domingo, 17 de janeiro de 2021

Emmanuel - Livro Paulo e Estêvão - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 2 - Lágrimas e sacrifícios




Emmanuel - Livro Paulo e Estêvão - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 2


Lágrimas e sacrifícios


A prisão que recebera as nossas personagens, em Corinto, era um velho casarão de corredores úmidos e escuros, mas a sala destinada aos três, conquanto desprovida de qualquer conforto, apresentava a vantagem de uma janela gradeada, que comunicava o ambiente desolado com a natureza exterior.

Jochedeb estava cansadíssimo e, servindo-se do manto que apanhara ao acaso, ao retirar-se, Jeziel improvisou-lhe um leito sobre as lajes frias. O velho, atormentado por uma aluvião de pensamentos, descansava o corpo dolorido, entregue a penosas meditações sobre os problemas do destino humano. Sem saber externar suas dores pungentes, engolfara-se em angustioso mutismo, evitando o olhar dos filhos. Jeziel e Abigail aproximaram-se da janela segurando-lhe as grades inflexíveis e abafando, com dificuldade, a justa inquietação. Ambos olharam, instintivamente, o firmamento, cuja imensidade sempre resumiu a fonte das mais ternas esperanças para os que choram e sofrem na Terra.

O jovem abraçou a irmã, com imensa ternura, e disse comovido:

— Abigail, lembras-te da nossa leitura de ontem?

— Sim — respondeu ela com a ingênua serenidade dos seus olhos negros e profundos —, tenho agora a impressão de que os Escritos nos davam uma grande mensagem, pois nosso ponto de estudo foi justamente aquele em que Moisés contemplava, de longe, a terra da Promissão sem poder alcançá-la.

O rapaz sorriu satisfeito por sentir-se identificado nos seus pensamentos e confirmou:

— Vejo que estamos de perfeito acordo. O céu, esta noite, oferece-nos a perspectiva de uma pátria luminosa e distante. Lá — continuava apontando o zimbório estrelado — organiza Deus os triunfos da verdadeira justiça: dá paz aos tristes; conforto aos desalentados da sorte. Certamente, nossa mãe está com Deus, esperando por nós.

Abigail mostrou-se muito impressionada com as palavras do irmão e acentuou:

— Estás triste? Ficaste agastado com o proceder de nosso pai?

— De modo algum — atalhou o moço afagando-lhe os cabelos —, estamos em experiências que devem ter a melhor finalidade para a nossa redenção, porque, de outro modo, Deus não no-las mandaria.

— Não nos aborreçamos com o pai — tornou a jovem —; estive pensando que, se a mamãe estivesse conosco, ele não chegaria a reclamações de tão tristes consequências. Nós não temos aquele poder de persuasão com que ela, carinhosa sempre, iluminava a nossa casa. Lembras-te? Sempre nos ensinou que os filhos de Deus devem estar prontos para a execução das divinas vontades. Os profetas, por sua vez, nos esclarecem que os homens são varas no campo da Criação. O Todo-Poderoso é o lavrador e nós devemos ser os galhos floridos ou frutíferos, na sua obra. A palavra de Deus nos ensina a ser bons e amáveis. O bem deve ser a flor e o fruto, que o Céu nos pede.

Nessa altura, a bela jovem fez uma pausa significativa. Seus grandes olhos estavam velados por um tênue véu de pranto, que não chegava a cair.

— Entretanto, continuou ela, emocionando o irmão carinhoso, sempre desejei fazer algum bem, sem jamais o conseguir. Quando nossa vizinha enviuvou, quis auxiliá-la com dinheiro, mas não o possuía; sempre que me surge uma oportunidade de abrir as mãos, tenho-as pobres e vazias. Então, agora, penso que foi útil a nossa prisão. Não será uma felicidade, neste mundo, podermos sofrer alguma coisa por amor de Deus? Quem nada tem, inda possui o coração para dar. E estou convicta de que o Céu nos abençoará pela nossa resolução em servi-lo com alegria.

O rapaz aconchegou-a ao peito e exclamou:

— Deus te abençoe pelo entendimento das suas leis, irmãzinha!

Longa pausa estabelecera-se entre ambos, enquanto mergulhavam no infinito da noite clara os olhos ternos e ansiosos.

Em dado instante, voltou a jovem a considerar:

— Por que será que os filhos de nossa raça são perseguidos em toda parte, provando injustiça e sofrimentos?

— Suponho — respondeu o moço — que Deus o permite a exemplo do pai amoroso que, para educar os filhos mais jovens e ignorantes, toma por base os filhos mais experientes. Enquanto os outros povos amortecem forças na dominação pela espada, ou nos prazeres condenáveis, nosso testemunho ao Altíssimo, pelas dores e amarguras, multiplica em nosso espírito a capacidade de resistência, ao mesmo tempo que os outros homens aprendem a considerar, com o nosso esforço, as verdades religiosas.

E, fixando o olhar sereno no firmamento, acrescentou:

— Mas eu creio no Messias Redentor, que virá esclarecer todas as coisas. Os profetas nos afirmam que os homens não o compreenderão; entretanto, ele há de vir ensinando o amor, a caridade, a justiça e o perdão. Nascerá entre os humildes, exemplificará entre os pobres, iluminará o povo de Israel, levantará os tristes e oprimidos, tomará, com amor, todos os que padecem no abandono do coração. Quem sabe, Abigail, estará ele no mundo, sem o sabermos? Deus opera em silêncio e não concorre com as vaidades da criatura. Temos fé e a nossa confiança no Céu é uma fonte de força inesgotável. Os filhos da nossa raça muito têm padecido, mas Deus saberá por quê, e não nos enviaria problemas de que não necessitássemos.

A jovem pareceu meditar longamente e obtemperou, depois de alguns instantes:

— E já que falamos em sofrimentos, como deveremos esperar o dia de amanhã? Prevejo grandes contrariedades no interrogatório e, afinal, que farão os juízes de nosso pai e de nós próprios?

— Não deveremos aguardar senão desgostos e decepções, mas não esqueçamos a oportunidade de obedecer a Deus. Quando experimentou a ironia de sua mulher, nas desditas extremas, Job teve a boa lembrança de que, se o Criador nos dá os bens para nossa alegria, pode enviar-nos igualmente os dissabores para nosso proveito. Se o papai for acusado, direi que fui eu o autor do delito.

— E se te flagelarem por isso? — perguntou ela de olhos ansiosos.

— Entregar-me-ei ao flagício com a paz da consciência. Se estiveres junto de mim, nesse instante, cantarás comigo a prece dos que se encontram em aflição

— E se te matarem, Jeziel?

— Pediremos a Deus que nos proteja.

Abigail abraçou mais ternamente o irmão, que, por sua vez, dissimulava a custo a emoção que lhe ia nalma.

A irmã querida constituíra sempre o tesouro afetivo de toda a sua vida. Desde que a morte lhes arrebatara a genitora, dedicara-se à irmã, com todas as veras do coração. Sua vida pura dividia-se entre o trabalho e a obediência ao pai; entre o estudo da lei e a afeição à meiga companheira da infância. Abigail contemplava-o ternamente, enquanto ele a abraçava com o enlevo da amizade pura, que reúne duas almas afins.

Depois de meditar longos minutos, Jeziel falou comovido: — Se eu morrer, Abigail, hás de prometer-me seguir à risca aqueles conselhos da mamãe, para que tivéssemos a vida sem mácula, neste mundo. Lembrar-te-ás de Deus e da nossa vida de trabalho santificador, e nunca ouvirás a voz das tentações que arrastam as criaturas à queda nos abismos do caminho. Recordas-te das últimas observações da mamãe no leito da morte?

— Se recordo — respondeu Abigail com uma lágrima. — Tenho a impressão de ouvir ainda as suas últimas palavras: “e vocês, meus filhos, amarão a Deus acima de tudo, de todo o coração e de todo o entendimento.”

Jeziel sentiu os olhos úmidos, com aquelas recordações, e murmurou:

— Feliz de ti que não esqueceste.

E como quem desejava mudar o rumo da conversa, acrescentou sensibilizado:

— Agora precisas descansar.

Embora ela se recusasse ao repouso, tomou-lhe o manto pobre, improvisou um leito à luz baça do luar que penetrava pelas grades e, osculando-lhe a fronte com indizível ternura, advertiu afetuosamente:

— Descansa, não te impressiones com a situação, nosso destino pertence a Deus.

Abigail, para lhe ser agradável, aquietou-se como pôde, enquanto ele se aproximava da janela para contemplar a beleza da noite polvilhada de luz. Seu coração moço, atufava-se de angustiosas cogitações. Agora que o pai e a irmãzinha repousavam na sombra, dava curso às ideias profundas que lhe empolgavam o espírito generoso. Buscava, ansiosamente, uma resposta às interrogações que mandava às estrelas distantes. Esperava, com sinceridade e confiança, no seu Deus de sabedoria e misericórdia, que os pais lhe haviam dado a conhecer. A seus olhos, o Todo-Poderoso sempre fora infinitamente justo e bom. Ele, que esclarecera o genitor e consolara a irmãzinha, perguntava também, por sua vez, dentro de si, o porquê das suas provas dolorosas. Como se justificava, por causa tão comezinha, a prisão inesperada de um ancião honesto, de um homem trabalhador e de uma criança inocente? Que delito irreparável haviam praticado para merecer expiação tão penosa?

O pranto correu-lhe copioso ao relembrar a humilhação da irmã, mas também não procurou enxugar as lágrimas que lhe inundavam o rosto, de maneira a escondê-las de Abigail, que talvez o observasse na sombra. Rememorava, um a um, todos os ensinamentos dos Escritos Sagrados. As lições dos profetas consolavam-lhe a alma ansiosa. Entretanto, vagava-lhe no coração uma saudade infinita. Lembrava-se do carinho materno que a morte lhe arrebatara. Se presente àquele transe, a mãe saberia como confortá-los. Quando criança, nas suas pequenas contrariedades, ela ensinava que, em tudo, Deus era bom e misericordioso; que, nas enfermidades, corrigia o corpo, e nas angústias da alma esclarecia, iluminava o coração; no desfile das reminiscências, considerava igualmente que ela sempre o incitara à coragem e à alegria, fazendo-lhe sentir que a criatura convicta da paternidade divina anda, no mundo, fortalecida e feliz.

Edificado na fé, cobrou ânimo e, depois de longas reflexões, aquietou-se na laje fria, procurando o repouso possível no silêncio augusto da noite.

O dia amanheceu prenhe de lúgubres expectativas.

Dentro de poucas horas, Licínio Minúcio, rodeado de numerosos guardas e satélites, recebeu os prisioneiros na sala destinada aos criminosos comuns, onde se ostentavam alguns instrumentos de punição e suplício.

Jochedeb e os filhos traíam na palidez do semblante a emoção profunda que os dominava.

Os costumes da época eram excessivamente desumanos para que o juiz implacável e a maioria dos circunstantes se inclinassem à comiseração pelo aspecto desditoso deles.

Alguns esbirros perfilavam-se junto dos potros de castigo, de onde pendiam açoites e algemas impiedosos.

Não houve interrogatório, nem depoimento de testemunhas, como seria de esperar antes de providências tão odiosas, e, chamado rudemente pela voz metálica do legado, o velho judeu aproximou-se vacilante e trêmulo:

— Jochedeb — exclamou o algoz impassível e sanhudo —, os que desacatam as leis do Império devem ser punidos de morte, mas eu procurei ser magnânimo, em consideração à tua velhice desamparada.

Um olhar de angustiada expectação transfigurou o rosto do acusado, enquanto o patrício esboçava um sorriso irônico

— Alguns operários lá da herdade — continuou Licínio — viram-te as mãos perversas na tarde de ontem quando incendiaste as pastagens. Esse ato redundou em sérios prejuízos para os meus interesses, além de ocasionar males talvez irreparáveis à saúde de dois servos mui prestimosos. Como nada tens de teu para compensar o dano causado, receberás o justo corretivo em flagelações, para que nunca mais venhas a erguer tuas garras de abutre contra os interesses romanos.

Sob o olhar angustiado e lacrimoso dos filhos, o velho israelita ajoelhou-se e murmurou:

— Senhor, por piedade!

— Piedade? — berrou Minúcio com rispidez. — Cometes um crime e imploras favores?! Bem se diz que tua raça se compõe de vermes asquerosos e desprezíveis.

E, designando o tronco, disse friamente a um dos sequazes:

— Pescênio, avia-te! Vergasta-o vinte vezes.

Ante a muda aflição dos jovens, o respeitável ancião foi solidamente algemado.

O castigo ia começar quando Jeziel, rompendo a expectativa geral, aproximou-se da mesa e falou com humildade:

— Questor Ilustríssimo, perdoai minha covardia de haver calado até agora; asseguro-vos, porém, que meu pai está sendo acusado injustamente. Fui eu quem incendiou os terrenos de vossa propriedade, perturbado pela sentença de confisco exarada contra nós. Dignai-vos, pois, libertá-lo e dar-me a mim a merecida punição. Aceitá-la-ei de bom grado.

O patrício teve um lampejo de surpresa nos olhos frios, que se caracterizavam por mobilidade extrema, e acentuou:

— Mas, não auxiliaste os meus homens a salvar uma parte das termas? Não foste o primeiro a medicar Rufílio?

— Assim fiz levado pelo remorso, Ilustríssimo — retrucou o rapaz, ansioso por isentar o pai do suplício iminente —; quando vi a extensão do fogo comunicando-se às árvores, temi as consequências do ato praticado, mas, agora, confesso ter sido o seu autor.

Nesse ínterim, receoso pela sorte do filho, Jochedeb exclamou, intimamente atormentado:

— Jeziel, não te inculpes por uma falta que não cometeste!…

Mas, pontilhando as palavras com extrema ironia, o legado replicou, dirigindo-se ao moço hebreu:

— Está bem: poupei-te até agora, baseado nas falsas informações que me deram a teu respeito; contudo, terás também o teu quinhão de disciplina indispensável. Teu pai pagará pelo crime em que foi visto, de maneira inegável; e tu pagarás pelo que confessaste espontaneamente.

Colhido de surpresa pela decisão que não esperava, Jeziel foi conduzido ao poste de tortura, em frente da angústia paterna. A seu lado, postou-se o companheiro de Pescênio, que o atou sem piedade aos elos de bronze, e as primeiras vergastadas começaram a lamber-lhe o dorso, impiedosas, isócronas.

Uma… duas… três…

Jochedeb revelava profunda debilidade, vendo-se-lhe o peito a arfar penosamente, ao passo que o filho demonstrava tolerar o suplício com heroísmo e nobre serenidade; ambos de olhos fixos em Abigail, que os contemplava excessivamente pálida, entremostrando nas lágrimas ardentes que derramava o cruciante martírio do seu espírito afetuoso.

A punição terrível ia quase a meio, quando um mensageiro entrou no recinto e, em voz alta, anunciou ao legado, em tom solene:

— Ilustríssimo, portadores de vossa casa participam que o servo Rufílio acaba de falecer.

O cruel patrício franziu o sobrolho como costumava fazer nos momentos de explosão colérica. Sentimentos rancorosos lhe afloraram à face, que a perversidade de, egoísmo exacerbado vincara de traços indeléveis.

— Era o melhor dos meus homens — bradou. — Estes judeus malditos pagarão muito caro esta afronta.

— Filócrio, aplica-lhe mais vinte vergastadas e, em seguida, leva-o à prisão, de onde deverá seguir para o cativeiro nas galeras.

Entre as pobres vítimas e a jovem aflita trocou-se um olhar de significação intraduzível. Aquele cativeiro era a ruína e a morte. E ainda não se haviam recobrado da cruel surpresa, quando o juiz inexorável prosseguiu:

— Quanto a ti, Pescênio, renova a tarefa. Esse velho, criminoso e sem escrúpulos, pagará a morte do meu fiel servidor. Golpeia-lhe as mãos e os pés até que fique impossibilitado de caminhar e praticar o mal.

Ante a sentença iníqua, Abigail caiu de joelhos, em preces ardentes. Do peito do irmão escapavam fundos suspiros, nevoando-se-lhe os olhos de lágrimas dolorosas, ao conjeturar a inexorável desdita da irmãzinha, enquanto o pai lhes buscava ansiosamente o olhar, receoso da hora extrema.

As vergastadas continuavam sem trégua, mas, de uma feita, Pescênio não conseguira equilibrar-se e a aguçada ponta de bronze do açoite lanhou fundo a garganta do pobre israelita, jorrando o sangue em borbotões. Os filhos compreenderam a gravidade da situação e entreolharam-se ansiosos. Em preces de sublimado fervor, Abigail dirigia-se a Deus, àquele Deus terno e amoroso que sua mãe lhe ensinara a adorar. Filócrio concluíra a sua empreitada. A fronte de Jeziel erguia-se a custo, exibindo pastoso suor tisnado de sangue. Os olhos fixavam-se na irmã muito amada, mas, em todo o seu aspecto, deixava transparecer profunda fraqueza, que lhe anulava as últimas resistências. Incapaz de definir os próprios pensamentos, Abigail repartia sua atenção angustiada com o pai e o irmão; todavia, em breves instantes, ao fluxo incessante do sangue que corria abundante, Jochedeb deixou pender, para sempre, a cabeça alvejada de cabelos brancos. O sangue alagara as vestes e empastava-se-lhe nos pés. Sob o olhar cruel do legado, ninguém ousou articular palavra. Apenas o açoite, cortando o ambiente morno da sala, quebrava o silêncio num silvo singular. Mas, notaram que do peito da vítima ainda se escapavam palavras confusas, das quais sobressaíam as carinhosas expressões:

— Meus filhos, meus queridos filhos!…

A jovem talvez não pudesse compreender que chegara o momento decisivo, mas Jeziel, não obstante o terrível sofrimento daquela hora, tudo compreendeu e, num esforço profundo, gritou para a irmã:

— Abigail, papai está expirando; tem coragem, confia… Não posso acompanhar-te na oração… mas, faze por todos nós… a prece dos aflitos…

Dando mostras de fé invejável em tão amarguradas circunstâncias, a jovem, de joelhos, fixou longamente o velho pai cujo peito já não arfava; depois, erguendo os olhos ao Alto, começou a cantar com voz trêmula, porém harmoniosa e cristalina:

“Senhor Deus, pai dos que choram,
Dos tristes, dos oprimidos,
Fortaleza dos vencidos,
Consolo de toda a dor,
Embora a miséria amarga
Dos prantos de nosso erro,
Deste mundo de desterro
Clamamos por vosso amor!

Nas aflições do caminho,
Na noite mais tormentosa,
Vossa fonte generosa
É o bem que não secará.
Sois, em tudo, a luz eterna
Da alegria e da bonança,
Nossa porta de esperança
Que nunca se fechará.” 

Suas expressões vocais enchiam o ambiente de sonoridade indefinível. O canto semelhava-se mais a um gorjeio de dor de um rouxinol que cantasse, ferido, numa alvorada de primavera. Tão grande, tão sincera se lhe revelava a fé no Todo-Poderoso, que sua atitude geral era a de uma filha carinhosa e obediente, comunicando-se com o pai silencioso e invisível. O pranto perturbava-lhe a voz trêmula, mas repetia com desassombro a prece aprendida no lar, com a mais formosa expressão de confiança no Altíssimo.

Penosa emoção apossara-se de todos. Que fazer com uma criança cantando o suplício dos seus entes amados e a crueldade dos seus verdugos? Soldados e guardas presentes mal dissimulavam a emoção. O próprio questor parecia imobilizado, como que submetido a enfadonho mal-estar. Abigail, estranha à perversidade das criaturas, suplicando o amparo do Onipotente, não sabia que o cântico era inútil à salvação dos seus, mas que despertaria a comiseração pela sua inocência, ganhando-lhe, assim, a liberdade.

Recobrando alento e percebendo que a cena ferira a sensibilidade geral, Licínio esforçou-se por não perder a dureza de espírito e recomendou a um dos velhos servidores, em tom imperioso:

— Justino, leva esta mulher para a rua e solta-a, mas que não cante mais, nem mesmo uma nota!

Diante da ordem retumbante, Abigail não terminou a oração, emudecendo instantaneamente, como se obedecesse a estranho estacato.

Lançou ao cadáver ensanguentado do pai um olhar inesquecível e, logo contemplando o irmão ferido e algemado, com quem trocava as mais íntimas impressões na linguagem dos olhos doridos e ansiosos, sentiu-se tocada pela mão calosa de um velho soldado que lhe dizia em voz quase áspera:

— Acompanha-me!

Ela estremeceu; todavia, endereçando a Jeziel o derradeiro e significativo olhar, seguiu o preposto de Minúcio, sem resistência. Após atravessar inúmeros corredores úmidos e sombrios, Justino, modificando sensivelmente a voz, deu-lhe a perceber extrema simpatia por sua figura quase infantil, murmurando-lhe ao ouvido, comovidamente:

— Minha filha, também sou pai e compreendo o teu martírio. Se queres atender a um amigo, escuta o meu conselho. Foge de Corinto a toda pressa. Vale-te deste instante de sensibilidade dos teus verdugos e não voltes aqui.

Abigail cobrou algum ânimo e, sentindo-se encorajada por aquela simpatia imprevista, perguntou extremamente perturbada.

— E meu pai?

— Teu pai descansou para sempre — murmurou o generoso soldado.

O pranto da jovem se fez mais copioso, borbulhando-lhe dos olhos tristes. Todavia, ansiosa por defender-se contra a perspectiva de solidão, perguntou ainda:

— Mas… e meu irmão?

— Ninguém volta do cativeiro das galeras — respondeu Justino com olhar significativo.

Abigail levou as mãos pequeninas ao peito, desejando afogar a própria dor. Os gonzos de velha porta rangeram vagarosamente e o seu inesperado protetor exclamou, apontando a rua movimentada:

— Vai em paz e que os deuses te protejam.

A pobre criatura não tardou a sentir o insulamento entre as fileiras de transeuntes que cruzavam, apressados, a via pública. Habituada aos carinhos domésticos, no lar onde o idioma paterno substituía a linguagem das ruas, sentiu-se estranha no meio de tantas criaturas inquietas, assoberbadas de interesses e preocupações materiais. Ninguém lhe notava as lágrimas, nenhuma voz amiga procurava inteirar-se das suas íntimas angústias.

Estava só! Sua mãe fora chamada por Deus, anos antes; seu pai acabava de sucumbir covardemente assassinado; o irmão, prisioneiro e cativo, sem esperança de remissão. Apesar do sol do meio-dia, tinha a sensação de intenso frio. Deveria regressar ao ninho doméstico? Mas, com que fim, se haviam sido expulsos? A quem confiar sua enorme desdita? Lembrou-se de uma velha amiga da família. Procurou-a. A viúva Sostênia, muito afeiçoada à sua mãe, recebeu-a com o sorriso generoso da sua velhice bondosa.

Desfeita em pranto, a infortunada contou-lhe todo o sucedido.

A veneranda velhinha, acariciando-lhe a cabeleira anelada, falou comovida:

— Nas perseguições passadas, nossos sofrimentos foram os mesmos.

E dando a entender que não desejava reviver antigas e dolorosas reminiscências, Sostênia acentuou:

— É indispensável o máximo de coragem nas situações penosas como esta. Não é fácil elevar o coração em meio de tão terríveis escombros; mas é preciso confiar em Deus nas horas mais amargas. Que contas fazer, agora que todos os recursos desapareceram? Por minha vez, nada te posso oferecer, senão o coração amigo, pois também aqui estou por esmola da pobre família que me agasalhou caridosamente, na última tempestade da minha vida.

— Sostênia — disse Abigail suspirando —, meus pais me prepararam para uma existência de corajoso esforço próprio. Estou pensando em recorrer ao legado e suplicar-lhe um cantinho da nossa chácara para ali viver uma vida honesta, na esperança de reaver Jeziel e sua fraterna companhia. Que pensas a respeito?

Notando a indecisão da veneranda amiga, continuou:

— Quem sabe o questor Licínio se condoerá da minha sorte? Minha resolução talvez o enterneça; voltarei para casa e levar-te-ei comigo. Ser-me-ias uma segunda mãe para o resto da vida.

Sostênia conchegou-a de encontro ao coração e acentuou de olhos úmidos:

— Minha querida, tu és um anjo, mas o mundo ainda é propriedade dos maus. Viveria contigo eternamente, minha boa Abigail; entretanto, não conheces o legado nem a sua camarilha. Ouve, filha! É preciso que fujas de Corinto, de modo a não incidires em mais duras humilhações.

A moça teve uma exclamação de abatimento e, depois de longa pausa, acrescentou:

— Aceitarei teus conselhos, mas, antes de qualquer providência, necessito voltar a casa.

— Para quê? — interrogou a amiga admirada. — É imprescindível que partas quanto antes. Não voltes ao lar. A esta hora, é possível já esteja ocupado por homens sem escrúpulos, que te não respeitariam. Convém-te uma atitude de sincera fortaleza moral, pois vivemos uma época em que necessitamos fugir da perdição, como Lot e seus familiares, correndo o risco de sermos transformados em estátua inútil, se olharmos para trás.

A irmã de Jeziel bebia-lhe as palavras com dolorosa estranheza, em face do imprevisto da situação.

Passado um momento, Sostênia levou a mão à fronte, como a recordar uma providência oportuna e falou com animação:

— Lembras-te de Zacarias, filho de Hanan?

— Aquele amigo da estrada de Cencreia?  

— Ele mesmo. Fui informada de que, em companhia da esposa, prepara-se para deixar definitivamente a Acaia  por haver sido assassinado pelos romanos irresponsáveis, nestes últimos dias, o seu único filho.

Confortada por ardente esperança, concluía com ansiedade:

— Corre à casa de Zacarias! Se ainda o encontrares, fala-lhe em meu nome. Pede-lhe acolhimento. Ruth é um coração generoso e não deixará de estender-te as mãos generosas e fraternais; sei que ela te receberá com afagos maternos!…

Abigail tudo ouvia, parecendo indiferente à própria sorte. Mas Sostênia fê-la considerar a necessidade do recurso e, decorridos minutos de consolações recíprocas, a jovem, sob o calor causticante das primeiras horas da tarde, pôs-se a caminho para Cencreia, dando a impressão de um autômato que vagasse na estrada, a que vários veículos e inúmeros pedestres imprimiam considerável movimento. O porto de Cencreia ficava a certa distância do centro de Corinto. Situado de maneira a servir às comunicações com o Oriente, seus bairros populosos estavam cheios de famílias israelitas, fixadas de longa data nas regiões da Acaia, ou em trânsito para a capital do Império e adjacências. A irmã de Jeziel chegou à casa de Zacarias dominada por terrível abatimento. Aliado à vigília da última noite e às angústias do dia, penoso cansaço físico lhe agravava os desalentos. Pernas trôpegas, a relembrar o pai morto e o irmão prisioneiro, não reparava em si própria, no mísero estado do seu organismo enfermo e desnutrido. Somente ao defrontar a modesta morada do amigo, verificou que a febre começava a devorar-lhe as entranhas, obrigando-a a refletir nas suas dolorosas necessidades.

Zacarias e Ruth, sua mulher, atendendo ao chamado, receberam-na espantados e aflitos.

— Abigail!…

O grito de ambos revelava grande surpresa, com o aspecto da jovem despenteada, face esfogueada, olhos fundos e vestes em desalinho.

A filha de Jochedeb, perturbada pela fraqueza e pela febre, rojou-se aos pés do casal, exclamando em tom lancinante:

— Meus amigos, tende piedade do meu infortúnio!… Nossa boa Sostênia lembrou-me vosso afeto, no transe doloroso por que passo. Eu, que já não tinha mãe, tive hoje meu pai assassinado e Jeziel escravizado sem remissão. Se é verdade que partireis de Corinto, levai-me, por compaixão, em vossa companhia!

Abigail abraçava-se agora a Ruth, ansiosamente, enquanto a amiga a acarinhava entre lágrimas.

Soluçante, a jovem relatou os fatos da véspera e os tristes episódios daquele dia.

Zacarias, cujo coração paterno acabava de sofrer tremendo golpe, abraçou-a com afeto e amparou-a sensibilizado, exclamando solícito:

— Dentro de uma semana voltaremos à Palestina. Ainda não sei bem onde nos vamos fixar, mas nós, que perdemos o filho querido, teremos em ti uma filha estremecida. Acalma-te! Irás conosco, serás nossa filha para sempre.

Incapaz de traduzir seu jubiloso agradecimento, atormentada pela febre alta, a jovem ajoelhou-se, em pranto, procurando externar sua gratidão carinhosa e sincera. Ruth tomou-a ternamente nos braços e, qual desvelado anjo maternal, conduziu-a a um leito macio, onde Abigail, assistida pelos dois amigos generosos, delirou três dias entre a vida e a morte.


Emmanuel







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