segunda-feira, 1 de março de 2021

Miramez - Livro Francisco de Assis - João Nunes Maia - Cap. 16 - Os Primeiros Passos




Miramez - Livro Francisco de Assis - João Nunes Maia - Cap. 16


Os Primeiros Passos


Francisco sentiu, por dentro, o atear de uma fogueira de revolta ante o padre, ao ver o seu desprezo pelas coisas de Deus. A igreja era um lugar sagrado, onde os fiéis se reuniam para meditar e fortalecer a fé. Mas, se controlou e respondeu com humildade:

- Desculpa-me, padre. Tenho necessidade de fazer alguma coisa de bom. Achei conveniente começar consertando a casa do Senhor, nosso Deus e, para isso, iniciei pedindo, sendo que encontrei na casa do vigário o que servia para a restauração do nosso Templo. Tive maior segurança em pedir, por se tratar de um vigário do Cristo; todavia, já que não as podes doar, diz-me o preço, que as comprarei.

Acertado o preço das pedras, Francisco as levou para a igreja, onde foram lizadas. Passando o prazo combinado, o restaurador de igreja não pôde pagar ao verendo, por lhe faltar o dinheiro para isso. O padre usurário não se fez esperar, indo à procura de Francisco e desacatando-o. Este humilde, escutou todos os impropérios do vigário, mas, no decorrer da conversa foi tomado de energia diferente e, num intervalo da fala do padre, começou a falar nestes termos:

- Senhor Vigário!... Tenho imenso respeito pelos padres, que sei e sinto, fazem lembrar a vida de Jesus, em todos os seus aspectos morais e espirituais; mas não posso calar-me no que se refere à falta de respeito, de sua parte, para com a igreja de Deus. Eu acho que o templo é um lugar coletivo, que merece todo o respeito e todo o carinho, e principalmente da tua parte, porque és seguidor do Divino Mestre e deves te sentir honrado com isto. Quero pagar-te as pedras, logo que tenha o dinheiro, porém, a minha consciência me fala no fundo d'alma, que o dever de restaurar as igrejas compete aos sacerdotes. São eles os vigilantes da casa do Senhor e é deles a obrigação de mantê-la limpa e bem cuidada. Estou querendo ajudar-te neste mister sagrado, coisa que, perdoa-me, a tua consciência ainda não deu de te avisar.

Peço-te, por caridade, que me ouças mais um pouco. Creio que Deus é como um Sol Divino, e se Ele é mais que o Sol que nos alumia todos os dias, banhando toda a Terra sem escolher quem possa receber seus raios benfeitores, é muito mais beneficente na sua estrutura universal, e assim como podes falar, sob a inspiração do Espírito Santo, sendo um dos filhos de Deus, nós outros poderemos igualmente, dependendo das condições espirituais, ou da necessidade de quem deve ouvir.

Somos influenciados pelos Anjos do Nosso Pai Celestial, porque somos lhos do mesmo Deus, e quanto às pedras, padre, eu estou decepcionado com a tua atitude. Nunca pensei que um padre pudesse fazer o que estás fazendo; lembrei-me fortemente de Judas com os trinta dinheiros. Que Deus te ajude para que não aconteça o mesmo contigo. Podes estar certo de que te pagarei, senão agora, mas hoje mesmo levarei à tua casa. Se não é muito dizer, é bom que nos lembremos que a vivência do Evangelho é renúncia, principalmente para um sacerdote. É desprendimento, principalmente para um discípulo de Cristo, principalmente a um cristão. E caridade, principalmente para um conselheiro do povo. É amor, principalmente para quem prega o Evangelho sob a égide da oficialidade.

Peço-te de coração, não fiques aborrecido comigo, porque acima de tudo sei que somente damos aquilo que podemos dar. Que Deus te abençoe, que Jesus guarde o teu coração da influência do mal, que a nossa Mãe Santíssima guie os teus sentimentos, e que jamais faltem ao teu redor os Anjos de Deus, a te inspirarem acerca das coisas certas.

O padre, diante de tudo o que ouviu da boca de um leigo como Francisco propôs-se a calar.
Regressou à sua mansão, irritado, pois sua consciência aprovava tudo o que Francisco lhe havia falado, e que seus ouvidos gravaram, entregando arquivo consciencial. O Filho de Bernardone, constrangido, pensava no que seria da doutrina do Cristo entregue àqueles homens. Qual o futuro do Evangelho de Jesus se continuassem os seus vigários, mantendo aquele tipo de atitude? Todavia, a mesma voz amiga reforçava o seu coração:

- Francisco!... O Evangelho desceu do céu, não foi escrito pelos homens. Veio com o objetivo de reformar as criaturas e não se aborrece em esperar o quanto for necessário; ele é a voz de Deus que se repete eternamente na alma, até esta compreender e ouvir o seu chamado. Nada se perde, porque Deus não é Deus de mentira. Segue avante, e vamos trabalhar na oportunidade que o Senhor te deu.

No mesmo momento, o filho de dona Picallini começou a cantarolar pelas ruas de Assis. Falava com um, falava com outro da necessidade de restaurar as igrejas, e já à tarde tinha o dinheiro que devia ao sacerdote. Com muita alegria, buscou o padre em sua residência. Bateu à porta. Abriu-a o vigário com o rosto desfigurado, dizendo:

- Já vens tu novamente! Que queres desta vez? Francisco respondeu com ponderação e alegria:

- Pagar o que te devo, senhor!...

Este estendeu a mão usurária e recebeu o dinheiro correspondente à divida. Francisco despediu-se novamente com dor no coração, não pelo dinheiro, mas pelo procedimento de um pastor de almas; entretanto, perdoou e abençoou o vigário.

O padre, naquela noite, não pôde conciliar o sono. Levantou-se e foi contar o ouro recebido de Francisco, e, ao levar a mão ao dinheiro, aconteceu um fenómeno tramado na consciência: suas mãos começaram a esquentar, o calor foi aumentando gradualmente e daí a instantes pegavam fogo, como se estivesse envolvidas chamas. Jogou as moedas no chão, notando que todas elas reluziam como se fossem brasas. Olhou para as suas mãos e viu o mesmo espetáculo. Começou a gritar, ao que os criados acudiram, sem nada verem ou sentirem, entretanto, as orações não resolviam o problema. Deitou-se na sua luxuosa cama, pegou o crucifixo, pondo-o no peito e fechou os olhos repetindo o Pai Nosso. Sua visão, sem querer, buscou Francisco, aquele mesmo rapaz humilde que comprara as suas pedras para consertar a igreja de Assis. Sentiu-se envergonhado, lembrou-se da sua missão diante da Igreja, do juramento que fizera com a mão no Evangelho, colocando mentalmente o Cristo no coração. Mandou os criados saírem do quarto, desceu os joelhos no chão, jogando de lado o grosso tapete que lhe servia de conforto. De mãos postas, qual criança que está aprendendo a orar, falou ansiosamente com Deus:

- "Senhor!.. Desde quando recebi a incumbência de pastorear almas, de orientar consciências e que, igualmente, recebi esta casa para morar, com escravos à minha disposição, vivo ardendo por dentro sem paz, sem alegria, sem acreditar em mim mesmo, e desconfiando de tudo. Reconheço, por dentro, que não estou certo. Ajuda-me a acertar, a descobrir o Teu Caminho e a Tua Verdade, senão a Tua Vida. Lembro-me bem que os Teus discípulos tudo entregaram aos pobres para Te seguir. Como posso ser Teu discípulo, carregando essa cruz dos bens materiais, deste conforto que desfruto, enquanto muitos pobres morrem de fome, são carentes de vestes e não têm onde morar? Será que sou Teu discípulo, configurando-me como rico egoísta que não pensa nos outros? Somente agora sinto que não. Abençoa o meu entendimento e ajuda-me a compreender o que ouvi de um leigo, que teve a coragem de dizer-me o que nunca ouvira de outros, que ouvem as minhas mentiras e que nunca tiveram a coragem de dizer-me a verdade..."


Miramez




Pág. 208 a 210


Nenhum comentário:

Postar um comentário