segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Allan Kardec - Livro O Céu e o Inferno - 2ª Parte - Exemplos - Cap. 2 - Espíritos felizes - Sra. Viúva Foulon




Allan Kardec - Livro O Céu e o Inferno - 2ª Parte - Exemplos - Cap. 2 - Espíritos felizes


Sra. Viúva Foulon 


A Sra. Foulon, morta em Antibes, em 3 de fevereiro de 1865, morara no Havre muito tempo, onde adquirira reputação como miniaturista muito hábil. Seu talento notável foi para ela no início apenas uma distração de amador; mas mais tarde, quando vieram dias maus, ela soube fazer disso um precioso recurso. O que a fazia acima de tudo ser amada e estimada, o que torna sua memória cara a todos aqueles que a conheceram, é a amenidade de seu caráter; são suas qualidades privadas cuja amplitude só podem apreciar aqueles que conhecem sua vida íntima; pois, como todos aqueles em quem o sentimento do bem é inato, ela não o ostentava, nem mesmo suspeitava. Se há alguém sobre quem o egoísmo não tinha nenhuma influência, era ela, sem dúvida; talvez jamais o sentimento de abnegação pessoal nunca tenha sido levado mais longe; sempre pronta a sacrificar seu repouso, sua saúde, seus interesses por aqueles a quem podia ser útil, sua vida foi uma longa sequência de abnegações, assim como foi, desde a juventude, uma longa sequência de rudes e cruéis provas diante das quais sua coragem, resignação e perseverança jamais falharam. Mas, infelizmente! sua vista, cansada por um trabalho minucioso, se extinguia dia a dia; ainda algum tempo e a cegueira, já muito avançada, teria sido completa.

Quando a Sra. Foulon teve conhecimento da doutrina espírita, foi para ela como um traço de luz; pareceu-lhe que se erguia um véu sobre algo que não lhe era desconhecido, mas de que tinha apenas uma vaga intuição; assim, ela a estudou com ardor, e ao mesmo tempo com essa lucidez de espírito, esse acerto de apreciação que era próprio de sua grande inteligência. É preciso conhecer todas as perplexidades de sua vida, perplexidades que tinham sempre por motivo, não ela mesma, mas os seres que lhe eram caros, para compreender todas as consolações que ela extraiu dessa sublime revelação que lhe dava uma fé inabalável no futuro, e lhe mostrava o nada das coisas terrestres.

Sua morte foi digna de sua vida. Ela viu-a aproximar-se sem nenhuma apreensão penosa: era para ela a libertação dos laços terrestres, que devia abrir-lhe essa vida espiritual bem-aventurada com a qual se identificara pelo estudo do Espiritismo. Morreu com calma, porque tinha a consciência de ter cumprido a missão que aceitara vindo para a terra, de ter escrupulosamente preenchido seus deveres de esposa e de mãe de família, porque também, durante a vida, abjurara de todo ressentimento contra aqueles dos quais devia queixar-se, e que lhe haviam pago com ingratidão; tinha-lhes sempre retribuído o bem pelo mal, e deixou a vida perdoando-lhes, entregando-se a si mesma à bondade e à justiça de Deus. Morreu enfim com a serenidade que uma consciência pura proporciona, e a certeza de estar menos separada de seus filhos do que durante a vida corpórea, visto que poderá doravante estar com eles em Espírito, em qualquer lugar do globo em que eles estejam, ajudá-los com seus conselhos, e cobri-los com sua proteção.

Logo que soubemos da morte da Sra. Foulon, nosso primeiro desejo foi conversar com ela. As relações de amizade e de simpatia que a doutrina espírita fizera nascer entre ela e nós explicam algumas de suas palavras e a familiaridade de sua linguagem.


I. (Paris, 6 de fevereiro de 1865, três dias após sua morte.)


Tinha certeza de que teríeis o pensamento de me evocar logo depois de minha libertação, e estava pronta para vos responder, pois não experimentei perturbação; somente aqueles que têm medo ficam envoltos por suas espessas trevas.

Pois bem! meu amigo, sou feliz agora; aqueles pobres olhos que tinham enfraquecido, e que não me deixavam senão a recordação dos prismas que coloriram minha juventude com seu cambiante esplendor, abriram-se aqui e reencontraram os esplêndidos horizontes que idealizam, em suas vagas reproduções, alguns de vossos grandes artistas, mas cuja realidade majestosa, severa porém cheia de encantos, está impregnada da mais completa realidade.

Há apenas três dias que morri, e sinto que sou artista; minhas aspirações ao ideal da beleza na arte não eram senão a intuição de faculdades que eu estudara e adquirira em outras existências e que se desenvolveram na última. Mas tenho muito que fazer para reproduzir uma obra-prima digna da grande cena que impressiona o espírito ao chegar à região da luz! Pincéis! Pincéis! E provarei ao mundo que a arte espírita é o coroamento da arte pagã, da arte cristã que periclita, e que unicamente ao Espiritismo está reservada a glória de fazê-la reviver em todo o seu esplendor no vosso mundo deserdado.

Basta para a artista; é a vez da amiga.

Por que, boa amiga (senhora Allan Kardec), ficar assim afetada pela minha morte? Sobretudo vós que conheceis as decepções e as amarguras da minha vida, deveríeis alegrar-vos, ao contrário, por ver que agora não tenho mais que beber do cálice amargo das dores terrestres que esvaziei até o fim. Acreditai-me, os mortos são mais felizes do que os vivos, e chorá-los é duvidar da verdade do Espiritismo. Rever-me-eis, tende certeza; parti primeiro porque minha tarefa acabara aqui embaixo; cada um tem a sua a cumprir na terra, e quando a vossa tiver acabado, vireis repousar um pouco perto de mim, para recomeçar em seguida, se for preciso, visto que não é da natureza permanecer inativo. Cada um tem suas tendências e obedece a elas; é uma lei suprema que prova o poder do livre-arbítrio; igualmente, boa amiga, todos nós precisamos reciprocamente de indulgência e caridade, quer no mundo visível, quer no mundo invisível; com esta máxima, tudo fica bem.

Vós não me diríeis para parar. Sabeis que converso longamente pela primeira vez! Então deixo-vos; é a vez de meu excelente amigo, Sr. Kardec. Quero agradecer-lhe pelas afetuosas palavras que dirigiu à amiga que o precedeu no túmulo; pois por pouco não partimos juntos para o mundo em que me encontro, meu bom amigo! (Alusão à doença de que fala o doutor Demeure.) O que teria ela dito, a companheira bem-amada de vossos dias, se os bons Espíritos não tivessem posto isso em boa ordem? Seria então que ela teria chorado e gemido, e eu compreendo; mas também é preciso que ela tome cuidado para que vós não vos exponhais de novo ao perigo antes de terdes acabado vosso trabalho de iniciação espírita, sem isso correis o risco de chegar demasiado cedo até nós e não ver, como Moisés, a Terra prometida a não ser de longe. Ficai portanto alerta, é uma amiga que vos previne.

Agora, vou-me embora; retorno para junto de meus queridos filhos; depois vou ver, além dos mares, se minha ovelha viajante chegou enfim ao porto, ou se ela é joguete da tempestade. (Uma de suas filhas que morava na América.) Que os bons Espíritos a protejam; vou reunir-me a eles para isso. Voltarei a conversar convosco, pois sou uma conversadeira incansável; vós vos recordais. Então adeus, bons e caros amigos; até breve.


II. (8 de fevereiro de 1865.)


P. Cara senhora Foulon, estou muito feliz com a comunicação que me fizestes no outro dia e com a vossa promessa de continuar nossas conversas.

Reconheci-vos perfeitamente na comunicação; falais ali de coisas ignoradas pelo médium e que não podem vir senão de vós; depois vossa linguagem afetuosa a nosso respeito, é bem a da vossa alma carinhosa; mas há em vossas palavras uma segurança, um equilíbrio, uma firmeza que não vos conhecia durante a vida. Sabeis que a esse respeito eu me permiti mais de uma admoestação em certas circunstâncias.

R. É verdade; mas assim que me vi gravemente doente, recuperei minha firmeza de espírito, perdida pelos desgostos e as vicissitudes que por vezes me haviam tornado receosa durante a vida. Disse a mim mesma: És espírita; esquece a terra; prepara-te para a transformação de teu ser, e vê, pelo pensamento, o caminho luminoso que tua alma deve seguir ao deixar teu corpo, e que a conduzirá, feliz e liberta, às esferas celestes onde deves viver doravante.

Dir-me-eis que era um pouco presunçoso de minha parte contar com a bem-aventurança perfeita ao deixar a terra, mas eu sofrera tanto que devia ter expiado as minhas faltas desta existência e das existências precedentes. Essa intuição não me enganara, e foi ela que me devolveu a coragem, a calma e a firmeza dos últimos instantes: essa firmeza aumentou naturalmente quando, após a libertação, vi minhas esperanças realizadas.

P. Tende a bondade de nos descrever agora vossa passagem, vosso despertar e vossas primeiras impressões.

R. Sofri, mas meu Espírito foi mais forte do que o sofrimento material que o desprendimento lhe fazia sentir. Encontrei-me, depois do supremo suspiro, como em síncope, não tendo nenhuma consciência de meu estado, não pensando em nada, e numa vaga sonolência que não era nem o sono do corpo, nem o despertar da alma. Fiquei assim muito tempo; depois, como se saísse de um longo desmaio, despertei pouco a pouco no meio de irmãos que não conhecia; eles me prodigalizavam seus cuidados e suas carícias, mostrando-me um ponto no espaço que se parecia com uma estrela brilhante, e disseram-me: “É para lá que virás conosco; não pertences mais à terra.” Então recordei-me; apoiei-me neles, e, como um grupo gracioso que se lança rumo às esferas desconhecidas, mas com a certeza de lá encontrar a bem-aventurança, subimos, subimos, e a estrela aumentava. Era um mundo feliz, um mundo superior, onde vossa boa amiga vai enfim encontrar o repouso; quero dizer o repouso considerando as fadigas corporais que aguentei e as vicissitudes da vida terrestre, mas não a indolência do Espírito, pois a atividade do Espírito é um regozijo.

P. Deixastes definitivamente a terra?

R. Deixo aí ainda muitos seres que me são caros para deixá-la definitivamente. Portanto, voltarei aí em Espírito, pois tenho uma missão a cumprir para com os meus netos. Sabeis bem, aliás, que nenhum obstáculo se opõe a que os Espíritos que estacionam nos mundos superiores à terra venham visitá-la.

P. A posição em que estais parece dever enfraquecer vossas relações com aqueles que deixastes aqui embaixo?

R. Não, meu amigo, o amor aproxima as almas. Acreditai-me, pode-se estar, na terra, mais perto daqueles que atingiram a perfeição do que daqueles que a inferioridade e o egoísmo fazem redemoinhar em torno da esfera terrestre. A caridade e o amor são dois motores de uma atração poderosa. É o laço que cimenta a união das almas ligadas uma à outra e a continua apesar da distância e dos lugares. Só há distância para os corpos materiais; ela não existe para os Espíritos.

P. Que ideia fazeis agora de meus trabalhos referentes ao Espiritismo?

R. Acho que estais encarregado de almas e que o fardo é penoso de carregar; mas vejo o objetivo e sei que o alcançareis; ajudar-vos-ei, se possível, com meus conselhos de Espírito para que possais superar as dificuldades que vos serão suscitadas, comprometendo-vos apropriadamente a tomar certas medidas capazes de ativar, durante vossa vida, o movimento renovador ao qual impele o Espiritismo. Vosso amigo Demeure, unido ao Espírito de verdade, ser-vos-á de contribuição ainda mais útil; ele é mais instruído e mais sério do que eu; mas, como sei que a assistência dos bons Espíritos vos fortalece e vos sustenta em vosso labor, acreditai que a minha vos estará assegurada em toda parte e sempre.

P. Poder-se-ia induzir de algumas de vossas palavras que não dareis uma cooperação pessoal muito ativa à obra do Espiritismo.

R. Estais enganado; mas vejo tantos outros Espíritos mais capazes do que eu de tratar essa questão importante, que um sentimento invencível de timidez me impede, no momento, de vos responder de acordo com vossos desejos. Talvez isso aconteça; terei mais coragem e ousadia; mas é preciso antes que eu os conheça melhor. Morri só há quatro dias; ainda estou sob o encanto do deslumbramento que me rodeia; meu amigo, não o compreendeis? Não consigo exprimir as novas sensações que experimento. Precisei fazer árduos esforços para evitar a fascinação que exercem sobre o meu ser as maravilhas que ele admira. Não posso senão abençoar e adorar Deus em suas obras. Mas isso passará; os Espíritos me asseguram que em breve estarei acostumada a todas estas magnificências e que poderei então, com minha lucidez de Espírito, tratar de todas as questões relativas à renovação terrestre. Depois, com tudo isso, pensai que neste momento tenho acima de tudo uma família para consolar.

Adeus e até breve; vossa boa amiga que vos ama e amará sempre, meu mestre, pois foi a vós que ela deveu a única consolação duradoura e verdadeira que provou na terra.

Viúva FOULON.


III. A comunicação seguinte foi dada para seus filhos, em 9 de fevereiro:


Meus filhos, meus bem-amados, Deus me retirou do meio de vós, mas a recompensa que ele se digna conceder-me é bem grande em comparação ao pouco que fiz na terra. Resignai-vos, meus bons filhos, às vontades do Altíssimo; tirai de tudo o que ele permitiu que recebêsseis, a força de suportar as provas da vida. Tende sempre firme em vosso coração essa crença que tanto facilitou minha passagem da vida terrestre à vida que nos espera ao sair desse vale de lágrimas. Deus estendeu sobre mim, após minha morte, sua inesgotável bondade, como se dignou fazer enquanto eu estava na terra. Agradecei-lhe todos os benefícios que ele vos concede; bendizei-o, meus filhos, bendizei-o sempre, em todos os instantes. Não percais nunca de vista o objetivo que vos foi indicado, nem o caminho que tendes de seguir; pensai no emprego que tendes de fazer do tempo que Deus vos concede na terra. Sereis felizes aí, meus bem-amados, felizes uns pelos outros, se a união reinar entre vós; felizes por vossos filhos, se os criardes no bom caminho, naquele que Deus permitiu que vos fosse revelado.

Oh! Se não podeis ver-me, sabei que o laço que nos unia na terra não se rompeu com a morte do corpo, pois não era o envoltório que nos ligava, mas o Espírito; é por aí, meus bem-amados, que poderei, pela bondade do Onipotente, guiar-vos ainda e encorajar-vos em vossa marcha para nos reunirmos mais tarde.

Vamos, meus filhos, cultivai com o mesmo amor esta sublime crença; belos dias vos estão reservados, a vós que credes. Disseram-vos, mas eu não devia vê-los na terra; é de cima que julgarei os tempos felizes prometidos pelo Deus bom, justo e misericordioso.

Não choreis, meus filhos; que estas conversas fortaleçam vossa fé, vosso amor em Deus, que tantos dons espalhou sobre vós, que tantas vezes enviou auxílio à vossa mãe. Rezai-lhe sempre: a oração fortalece. Conformai a vida que Deus vos concede às instruções que eu seguia tão ardentemente.

Voltarei a vós, meus filhos, mas é preciso que eu apoie minha pobre filha que tanto precisa de mim ainda. Adeus, até breve. Crede na bondade do Onipotente; rezo por vós. Adeus.

Vva. FOULON.


Observação. – Todo espírita sério e esclarecido tirará facilmente destas comunicações os ensinamentos que delas se destacam; chamaremos a atenção apenas para dois pontos. O primeiro é que este exemplo nos mostra a possibilidade de não mais encarnar na Terra e passar daqui para um mundo superior, sem ficar por isso separado dos afetos aqui deixados. Aqueles pois que temem a reencarnação por causa das misérias da vida, podem se livrar dela fazendo o que é preciso, ou seja, trabalhando para seu aperfeiçoamento. Assim, aquele que não quer vegetar nas classes inferiores deve se instruir e trabalhar para subir de grau. 

O segundo ponto é a confirmação dessa verdade de que após a morte estamos menos separados dos seres que nos são caros do que durante a vida. A Sra. Foulon, retida pela idade e a enfermidade numa cidadezinha do Sul, tinha junto dela apenas uma parte de sua família; estando dispersa e longe a maioria de seus filhos e amigos, obstáculos materiais se opunham a que ela pudesse vê-los tantas vezes quanto uns e outros desejariam. O grande afastamento tornava até mesmo a correspondência rara e difícil para alguns. Mal ela se desembaraçou de seu envoltório que, leve, acorre a cada um, transpõe as distâncias sem fadiga, com a rapidez da eletricidade, vê-os, assiste às suas reuniões íntimas, cerca-os com sua proteção e pode, pela via da mediunidade, conversar com eles a todo instante, como quando vivia. E dizer que a este pensamento consolador há pessoas que preferem a ideia de uma separação indefinida!


Allan Kardec







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