?
E dando-nos a ideia de quem vivia profundamente arraigado a particularidades do pretérito, aduziu:
— Recordo-me com precisão… Sim, a proclamação dele era de 16 de abril… O Príncipe D. Gastão de Orleães era o novo comandante em chefe, mas muito me pesava o afastamento do Marechal…
— Qual deles? — perguntei, reavivando-lhe a memória.
— O Marechal Guilherme Xavier de Souza. Era meu amigo, meu protetor… Doente, cansado, precisava de mim… contudo, afastaram-me dele… Esteves, o cão infiel…
Nesse instante, porém, a voz extinguiu-se-lhe na garganta. Esbugalharam-se-lhe os olhos e, como se estivesse atenazado no íntimo por forças terríveis, insondáveis à nossa observação, começou a queixar-se, desesperado:
— Ah! não posso continuar!.. Ele, novamente ele, a crescer dentro de mim! Observa-me com asco e ainda lhe ouço as últimas palavras no estertor da morte… Não! Não! — bradava ele, agora, com evidentes sinais de angústia — hei-de libertar-me! hei-de libertar-me! Tenho fé!…
Comovidamente, acerquei-me do pobrezinho e considerei:
— Sim, meu amigo, a fé representa o milagroso salva-vidas de todos os náufragos. Você tem orado? tem pedido a Jesus amparo e assistência?
— Sim, sim…
— E ainda não lhe chegou qualquer sinal de socorro celeste?
O infortunado centralizou em mim o olhar inquieto e informou:
— Há alguns dias, fui à Igreja do Rosário, recordando como sempre a visita que fiz até lá, na véspera de minha partida para a guerra, e tanto rezei que tive a felicidade de ver o Marechal, que me apareceu, de súbito… Estava mais moço e incompreensivelmente refeito… Roguei-lhe proteção, ao que me respondeu, informando que o meu caso seria tomado em apreço, que eu descansasse, pois ainda que os nossos erros sejam grandes, maior é a compaixão de Deus que nunca nos desampara…
E, exibindo um gesto de profundo abatimento, acrescentou:
— Mas, até agora, não tive o menor sinal de renovação do caminho…
Acariciei-lhe a nevada cabeça e considerei, comovidamente:
— Esteja convencido, porém, de que a bondade de Jesus não nos faltará.
— Prometa ajudar-me! compadeça-se de mim! — gritou o infeliz.
De coração, intimamente tocado por semelhante apelo, hipotequei-lhe a decisão de colaborar em sua paz e soerguimento.
Quando o infortunado ancião procurava abraçar-me, Clarêncio chegou, guiando a outra pupila que nos acompanharia na excursão.
Simpática e humilde, após cumprimentar-nos, manteve-se a distância. O mentor, num átimo, compreendeu o que se passava. Vimo-lo concentrar-se por momentos, densificando-se para auxiliar com mais presteza.
Saudado pelo velhinho, afagou-lhe a fronte e avisou-nos:
— Permanece dementado. A mente dele fixou-se em recordações que o obcecam.
Mais experiente que nós outros, guardou-o nos braços com paternal carinho, conquistando-lhe a confiança e inquiriu:
— Que procura, meu irmão?
— Venho suplicar o socorro de Antonina, minha neta. É a única pessoa que se lembra de mim com amor… Dentre os numerosos membros de minha família, só ela me oferece asilo na oração…
E, porque reiniciasse as referências lamuriosas, o Ministro colocou a destra sobre a cabeça de nosso interlocutor, como a sondar-lhe o íntimo em minuciosa perquirição e, em seguida, informou:
— Temos aqui nosso irmão Leonardo Pires, desencarnado há cerca de vinte anos… Quando jovem, foi empregado do Marechal Guilherme Xavier de Souza e hoje conserva a mente detida num crime de envenenamento em que se envolveu, quando integrava as forças brasileiras acampadas em Piraju, no Paraguai. Podemos conhecer o delito, em suas particularidades, na tela das recordações que o atormentam… É um domingo de festa em campanha… 11 de julho de 1869… A missa é celebrada em pleno campo por um frade capuchinho… O Conde d’Eu, com a luzida oficialidade do seu Quartel General, está presente… Nosso amigo, muito moço ainda, aparece no corpo da infantaria. Não se mostra, porém, interessado nas graves advertências do sacerdote, no ato religioso, nem no apelo ardente e patriótico do Generalíssimo, que pronuncia brilhante e inspirada alocução para os comandados… Fita com impertinência um companheiro recém-chegado de Itauguá, enfermeiro em serviços especiais… É José Esteves, irrequieto brasileiro de olhos escuros e inteligentes, de garboso porte, com os seus trinta anos bem feitos… Partilha com o nosso amigo o afeto de linda mulher desquitada, que abandonou o marido e um filho pelo prazer da aventura… Pires, o irmão que observamos, inconformado com os favores da criatura amada para com o patrício que ele odeia, finge ignorar-lhe a situação e insinua-se maneiroso e gentil… Terminada a festa, convida Esteves para refeição mais íntima… E, juntos, comentam entusiásticos as noitadas do Rio, ansiosos pelo retorno às seduções da retaguarda… Esteves entrosa-se com as impressões de Leonardo, confia nele e conversa, loquaz, até que o vingativo colega, na taverna improvisada, lhe oferece um copo de vinho com o veneno fatal… O companheiro bebe, experimenta estranhas vertigens e morre praguejando… O acontecimento é recebido com admiração… Um médico argentino é chamado a opinar e verifica o envenenamento, contudo, as autoridades julgam o silêncio mais acertado… As tropas deveriam seguir rumo a Paraguari e o caso é encerrado sem maior investigação… Leonardo acompanha o Exército para a vanguarda e tenta esquecer o ocorrido… Convive ainda com a requestada mulher, por mais algum tempo, mas, de regresso à terra natal, desinteressa-se dela e casa-se no Brasil, deixando vários descendentes… Desencarna, valetudinário; todavia, no leito de morte, reconhece que a lembrança do crime lhe castiga o mundo interior.. Olvida quase todos os demais episódios da existência para centralizar-se apenas nesse… José Esteves já reencarnou, demorando-se agora em outros setores de luta, mas Leonardo Pires vive com a imagem do assassinado que se revitaliza, cada dia, na memória dele, ao influxo das sugestões da própria consciência que se considera culpada… Como vemos, é a Lei de causa e efeito a cumprir-se, natural…
Nesse instante, porém, Antonina, em seu veículo sutil, surgiu à porta da câmara em que o seu corpo dormia, vindo ao nosso encontro.
André Luiz
VÍDEO:
Entre a Terra e o Céu - André Luiz / Chico Xavier
Capítulo 7 - Consciência em desequilíbrio
Capítulo 8 - Deliciosa excursão
Apresentação: André Luiz Ruiz
O Espírito da Letra - Analisando a obra de André Luiz Entre a Terra e o Céu - Psicografia de Chico Xavier
Capítulo 7 - Consciência em desequilíbrio
Capítulo 8 - Deliciosa excursão
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