terça-feira, 1 de novembro de 2022

Allan Kardec - Revista Espírita - Janeiro, 1859 - Carta a S. A. o Príncipe G.



Allan Kardec - Revista Espírita - Janeiro, 1859


Carta a S. A. o Príncipe G.


Príncipe,

Deu-me Vossa Alteza a honra de me dirigir várias perguntas relativas ao Espiritismo. Tentarei respondê-las até onde o permite o estado atual dos conhecimentos sobre a matéria, resumindo em poucas palavras aquilo que a respeito aprendemos pelo estudo e pela observação. As questões em causa baseiam-se nos próprios princípios da Ciência. Para dar mais clareza à solução, é necessário ter em mente esses princípios. Permita-me, pois, considerar o assunto de um plano um pouco mais alto, e estabelecer como preliminares certas proposições fundamentais, que servirão, aliás, de resposta a algumas dessas perguntas.

Fora do mundo corpóreo visível existem seres invisíveis, que constituem o mundo dos Espíritos.

Os Espíritos não são seres à parte, mas as próprias almas dos que viveram na Terra, ou em outras esferas, e que se despojaram de seus envoltórios materiais.

Os Espíritos apresentam todos os graus de desenvolvimento intelectual e moral. Consequentemente, há Espíritos bons e maus, esclarecidos e ignorantes, levianos e mentirosos, velhacos e hipócritas, que procuram enganar e induzir ao mal, assim como os há em tudo muito superiores, que não procuram senão fazer o bem. Esta distinção é um ponto capital.

Os Espíritos rodeiam-nos incessantemente. Malgrado nosso, dirigem os nossos pensamentos e as nossas ações, assim influindo sobre os acontecimentos e sobre os destinos da Humanidade.

Os Espíritos por vezes revelam sua presença por meio de efeitos materiais. Esses efeitos nada têm de sobrenatural; só nos parecem sobrenaturais porque repousam sobre bases fora das leis conhecidas da matéria. Uma vez conhecidas essas bases, os efeitos entram na categoria dos fenômenos naturais. É assim que os Espíritos podem agir sobre os corpos inertes e movê-los sem o concurso dos nossos agentes externos. Negar a existência de agentes desconhecidos, pelo simples fato de que não os compreendemos, seria traçar limites ao poder de Deus e crer que a Natureza nos tenha dito a sua última palavra.

Todo efeito tem uma causa; ninguém o contesta. É, pois, ilógico negar a causa pelo simples fato de que é desconhecida.

Se todo efeito tem uma causa, todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente. Quando vemos as peças do aparelho telegráfico produzirem sinais que correspondem ao pensamento, não concluímos que elas sejam inteligentes, mas que são movidas por uma inteligência. Dá-se o mesmo com os fenômenos espíritas. Se a inteligência que os produz não é a nossa, evidentemente está fora de nós.

Nos fenômenos das ciências naturais agimos sobre a matéria inerte e a manejamos à nossa vontade. Nos fenômenos espíritas agimos sobre inteligências que dispõem do livre-arbítrio e não se submetem à nossa vontade. Há, pois, entre os fenômenos comuns e os fenômenos espíritas uma diferença radical quanto ao princípio. Eis por que a ciência vulgar é incompetente para julgá-los.

O Espírito encarnado tem dois envoltórios: um material, que é o corpo; outro semimaterial e indestrutível, que é o perispírito. Deixando o primeiro, ao desencarnar, conserva o segundo, que constitui uma espécie de segundo corpo, mas de propriedades essencialmente diferentes. Em seu estado normal ele é invisível para nós, mas pode tornar-se momentaneamente visível e mesmo tangível. Tal a causa do fenômeno das aparições.

Os Espíritos não são, pois, seres abstratos, indefinidos, mas seres reais e limitados, com existência própria, que pensam e agem em virtude de seu livre-arbítrio. Estão por toda parte, em volta de nós; povoam os espaços e se transportam com a rapidez do pensamento.

Os homens podem entrar em relação com os Espíritos e receber comunicações diretas pela escrita, pela palavra ou por outros meios. Estando ao nosso lado, ou podendo vir ao nosso apelo, é possível, por certos meios, estabelecer comunicações frequentes com os Espíritos, assim como um cego pode fazê-lo com as pessoas que ele não vê.

Certas pessoas são mais dotadas que outras de uma aptidão especial para transmitir comunicações dos Espíritos. São os médiuns. O papel do médium é o de um intérprete; é um instrumento de que se serve o Espírito; esse instrumento pode ser mais ou menos perfeito, donde as comunicações mais ou menos fáceis.

Os fenômenos espíritas são de duas ordens: as manifestações físicas e materiais e as comunicações inteligentes. Os efeitos físicos são produzidos por Espíritos inferiores; os Espíritos elevados não se ocupam dessas coisas, do mesmo modo que os nossos sábios não se entregam a trabalhos pesados; seu papel é instruir pelo raciocínio.

As comunicações tanto podem provir de Espíritos inferiores quanto de superiores. Como os homens, os Espíritos podem ser reconhecidos por sua linguagem: a dos Espíritos superiores é sempre séria, digna, nobre e cheia de benevolência; toda expressão trivial ou inconveniente, todo pensamento que choca a razão e o bom-senso, que denota orgulho, acrimônia ou malevolência emana necessariamente de um Espírito inferior.

Os Espíritos elevados só ensinam boas coisas. Sua moral é a do Evangelho. Só pregam a união e a caridade e jamais enganam. Os Espíritos inferiores dizem absurdos, mentiras e por vezes até grosserias.

A boa qualidade de um médium não está apenas na facilidade das comunicações, mas sobretudo na natureza das comunicações que recebe. Um bom médium é o que simpatiza com os bons Espíritos e não recebe senão boas comunicações.

Todos nós temos um Espírito familiar que se liga a nós desde o nascimento, que nos guia, aconselha e protege. Este é sempre um Espírito bom.

Além do Espírito familiar, há outros que atraímos graças à sua simpatia por nossas qualidades e defeitos ou em virtude de antigas afeições terrenas. Daí se segue que em toda reunião há uma porção de Espíritos mais ou menos bons, conforme a natureza do meio.

Os Espíritos podem revelar o futuro?

Os Espíritos só conhecem o futuro proporcionalmente à sua elevação. Os inferiores nem o seu próprio futuro conhecem e, muito menos ainda, o dos outros. Os Espíritos superiores o conhecem, mas nem sempre lhes é permitido revelá-lo. Em princípio, e por um sábio desígnio da Providência, o futuro nos deve ser oculto. Se o conhecêssemos, nosso livre-arbítrio seria entravado. A certeza do êxito nos tiraria a vontade de fazer qualquer coisa, porque não veríamos a necessidade de nos darmos a esse trabalho; a certeza de uma desgraça nos desencorajaria. Contudo, casos há em que o conhecimento do futuro pode ser útil; entretanto, jamais poderemos ser juízes de tais casos. Os Espíritos no-los revelam quando o julgam conveniente e quando têm a permissão de Deus. Então o fazem espontaneamente, e nunca a nosso pedido. Devemos esperar a oportunidade com confiança e, sobretudo, não insistir no caso de recusa, pois do contrário arriscar-nos-íamos a tratar com Espíritos levianos, que se divertem à nossa custa.

Os Espíritos podem guiar-nos mediante conselhos diretos nas coisas da vida?

Sim, podem e o fazem de boa vontade. Diariamente tais conselhos nos chegam pelos pensamentos que nos sugerem. Com frequência fazemos coisas cujo mérito atribuímos a nós mesmos, quando realmente não passam de uma inspiração que nos foi transmitida. Ora, como somos rodeados de Espíritos que nos influenciam, estes num sentido, aqueles em outro, temos sempre o nosso livre-arbítrio para guiar-nos na escolha, e é para nós uma felicidade quando damos preferência ao nosso gênio bom.

Além dos conselhos ocultos, podemos obter outros conselhos diretamente, através de um médium. Mas cabe aqui relembrar os princípios fundamentais que acabamos de emitir. A primeira coisa a considerar é a qualidade do médium, quando não formos nós próprios. Um médium que só recebe boas comunicações e que, por suas qualidades pessoais, só se afina com os bons Espíritos, é um ser precioso, do qual podem esperar-se grandes coisas, desde que o secundemos pela pureza de suas próprias instruções, a elas vinculando-nos convenientemente. Direi mais: é um instrumento providencial.

O segundo ponto, não menos importante, consiste na natu­reza dos Espíritos a quem nos dirigimos. Não devemos crer que o primeiro que se apresente possa guiar-nos adequadamente. Enganar-se-ia redondamente aquele que nas comunicações espíritas visse apenas um meio de adivinhação e no médium um leitor de “buena-dicha”. É preciso considerar que no mundo dos Espíritos temos amigos que por nós se interessam e que são mais sinceros e mais devotados do que aqueles que assim se consideram aqui na Terra, os quais não têm nenhum interesse em nos adular ou enganar. São, além do nosso Espírito protetor, parentes ou pessoas que nos foram afeiçoadas, ou Espíritos que nos querem bem, por simpatia. Esses, quando chamados, vêm de boa vontade e até mesmo sem serem chamados. Muitas vezes os temos ao nosso lado sem o suspeitarmos. É a eles que podemos pedir conselhos diretamente, através dos médiuns, e que no-los dão até mesmo espontaneamente. Fazem-no sobretudo na intimidade, no silêncio e quando não perturbados por qualquer influência estranha. São, aliás, muito prudentes e nenhuma indiscrição devemos temer de sua parte: calam-se quando há ouvidos demais. Fazem-no ainda mais espontaneamente quando em comunicação frequente conosco. Como dizem apenas coisas adequadas e oportunas, devemos esperar sua boa vontade e nunca imaginar que apressadamente venham satisfazer todos os nossos pedidos. Querem assim provar que não se acham às nossas ordens.

A natureza das respostas depende muito da maneira de fazer as perguntas. É necessário aprender a conversar com os Espíritos, assim como aprendemos a conversar com os homens. Em tudo é preciso experiência. Por outro lado, o hábito faz que os Espíritos se identifiquem conosco e com o médium; que os fluidos se combinem e as comunicações sejam mais fáceis; então entre eles e nós se estabelecem conversas realmente familiares. Aquilo que não dizem hoje, dirão amanhã; habituam-se à nossa maneira de ser, como nós à deles; ficamos reciprocamente mais à vontade. Quanto à interferência de maus Espíritos e de Espíritos enganadores ─ o que constitui o grande obstáculo ─ a experiência nos ensina a combatê-los e podemos sempre evitá-los. Se não lhes damos guarida, eles não vêm porque sabem que vão perder o seu tempo.

Qual poderá ser a utilidade da propagação das ideias espíritas?

Sendo o Espiritismo a prova palpável e evidente da existência, da individualidade e da imortalidade da alma, é a destruição do materialismo, essa negação de toda religião, essa chaga de toda a Sociedade. O número de materialistas que ele conduziu a ideias mais sadias é considerável e aumenta todos os dias. Só isto representa um benefício social. Ele não somente prova a existência da alma e a sua imortalidade, como ainda mostra o seu estado feliz ou desgraçado, conforme os méritos desta vida. As penas e recompensas futuras deixam de ser uma teoria, para tornar-se um fato patente aos nossos olhos. Ora, como não há religião possível sem a crença em Deus, na imortalidade da alma e nas penas e recompensas futuras, o Espiritismo reaviva essas crenças nas pessoas às quais ela estava apagada. Resulta daí que ele é o mais poderoso auxiliar das ideias religiosas. Ele dá religião aos que não a possuem; fortifica-a nos que a têm vacilante; consola pela certeza do futuro; faz suportar com paciência e resignação as tribulações desta vida e desvia o pensamento do suicídio, ideia que naturalmente repelimos quando lhe vemos as consequências. É por isso que os que penetraram em seus mistérios sentem-se felizes. Para esses o Espiritismo é uma luz que dissipa as trevas e as angústias da dúvida.

Se considerarmos, dessa maneira, a moral ensinada pelos Espíritos superiores, veremos que ela é totalmente evangélica, pois basta dizer que prega a caridade cristã em toda a sua sublimidade; ela faz mais, porque mostra a sua necessidade, tanto para a felicidade presente como para a futura, pois as consequências do bem e do mal que fazemos estão aí, diante dos nossos olhos. Reconduzindo os homens aos sentimentos de seus deveres recíprocos, o Espiritismo neutraliza o efeito das doutrinas subversoras da ordem social.

Essas crenças não poderiam representar um perigo para a razão?

As ciências todas não forneceram o seu contingente para os asilos de alienados? Por isto devem ser condenadas? Não estão largamente representadas entre elas as crenças religiosas? Seria justo, por isto, proscrever a religião? Conhecemos o número de loucos produzidos pelo medo do diabo? Todas as grandes preocupações intelectuais conduzem à exaltação e podem reagir prejudicialmente sobre um cérebro fraco. Teríamos razão de ver no Espiritismo um perigo especial, se ele fosse a causa única ou mesmo preponderante dos casos de loucura. Faz-se um grande barulho em torno de dois ou três casos que, noutras circunstâncias, teriam passado despercebidos. E, além disso, não se levam em conta as causas predisponentes anteriores. Eu poderia citar outros casos em que as ideias espíritas bem compreendidas sustaram o desenvolvimento da loucura. Em resumo, o Espiritismo não oferece, a tal respeito, mais perigo do que as mil e uma causas que a produzem diariamente. Direi mais: ele as oferece em número muito menor, pois traz em si o corretivo e, pela direção que dá às ideias, pela calma que proporciona ao espírito dos que o compreendem, pode neutralizar o efeito das causas estranhas. Uma dessas causas é o desespero. Ora, o Espiritismo, fazendo-nos encarar as coisas mais desagradáveis com sangue frio e resignação, dá-nos a força de suportá-las com coragem e resignação e atenua os funestos efeitos do desespero.

As crenças espíritas não são a consagração das ideias supersticiosas da Antiguidade e da Idade Média e não irão aboná-las?

As pessoas sem religião não taxam de superstição a maior parte das crenças religiosas? Uma ideia só é supersticiosa pelo fato de ser falsa; deixa de ser, quando se torna uma verdade. Está provado que no fundo da maioria das superstições existe uma verdade amplificada ou desnaturada pela imaginação. Ora, tirar dessas ideias todo o seu conteúdo fantástico e deixar apenas a realidade é destruir a superstição. Tal é o efeito da ciência espírita, que põe a nu o que há de verdadeiro e de falso nas crenças populares.

Durante muito tempo as aparições foram consideradas como crendices. Hoje, que são um fato comprovado e, mais ainda, perfeitamente explicado, elas entraram para o domínio dos fenômenos naturais. Não adianta condená-las, porque não impediremos que continuem a produzir-se. Entretanto, aqueles que as compreendem não só não se apavoram, mas ficam satisfeitos. E isto a tal ponto que aqueles que não têm essas ideias desejam tê-las. Deixando o campo livre à imaginação, os fenômenos incompreendidos são a fonte de uma porção de ideias acessórias e absurdas que degeneram em superstições. Mostre-se a realidade, explique-se a causa e a imaginação se detém no limite do possível; o maravilhoso, o absurdo e o impossível desaparecem, e com eles a superstição. Tais são, entre outras, as práticas cabalísticas; a virtude dos signos e das palavras mágicas; as fórmulas sacramentais; os amuletos; os dias nefastos; as horas diabólicas e tantas outras coisas cujo ridículo o Espiritismo bem compreende e demonstra.

Tais são, Príncipe, as respostas que me pareceram devidas às perguntas com que Vossa Alteza me honrou. Sentir-me-ei feliz se elas vierem corroborar as ideias que Vossa Alteza já possui sobre essa matéria e induzirem Vossa Alteza a aprofundar uma questão de tão elevado interesse. Mais feliz ainda se meu concurso ulterior puder ser de alguma utilidade.

Com o mais profundo respeito, sou, de Vossa Alteza, muito humilde e muito obediente servidor.


Allan Kardec












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