domingo, 17 de janeiro de 2021

Hammed - Livro Os Prazeres da Alma - Francisco do Espírito Santo Neto - Cap. 2 - Desapego




Hammed - Livro Os Prazeres da Alma - Francisco do Espírito Santo Neto - Cap. 2


Desapego


Não adianta "fecharmos as cortinas da janela da alma" a fim de levarmos uma vida de sonhos - repleta de pensamentos e vazia de experiências -, atenuando ou impedindo os estímulos externos. Isso é um "desapego defensivo", ou resignação neurótica, e não uma virtude genuína. 

Denominamos "desapego defensivo" o mecanismo de fuga da realidade utilizado, de forma inconsciente ou não, por pessoas que possuem um constrangimento auto-imposto proveniente do medo de amar, ou mesmo de se perder na sede de amor por objetos, pessoas ou idéias e de serem absorvidas por enorme necessidade de dependência e de submissão fora do próprio controle. 

Esse "desapego de proteção" tem como base profunda um processo mental ativado tão logo o indivíduo perceba algo ou alguém que tenha grande significado para ele, e que, se o perdesse, seria muito doloroso. Ele adota uma atitude de contenção dos sentimentos e se isola com indiferença e desprezo diante do seu mundo sensível. 

Declara-se desinteressado e frio, mantendo por postura íntima o seguinte pensamento: "eu não me importo", quer dizer, "não abro as portas do meu sentimento". (Aliás, a palavra "importar" vem do latim importare - "trazer para dentro" ou "trazer para si"). Assim, ele não se sentirá frustrado ou ameaçado pelos conflitos, porquanto supõe ter atingido um "real desapego", quando, na verdade, apenas utiliza uma desistência da expressão, do anseio, da vontade, da satisfação e da realização pessoal, ou seja, restringe e mutila a vida ativa. 

Por outro lado, o "desapego saudável" é uma vivência que leva ao crescimento íntimo e uma expansão da consciência, enquanto a experiência defensiva conduz a um bloqueio das sensações, fazendo com que as pessoas vivam numa aparente fuga social, exibindo atos e comportamentos fictícios, envolvidas que estão por uma atmosfera de falsa renúncia e altruísmo. 

É considerada pelos Espíritos Superiores como "duplo egoísmo" a atitude de certos "homens que vivem na reclusão absoluta para fugir do contato do mundo". 

Não podemos nos esconder atrás de valores sagrados para camuflar conflitos de caráter afetivo, sexual, profissional, cultural, religioso - isso é escapismo. Enfim, uma deserção da participação social é, na verdade, um fenômeno retardatário do amadurecimento psicológico. Esse tipo de desapego, que parece ter como motivo um imenso desprendimento por bens materiais ou pessoal, comprova, acima de tudo, ser apenas um desejo de fuga ou um receio proveniente do egoísmo. 

Uma atitude autoimposta por dúvidas e desconfiança, insegurança e temor, além de nos autoagredir, nos afasta do caminho natural e nos desvia do dinamismo evolutivo da Vida Providencial. Não adianta "fecharmos as cortinas da janela da alma" a fim de levarmos uma vida de sonhos - repleta de pensamentos e vazia de experiências -, atenuando ou impedindo os estímulos externos. Isso é um "desapego defensivo", ou resignação neurótica, e não uma virtude genuína. 

As criaturas do mundo estão cheias de fictícios desapegos que, na realidade, reduzem a visão da verdadeira espiritualidade, dificultando as muitas maneiras de despertar as potencialidades da alma. 

Diz-se que um indivíduo "apegado" é indeciso e inerte, porque perdeu a conexão consigo mesmo; não sabe mais o que quer para si, não mais navegava os mares nem desbravava os continentes de seu reino interior - desviou-se de sua rota existencial. 

Disse Jesus: "Em verdade, em verdade, vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto. Quem ama a sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna".(2) O entendimento das palavras do Mestre pode nos libertar do sofrimento a que nos arremessou o apego. O "amar a vida" ou "odiar a vida" a que Cristo se refere é, exatamente, o despertar ou a conscientização de que as coisas vêm e vão na nossa existência, e que é preciso adotar a prática do desapego em relação a elas. 

O apego é a memória da "dor" ou do "prazer" passado, que carregamos para o futuro. Atrás de cada sofrimento existe um apego. "Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto". Eis a excelência da mensagem: tudo em nossa vida terrena é transitório, vai passar; vai mudar e ir além... Os "grãos de trigo" vão tomar uma nova feição - se transformarão num imenso trigal e, mais adiante, se converterão na prodigalidade do alimento generoso. 

Apego é a não-aceitação da impermanência das coisas. Na Terra nada se perpetua, somente a alma é imortal".

A mente apegada a jatos, acontecimentos e pessoas é incapaz de perceber a sua essência. Aquele que está agarrado ao "ego" está vazio do "sagrado"; aquele que se liberta do "ego" descobre que sempre esteve repleto do "sagrado".

"Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?"(1) 

Quando alguém passa silenciosamente por um desfiladeiro, percebe o sussurrar de sons distintos que repercutem através dos ventos nas pedras e árvores — são manifestações dos "ecos da Natureza" daquele lugar. A criatura que interioriza e aquieta a mente, silenciando sua intimidade, faz com que seu reino interior assemelhe-se a um "sereno desfiladeiro", de onde surgem as mensagens inarticuladas da alma - são manifestações dos "ecos transcendentais" do Universo.

Nesse "estado interior", onde impera a quietude e a tranqüilidade, o indivíduo tem um encontro consigo mesmo, com sua mais pura essência - o Espírito. Na presença da inquietação e dos inúmeros anseios, a mente apegada bloqueia a fonte sapiencial e polui a via de acesso pela qual se ausculta a Fonte da Excelsa Sabedoria.

As pessoas do mundo estão distraídas entre os eventos do passado e os do presente, plenas de desejos pessoais que turvam e contagiam sua visão cósmica; isso as impede de expandir e expressar, de forma espontânea e natural, sua religiosidade nata.

Uma vez "perdido" o Espírito, as pessoas, embora vivas, estão como mortas. "De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?"

"Pois aquele que quiser salvar a sua vida (apegar-se ao ego), vai perdê-la (perder de vista o Si-mesmo), mas o que perder a sua vida (desapegar-se do ego) por causa de mim, vai encontrá-la (integrar-se ao Si-mesmo)".

Devemos quebrar todos os grilhões e expulsar as mil vozes que enxameiam nossa casa mental. Assim, ficaremos limpos e desnudos, livres e despojados, libertos de tudo.

Então, haverá naturalmente, nesse "desfiladeiro interno", o reverberar de algo essencial, antes oculto mas agora presente, em que se percebem com clara nitidez seus recursos infinitos e sua capacidade de despertar potenciais inatos.

Recolhemos da antiga sabedoria oriental este trecho que bem ilustra a nossa ideia sobre desapego e serenidade interior: "Quando o vento chega e oscila o bambu, o bambu não guarda o som depois que o vento passou. Quando os gansos atravessam o lago, o lago não conserva seus reflexos depois que eles se foram. Da mesma maneira, a mente das pessoas iluminadas está presente quando ocorrem os acontecimentos e se esvazia quando os acontecimentos terminam".

"(...) a doutrina da reencarnação (...) aumenta os deveres da fraternidade, visto que, entre os vizinhos ou entre os servidores, pode se encontrar um Espírito que esteve ligado a vós pelos laços consanguíneos."(2)

Quando temos algo querido ou pensamos ter a posse de alguém que muito amamos, sofremos ao nos separarmos dele.O ciúme é o resultado do apego (medo de perder). É preciso o perceber a diferença entre o "amor real" e a "relação simbiótica", ou mesmo o "apego familiar". A realização espiritual não está em nos apegarmos egoisticamente aos entes queridos, e sim nos interagirmos fraternalmente uns com os outros.

"Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me."

"Negar-se a si mesmo" é ultrapassar a transitoriedade do mundo visível e penetrar na essência oculta das criações e criaturas. É desapegar-se verdadeiramente e viver na integridade da vida; não querer perpetuar o "ego". "Tomar a sua cruz" é reconhecer que este momento vai se o desvanecer e não se perpetuará. É perceber os difíceis dilemas mentais pelos quais passamos, o que nos permitirá transitar íntegros na via de mão dupla por onde se move, de um lado, a busca imediatista do "ego" e, do outro, a inspiração da infinita Sabedoria Divina.

O desapego nos leva a desenvolver um amplo senso de liberdade e de confiança em nós mesmos. Nosso calabouço reside em nossos mais íntimos atos e atitudes. Prendemo-nos nos grilhões de nossa própria criação mental, e fazemos o mesmo com aqueles que amamos.

A mente apegada a fatos, acontecimentos e pessoas é incapaz de perceber a sua essência. Aquele que está agarrado ao ego' está vazio do "sagrado"; aquele que se liberta do "ego" descobre que sempre esteve repleto do "sagrado". A mente serena, tranquila e desapegada é a "porta estreita".

O indivíduo desapegado participa com a família e com toda a comunidade de um relacionamento saudável e espontâneo. Não vive atado aos vínculos doentios da "ansiedade de separação", pois crê plenamente que a lei das vidas sucessivas não destrói os laços da afetividade, antes os estende a um número cada vez maior de pessoas e também por toda a humanidade.


Hammed




Questão 770. Que pensar dos homens que vivem na reclusão absoluta para fugir ao contato do mundo?
R: "Duplo egoísmo."  

Mas se esse retiro tem por objetivo uma expiação, impondo-se uma privação penosa, não é ele  meritório?  

R: Fazer mais de bem do que se faz de mal, é a melhor expiação. Evitando um mal ele cai em outro, visto que esquece a lei de amor e de caridade." (2  João, 12:24 e 25)

(1) Mateus, 16:24 a 26

(2) Questão 205 Na opinião de certas pessoas, a doutrina da reencarnação parece destruir os laços de família fazendo-os remontar às existências anteriores.

R: "Ela os estende, mas não os destrói. A parentela, estando baseada sobre as afeições anteriores, os laços que unem os membros de uma família são menos precários. Ela aumenta os deveres da fraternidade, visto que, entre os vizinhos ou entre os servidores, pode se encontrar um Espírito que esteve ligado a vós pelos laços consanguíneos. "




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