Humberto de Campos - Livro Luz Acima - Chico Xavier - Cap. 36
Nas hesitações de Pedro
Logo depois de se estabelecerem os apóstolos em Jerusalém, em seguida às revelações do Pentecostes, ia o serviço de assistência social maravilhosamente organizado, não obstante as perseguições que se esboçavam, quando a casa acolhedora, dirigida por Simão Pedro, foi procurada por infeliz mulher. Trazia consigo todos os estigmas das pecadoras. Fora lapidada e exibia manchas sanguinolentas na roupa em frangalhos. Pronunciava palavras torpes. Revelava-se semilouca e doente.
As senhoras do reduto cristão retraíram-se, alarmadas. E o próprio Pedro, que recebera preciosas lições do Senhor, vacilou quanto à atitude que lhe seria adequada.
Como haver-se nas circunstâncias? Destinava-se aquele abrigo ao recolhimento de criaturas desventuradas; entretanto, como classificar a triste posição daquela mulher que, naturalmente, buscara o vaso da angústia nos excessivos gozos da vida? Não estaria a sofredora resgatando os próprios débitos? Se bebera com loucura na taça dos prazeres, não lhe caberia o fel da aflição?
Dispunha-se a rogar-lhe que se afastasse do asilo, quando recordou a necessidade de orar. Se o caso era omisso nas disposições que regiam o instituto fraterno, tornava-se imperioso consultar a inspiração do Messias.
O Mestre lhe ditaria o recurso. Buscar-lhe-ia, por isso, o conselho na prece ardente.
Enquanto a infortunada aguardava resposta, sob o apupo de pequena multidão que lhe contemplava as feridas, o apóstolo buscou a solidão do santuário doméstico e exorou a proteção do Amigo Divino, que fora crucificado.
Em breves instantes, viu Jesus, nimbado de claridade resplandecente, não longe de suas mãos, que se estenderam suplicantes.
— Mestre — rogou Pedro, atacando diretamente o assunto, como quem sabia da brevidade daqueles momentos inesquecíveis —, temos à entrada uma pecadora, reconhecidamente entregue ao mal! Ajuda-me, inspira-me!… que farei?!…
O Salvador entreabriu os lábios sublimes e falou:
— Pedro, eu não vim curar os sãos…
O discípulo entendeu a referência, mas, ponderando a grave responsabilidade de quem administra, acentuou:
— Senhor, estamos agora sem tua orientação direta e visível. Recebê-la-emos neste lar, para quê? A fim de julgá-la?
Com o mesmo olhar sereno, Jesus replicou:
— Nesse mister permanecem na Terra numerosos juízes.
— Para fazer-lhe sentir a extensão dos erros? — indagou Simão, em lágrimas.
— Não, Pedro — tornou o Mestre —, para dar-lhe conhecimento da penúria em que vive, conta nossa irmã, nas vias públicas, milhares de bocas que amaldiçoam e outras tantas mãos que apedrejam.
— Para conferir-lhe a noção do padecimento em que se mergulhou por si mesma?
— Também não. Em tarefa ingrata como essa, vivem aqueles que a exploram, dando-lhe fome e sede, pranto e aflição…
— Para dizer-lhe das penas que a esperam neste e no “outro mundo”?
— Ainda não. Nesse labor terrível respiram os Espíritos acusadores, que não hesitam na condenação em nome do Pai, olvidando as próprias faltas…
O ex-pescador de Cafarnaum, então, chorou, súplice, porque no íntimo desejava conformar-se com os ditames da justiça, exemplificando, simultaneamente, com o amor que o Cristo lhe havia legado. Arquejava, soluçante, ignorando como prosseguir nas indagações, mas Jesus dele se acercou, iluminado e benevolente… Enxugou-lhe as lágrimas que corriam abundantes e esclareceu:
— Pedro, para ferir e amaldiçoar, sentenciar e punir, a cidade e o campo estão cheios de maus servidores. Nosso ministério ultrapassa a própria justiça. O Evangelho, para ser realizado, reclama o concurso de quem ampara e educa, edifica e salva, consola e renuncia, ama e perdoa…
Abre acesso à nossa irmã transviada e auxilia-a no reerguimento. Não a precipites em despenhadeiros mais fundos… Arranca-a da morte e traze-a para a vida… Não te esqueças de que somos portadores da Boa Nova da Salvação!…
Logo após, entrou em silêncio, diluindo-se-lhe a figura irradiante na claridade evanescente da hora vespertina.
O apóstolo levantou-se, deu alguns passos, atravessou extensa fileira de irmãos espantados, abriu, de manso, a porta e dirigiu-se à mulher, acolhedor:
— Entre, a casa é sua!
— Quem sois? — interrogou a infeliz, assombrada.
— Eu? — falou Pedro, com os olhos empapuçados de chorar.
E concluiu:
— Sou seu irmão.
Irmão X
(Humberto de Campos)
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