sábado, 2 de janeiro de 2021

Allan Kardec - Livro O que é o Espiritismo - Cap. 1 - Pequena Conferência Espírita - 3º Diálogo - O Padre




Allan Kardec - Livro O que é o Espiritismo - Cap. 1 - Pequena Conferência Espírita - 3º Diálogo


O Padre


Um abade. — Permitir-me-eis, senhor, que também vos dirija algumas perguntas?

A. K. — Com todo prazer, reverendo; mas, antes de responder a elas, julgo conveniente dar-vos a conhecer o terreno em que devo colocar-me perante vós. Antes de tudo, cumpre-me declarar que não tenho a pretensão de vos converter às nossas ideias. Se desejardes conhecê-las minuciosamente, encontrá-las-eis nos livros em que estão expostas; neles podereis estudá-las à vontade e aceitá-las ou rejeitá-las.

O Espiritismo tem por fim combater a incredulidade e suas funestas consequências, fornecendo provas patentes da existência da alma e da vida futura; dirige-se, pois, àqueles que em nada creem ou que duvidam, e o número desses é grande, como bem o sabeis; os que têm fé religiosa e a quem esta fé satisfaz não têm necessidade dele. Àquele que diz: “Creio na autoridade da Igreja e me contento com os seus ensinos, sem nada buscar além dos seus limites”, o Espiritismo responde que não se impõe a pessoa alguma e que não vem forçar nenhuma convicção.

A liberdade de consciência é consequência da liberdade de pensar, que é um dos atributos do homem; se não a respeitasse, o Espiritismo estaria em contradição com os seus princípios de caridade e de tolerância. A seus olhos, toda crença é respeitável, ainda que errônea, desde que seja sincera e não permita ao homem fazer mal ao próximo. Se alguém fosse induzido, por sua própria consciência, a crer, por exemplo, que é o Sol que gira ao redor da Terra, nós lhe diríamos: Acreditai-o se quiserdes, porque isso não impedirá que a Terra gire em torno do Sol. Mas, assim como não procuramos violentar-vos a consciência, não tenteis violentar a dos outros. Se, porém, transformardes uma crença, de si mesma inocente, em instrumento de perseguição, ela então se tornará nociva e pode ser combatida.

Tal é, senhor abade, a linha de conduta que tenho seguido com os ministros dos diversos cultos que a mim se têm dirigido. Quando eles me interpelaram sobre alguns pontos da Doutrina, dei-lhes as explicações necessárias, abstendo-me, no entanto, de discutir certos dogmas, com os quais o Espiritismo não tem que se ocupar, por serem todos os homens livres em suas apreciações; nunca, porém, fui procurá-los com o propósito de lhes abalar a fé por meio de uma pressão qualquer. Aquele que nos procura como irmão, nós o acolhemos como tal; ao que nos repele, deixamo-lo em paz. É o conselho que não me canso de dar aos espíritas, porque nunca aprovei a pretensão dos que se arrogam a missão de converter o clero. Sempre lhes tenho dito: Semeai no campo dos incrédulos, pois é lá que tendes muito a colher. O Espiritismo não se impõe porque, como vo-lo disse, respeita a liberdade de consciência; ele sabe, aliás, que toda crença imposta é superficial e não desperta senão as aparências da fé, mas nunca a fé sincera. Ele expõe seus princípios aos olhos de todos, de modo que cada um possa formar opinião com conhecimento de causa. Os que lhe aceitam os princípios, sacerdotes ou leigos, o fazem livremente e por achá-los racionais; mas nós não ficamos querendo mal aos que se afastam da nossa opinião. Se hoje há luta entre a Igreja e o Espiritismo, temos plena consciência de não havê-la provocado.

O Padre. — Se a Igreja, vendo surgir uma nova doutrina, cujos princípios, em consciência, julga dever condenar, podeis contestar-lhe o direito de discuti-los e combatê-los, prevenindo os fiéis contra o que ela considera erro?

A. K. — De modo algum podemos contestar esse direito, que também reclamamos para nós. Se ela se houvesse encerrado nos limites da discussão, nada haveria de melhor; lede, porém, a maioria dos escritos emanados de seus membros ou publicados em nome da religião, os sermões que têm sido pregados, e vereis neles a injúria e a calúnia transbordando por toda parte e os princípios da Doutrina desfigurados de maneira indigna e maldosa. Do alto do púlpito, os espíritas não têm sido qualificados de inimigos da sociedade e da ordem pública? Aqueles a quem o Espiritismo reconduziu à fé não têm sido anatematizados e rejeitados pela Igreja, sob o pretexto de que é melhor ser incrédulo do que crer em Deus e na alma pelos ensinos da Doutrina Espírita? Muitos não lamentam hoje não se poder acender para os espíritas as fogueiras da Inquisição? Em certas localidades eles não têm sido apontados ao ódio de seus concidadãos, a ponto de fazer que sejam perseguidos e injuriados nas ruas? Não se tem imposto a todos os fiéis que os evitem como pestíferos e impedido que os criados entrem a seu serviço? Muitas mulheres não têm sido aconselhadas a se separarem de seus maridos, como muitos maridos de suas mulheres, tudo por causa do Espiritismo? Não se tem tirado lugares a empregados, retirado o pão do trabalho a operários e recusado caridade aos necessitados, por serem eles espíritas? Não se tem mandado embora de alguns hospitais, até cegos, por não quererem abjurar sua crença? Dizei-me, senhor abade: será isto uma discussão leal? Os espíritas responderam, porventura, injúria por injúria, mal por mal? Não. A tudo eles opuseram sempre a calma e a moderação. A consciência pública já lhes faz a justiça de reconhecer não terem sido eles os agressores.

O Padre. — Todo homem sensato deplora esses excessos, mas a Igreja não pode ser responsável pelos abusos cometidos por alguns de seus membros pouco esclarecidos.

A. K. — De acordo; mas, entrarão na classe dos pouco esclarecidos os príncipes da Igreja? Vede a pastoral do bispo de Argel e de alguns outros. Não foi um bispo quem ordenou o auto de fé de Barcelona? A autoridade superior eclesiástica não tem todo o poder sobre os seus subordinados? Se, pois, ela tolera esses sermões indignos da cátedra evangélica, se favorece a publicação de escritos injuriosos e difamatórios contra uma classe inteira de cidadãos, e se não se opõe às perseguições exercidas em nome da religião é porque as aprova.

Em resumo, a Igreja, repelindo sistematicamente os espíritas que a buscavam, forçou-os a retroceder; pela natureza e violência dos seus ataques ela ampliou a discussão e a levou para um terreno novo. O Espiritismo não passava de uma simples doutrina filosófica; foi a Igreja que lhe deu maiores proporções, apresentando-o como inimigo perigoso; foi ela, enfim, quem o proclamou nova religião. Foi grande inabilidade da sua parte, mas a paixão não raciocina melhor.

Um Livre pensador. — Há pouco proclamastes a liberdade de pensamento e de consciência, e declarastes que toda crença sincera é respeitável. O materialismo é uma crença como outra qualquer; por que lhe negar a liberdade que concedeis a todas as outras?

A. K. — Certamente, cada um é livre de crer no que quiser ou de não crer em coisa alguma, de forma que já não toleraríamos uma perseguição contra aquele que acredita no nada depois da morte nem com a promovida contra um cismático de qualquer religião. 

Combatendo o materialismo, não atacamos os indivíduos, mas uma doutrina que, se é inofensiva para a sociedade, quando se encerra no foro íntimo da consciência de pessoas esclarecidas, é uma chaga social, se vier a generalizar-se.

A crença de tudo acabar para o homem depois da morte, que toda solidariedade cessa com a extinção da vida, leva-o a considerar como um disparate o sacrifício do seu bem-estar presente, em proveito dos outros; daí a máxima: “Cada um por si durante a vida terrena, pois que nada existe além dela”.

A caridade, a fraternidade, a moral, em suma, ficam sem base alguma, sem nenhuma razão de ser.

Para que nos molestarmos, nos constrangermos e nos sujeitarmos a privações hoje, quando amanhã, talvez, já nada sejamos? 

A negação do futuro, a simples dúvida sobre outra vida, são os maiores estimulantes do egoísmo, fonte da maioria dos males que afligem a Humanidade. 

É preciso que se possua grande dose de virtude para não se seguir a corrente do vício e do crime, quando para isso não se tem outro freio além do da própria força de vontade. 

O respeito humano pode conter o homem do mundo, mas não contém aquele que não dá importância à opinião pública.

Ao mostrar a perpetuidade das relações entre os homens, a crença na vida futura estabelece entre eles uma solidariedade que não se rompe no túmulo; apenas muda o curso das ideias. 

Se essa crença fosse um simples espantalho, não duraria senão um tempo; como, porém, a sua realidade é fato comprovado pela experiência, é um dever propagá-la e combater a crença contrária, no interesse mesmo da ordem social. 

É o que faz o Espiritismo; e o faz com sucesso, porque fornece provas e, afinal, porque o homem prefere ter a certeza de viver e poder ser feliz num mundo melhor, para compensação das misérias deste mundo, a ter de morrer para sempre. 

O pensamento de ser aniquilado, de ver perdidos para sempre os filhos e os entes que lhe são mais caros, satisfaz a bem limitado número, acreditai-me; é por isso que os ataques dirigidos contra o Espiritismo, em nome da incredulidade, obtiveram tão pouco sucesso e não lhe acarretaram o menor abalo.

O Padre. — A religião ensina tudo isso; até agora foi suficiente. Qual é, pois, a necessidade de uma nova doutrina?

A. K. — Se a religião é suficiente, por que há tantos incrédulos, religiosamente falando? É certo que a religião nos ensina; ela nos manda crer, mas há tanta gente que não crê com base no que dizem os outros! O Espiritismo prova e faz ver o que a religião ensina em teoria. De onde vêm essas provas? Da manifestação dos Espíritos. Ora, é provável que os Espíritos só se manifestem com a permissão de Deus; se, pois, Deus em sua misericórdia envia aos homens esse socorro para os tirar da incredulidade, é uma impiedade repeli-lo.

O Padre. — Entretanto, não podeis negar que o Espiritismo não está, em todos os pontos, de acordo com a religião.

A. K. — Ora, senhor abade, todas as religiões dirão a mesma coisa: os protestantes, os judeus, os muçulmanos, tanto quanto os católicos.

Se o Espiritismo negasse a existência de Deus, da alma, da sua individualidade e imortalidade, das penas e recompensas futuras, do livre-arbítrio do homem; se ensinasse que cada um só deve viver para si, e não pensar senão em si, não só seria contrário ao Catolicismo, como a todas as religiões do mundo; seria a negação de todas as leis morais, base das sociedades humanas. Entretanto, não é isso que eles ensinam; os Espíritos proclamam um Deus único, soberanamente justo e bom; eles dizem que o homem é livre e responsável por seus atos, recompensado pelo bem ou pelo mal que houver feito; colocam a caridade evangélica n acima de todas as virtudes, bem como a sublime regra ensinada pelo Cristo: fazer aos outros o que gostaríamos que os outros nos fizessem. Não são estes os fundamentos da religião? Mas os Espíritos fazem mais: iniciam-nos nos mistérios da vida futura, que para nós já não é uma abstração, mas uma realidade, visto que são justamente aqueles que conhecemos na Terra que nos vem descrever a sua situação, dizer como e por que sofrem ou são felizes. Que haverá de antirreligioso em tudo isso? Essa certeza do futuro, de se ir encontrar aqueles a quem se amou, não será uma consolação? Essa grandiosidade da vida espiritual, que é a nossa essência, comparada às mesquinhas preocupações da vida terrena, não será de molde a elevar a nossa alma e a fortalecer-nos na prática do bem?

O Padre. — Concordo que, nas questões gerais, o Espiritismo é conforme às grandes verdades do Cristianismo; dar-se-á, porém, o mesmo em relação aos dogmas? Não contradiz ele alguns princípios que a Igreja nos ensina?

A. K. — O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência, e não se ocupa com questões dogmáticas. Tem consequências morais como todas as ciências filosóficas; serão boas ou más essas consequências? Pode-se julgá-las pelos princípios gerais que acabo de expor.

Algumas pessoas se iludem sobre o verdadeiro caráter do Espiritismo. A questão é de grande importância e merece alguns desenvolvimentos. Façamos, primeiro, uma comparação: estando na Natureza, a eletricidade existiu em todos os tempos e produziu sempre os efeitos que hoje observamos e muitos outros que ainda não conhecemos. Por ignorarem a sua verdadeira causa, os homens explicavam esses efeitos de um modo mais ou menos extravagante. A descoberta da eletricidade e de suas propriedades veio lançar por terra uma porção de teorias absurdas, projetando luz sobre mais de um mistério da Natureza. O que fizeram a eletricidade e as ciências físicas para certos fenômenos, o Espiritismo fez para outros de ordem diferente.

O Espiritismo fundamenta-se na existência de um mundo invisível formado pelos seres incorpóreos que povoam o espaço e que não são mais que as almas daqueles que viveram na Terra, ou em outros globos, nos quais deixaram seus envoltórios materiais. São os seres a que chamamos Espíritos; eles nos cercam e exercem constante influência sobre nós, embora não os percebamos; além disso, desempenham papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. O Espiritismo está, pois, na Natureza e podemos dizer que, numa certa ordem de ideias, ele é uma potência, tal como o são, sob outro ponto de vista, a eletricidade e a gravitação. Os fenômenos cuja fonte é o mundo invisível se hão produzido em todos os tempos; é por isso que a história de todos os povos faz menção deles. Somente, em sua ignorância, como se deu com a eletricidade, os homens os atribuíam a causas mais ou menos racionais, dando livre curso à sua imaginação.

 Mais bem observado depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de questões até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência, e não de uma religião; n e a prova disso é que ele conta entre os seus aderentes homens de todas as crenças, que nem por isso renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos que continuam a praticar todos os deveres do seu culto, quando a Igreja não os repele; protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas.

Consequentemente, o Espiritismo repousa em princípios independentes da questão dogmática. Suas consequências morais são todas no sentido do Cristianismo, porque de todas as doutrinas é esta a mais esclarecida e pura, razão pela qual, de todas as seitas religiosas do mundo, os cristãos são os mais aptos para compreendê-lo em sua verdadeira essência. Podemos censurá-lo por isso? Certamente, cada um pode formar de suas opiniões uma religião e interpretar à vontade as religiões conhecidas; mas daí a constituir nova Igreja, a distância é grande.

O Padre. — Entretanto, não fazeis as evocações segundo uma fórmula religiosa?

A. K. — Realmente, o sentimento religioso domina nas evocações e em nossas reuniões; mas não temos fórmula sacramental: para os Espíritos o pensamento é tudo e a forma nada. Nós os chamamos em nome de Deus, porque cremos em Deus e sabemos que nada se faz neste mundo sem a sua permissão, e, portanto, que eles não virão sem que Deus o permita. Procedemos em nossos trabalhos com calma e recolhimento, porque essa é uma condição necessária para as observações e, também, porque sabemos o respeito que se deve àqueles que não vivem mais sobre a Terra, qualquer que seja a sua condição, feliz ou infeliz, no mundo dos Espíritos; fazemos um apelo aos Espíritos bons, porque, sabendo que os há bons e maus, não queremos que estes últimos venham tomar parte fraudulentamente nas comunicações que recebemos. Que prova tudo isso? Que não somos ateus, o que não implica absolutamente que sejamos sectários de uma religião.

O Padre. — Pois bem! Que dizem os Espíritos superiores a respeito da religião? Os bons nos devem aconselhar e guiar. Suponhamos que eu não tenha religião alguma e queira escolher uma; se eu lhes pedir para me aconselharem se devo ser católico, protestante, anglicano, quacre, judeu, muçulmano ou mórmon, qual será a resposta deles?

A. K. — Há dois pontos a considerar nas religiões: os princípios gerais, comuns a todas, e os princípios particulares de cada uma delas. Os primeiros são os de que falamos há pouco; estes são proclamados por todos os Espíritos, seja qual for a sua categoria. Quanto aos segundos, os Espíritos vulgares, ainda que não sejam maus, podem ter preferências, opiniões; podem recomendar esta ou aquela forma e estimular certas práticas, seja por convicção pessoal, seja porque conservaram as ideias da vida terrena, seja por prudência, para não assustar as consciências timoratas. Acreditais, por exemplo, que um Espírito esclarecido, mesmo que fosse Fénelon, dirigindo-se a um muçulmano, cometeria a imprudência de dizer-lhe que Maomé é um impostor, e que ele será condenado se não se fizer cristão? De modo algum, porque seria repelido.

Em geral, a não ser que os Espíritos superiores sejam solicitados por alguma consideração especial, não se preocupam com essas questões de detalhe, limitando-se a dizer: “Deus é bom e justo; não quer senão o bem; a melhor de todas as religiões é aquela que só ensina o que é conforme à bondade e à Justiça de Deus; que dá de Deus a maior e a mais sublime ideia e não o rebaixa atribuindo-lhe as fraquezas e as paixões da Humanidade; que torna os homens bons e virtuosos e lhes ensina a se amarem todos como irmãos; que condena todo o mal feito ao próximo; que não permite a injustiça sob qualquer forma ou pretexto que seja; que nada prescreve de contrário às Leis imutáveis da Natureza, porque Deus não se pode contradizer; aquela cujos ministros dão o melhor exemplo de bondade, caridade e moralidade; a que procura melhor combater o egoísmo e satisfazer menos o orgulho e a vaidade dos homens; aquela, finalmente, em nome da qual se comete menos mal, porque uma boa religião não pode servir de pretexto a nenhum mal; não lhe deve deixar porta alguma aberta, nem diretamente, nem por interpretação. Vede, julgai e escolhei”.

O Padre. — Creio que certos pontos da doutrina católica são contestados pelos Espíritos que considerais superiores; supondo mesmo que esses princípios sejam falsos, poderá tal crença, segundo a opinião desses mesmos Espíritos, ser prejudicial à salvação daqueles que, errando ou acertando, a consideram artigo de fé e a praticam?

A. K. — Certamente que não, contanto que ela não os afaste da prática do bem, nem os incite ao mal, visto que a mais bem fundada crença os prejudicará, se lhes fornecer ocasião de fazer o mal, de faltar à caridade com o próximo, de torná-los duros e egoístas, porque, nesse caso, tal crença não age segundo a Lei de Deus, e Deus olha mais os pensamentos que os atos. Quem ousaria sustentar o contrário?

Acreditais, por exemplo, que a fé possa ser proveitosa a um homem que, crendo perfeitamente em Deus, pratique atos desumanos ou contrários à caridade? Não haverá sempre mais culpa naquele que tinha mais meios de esclarecer-se?

O Padre. — Assim, o católico fervoroso, que cumpre rigorosamente os deveres do seu culto, não é censurado pelos Espíritos?

A. K. — Não, se isso é para ele uma questão de consciência e se o faz com sinceridade; sim, mil vezes sim, se for hipócrita, se ele só tiver piedade aparente.

Os Espíritos superiores, os que têm por missão o progresso da Humanidade, se insurgem contra todos os abusos que podem retardar esse progresso, qualquer que seja a natureza deles e sejam quais forem os indivíduos ou as classes da sociedade que deles se aproveitem. Ora, não se pode negar que a religião nem sempre esteve isenta de abusos; se, entre os seus ministros, há muitos que desempenham sua missão com devotamento inteiramente cristão, que a fazem grande, bela e respeitável, também é certo que nem todos assim compreenderam a santidade do seu ministério. Os Espíritos combatem o mal, onde quer que ele se ache; mas, assinalar os abusos da religião, será atacá-la? Ela não tem inimigos piores que aqueles que defendem esses abusos, porque são esses abusos que fazem brotar o pensamento de ela poder ser substituída por outra melhor. Se a religião corresse qualquer perigo, a responsabilidade deveria cair sobre os que dão uma falsa ideia dela, transformando-a em arena das paixões humanas e explorando-a em proveito de sua ambição.

O Padre. — Dissestes que o Espiritismo não discute os dogmas e, contudo, ele admite certos pontos combatidos pela Igreja, tais, por exemplo, a reencarnação, a presença do homem na Terra antes de Adão; nega a eternidade das penas, a existência dos demônios, o purgatório, o fogo do inferno.

A. K. — Esses pontos vêm sendo discutidos há muito tempo; não foi o Espiritismo que os pôs em evidência; são pontos sobre alguns dos quais existe controvérsia, mesmo entre os teólogos, e que só o futuro julgará. Um grande princípio domina a todos: a prática do bem, que é a lei superior, a condição sine qua non do nosso futuro, como no-lo prova o estado dos Espíritos que conosco se comunicam. Enquanto a luz não se faz para vós sobre essas questões, acreditai, se o quiserdes, nas chamas e torturas materiais, se julgais que isso vos impede de praticar o mal; essa crença, porém, não as tornará mais reais se elas não existirem.

Acreditais que temos apenas uma existência corpórea, mas isto não impede de renascerdes aqui ou em outra parte, se assim tiver de ser, mesmo contra a vossa vontade; credes que o mundo todo foi criado em seis vezes vinte e quatro horas, a despeito das provas em contrário que a Terra nos apresenta, escritas em suas camadas geológicas; estais convencido de que Josué fez o Sol parar, e, contudo, é a Terra que gira; afirmais que o homem está na Terra há apenas 6.000 anos, embora os fatos vos contradigam. E que direis se um dia a Geologia demonstrar, por traços patentes, a anterioridade do homem, como já demonstrou tantas outras coisas?

Crede, pois, em tudo que vos aprouver, mesmo na existência do diabo, se tal crença vos puder tornar bom, humano e caridoso para com os vossos semelhantes. O Espiritismo, como doutrina moral, só impõe uma coisa: a necessidade de fazer o bem e o dever de não fazer o mal. É uma ciência de observação que, repito, tem consequências morais, que são a confirmação e a prova dos grandes princípios da religião; quanto às questões secundárias, ele as deixa à consciência de cada um.

Notai bem, senhor, que alguns dos pontos divergentes de que acabastes de falar, não são, em princípio, contestados pelo Espiritismo. Se tivésseis lido tudo quanto tenho escrito a respeito, teríeis visto que ele se limita a dar-lhes uma interpretação mais lógica e racional do que a que vulgarmente lhes dão. É assim, por exemplo, que ele não nega o purgatório; antes, pelo contrário, demonstra sua necessidade e justiça; vai mesmo além, ele o define. O inferno foi descrito como imensa fornalha, mas será assim que o entende a alta teologia? Evidentemente, não; ela diz muito bem que isto é uma simples figura; que o fogo que ali se consome é um fogo moral, símbolo das maiores dores. Quanto à eternidade das penas, se fosse possível fazer-se uma eleição para se conhecer a opinião íntima de todos os homens que raciocinam e estão aptos a compreendê-la, mesmo entre os mais religiosos, se veria para que lado penderia a maioria, porque a ideia de uma eternidade de suplícios é a negação da infinita misericórdia de Deus.

Eis, aliás, o que diz a Doutrina Espírita a tal respeito:

A duração do castigo é subordinada ao melhoramento do Espírito culpado. Nenhuma condenação por tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr um termo aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação; em suma, um melhoramento sério, efetivo, e um retorno sincero ao bem. O Espírito é assim o árbitro de sua própria sorte; pode prolongar seus sofrimentos, conforme sua pertinácia no mal, ou minorá-los e abreviá-los, segundo os esforços que empregue para fazer o bem. Sendo a duração da pena subordinada ao arrependimento, o Espírito culpado que não se arrependesse e nunca melhorasse, sofreria sempre, e para ele então a pena seria eterna. A eternidade das penas deve, pois, ser entendida no sentido relativo e não no absoluto. Uma condição inerente à inferioridade do Espírito é não ver o termo da sua situação e crer que há de sofrer sempre, o que é para ele um castigo. Desde, porém, que sua alma se abra ao arrependimento, Deus lhe faz entrever um raio de esperança.

Evidentemente, esta doutrina é mais conforme à Justiça de Deus, que pune enquanto o culpado persiste no mal, e concede-lhe graça desde que ele volte ao bom caminho. Quem imaginou essa teoria? Fomos nós? Não, foram os Espíritos que a ensinam e provam pelos exemplos que diariamente nos fornecem.

Os Espíritos não negam as penas futuras, pois são eles mesmos que nos vem descrever seus próprios sofrimentos; e esse quadro nos toca mais do que o das chamas perpétuas, porque tudo nele é perfeitamente lógico. Compreende-se que isto é possível, que assim deve ser, que essa situação é uma consequência muito natural das coisas; o filósofo pode aceitá-lo, porque nele nada repugna à razão. Eis por que as crenças espíritas têm conduzido tanta gente ao bem, mesmo entre os materialistas, aos quais o temor do inferno, tal como nos é descrito, não os abalou absolutamente.

O Padre. — Admitindo esse raciocínio, não julgais que o vulgo precisa de imagens mais impressionantes do que a de uma filosofia que ele não pode compreender?

A. K. — Isto é um erro que tem lançado mais de um homem ao materialismo, ou, pelo menos, afastado alguns homens da religião. Chega o momento em que essas imagens não impressionam mais, e então aqueles que não aprofundam as coisas, não aceitando uma parte, rejeitam o todo, porque, dizem eles: se me ensinaram como verdade incontestável um ponto que é falso, se me deram uma imagem, uma figura, pela realidade, quem me garante que o resto seja verdadeiro? Se, ao contrário, a razão, crescendo, nada tem a repelir, a fé se fortifica. A religião ganhará sempre em seguir o progresso das ideias; se alguma vez ela corre perigo, é quando os homens querem avançar e ela fica na retaguarda. Repete os mesmos erros do passado quem espera conduzir os homens de hoje pelo medo do demônio e das torturas eternas.

O Padre. — A Igreja, com efeito, reconhece hoje que o inferno material é uma figura, n o que não exclui a existência dos demônios; sem eles, como explicar a influência do mal, que não pode vir de Deus?

A. K. — O Espiritismo não admite os demônios no sentido vulgar da palavra, mas admite os Espíritos maus, que não valem mais do que aqueles e que fazem igualmente o mal, suscitando maus pensamentos; somente diz que eles não são seres à parte, criados para o mal e perpetuamente votados ao mal, espécie de párias da Criação e algozes do gênero humano; são seres atrasados, ainda imperfeitos, mas aos quais Deus reservará o futuro. Nisso o Espiritismo está de pleno acordo com a Igreja Católica Grega, que admite a conversão de Satã, alusão ao melhoramento dos Espíritos maus. Notai, também, que a palavra demônio não implica a ideia de Espírito mau, que lhe é dada pela acepção moderna, visto que a palavra daimon, grega, significa gênio, inteligência. Seja como for, hoje ela exprime um Espírito mau.

Ora, admitir a comunicação dos Espíritos maus é reconhecer, em princípio, a realidade das manifestações. A questão está em saber se são eles os únicos que se comunicam, como afirma a Igreja para justificar a proibição, feita por ela, de se comunicar com os Espíritos. Aqui, invocamos o raciocínio e os fatos. Se os Espíritos, quaisquer que eles sejam, se comunicam, é porque têm a permissão de Deus; será possível que somente aos maus Ele o houvesse permitido, deixando a estes toda a liberdade de virem enganar os homens e impedindo que os bons lhes viessem fazer um contrapeso e neutralizar as suas doutrinas perniciosas? Crer que seja assim, não seria pôr em dúvida seu poder e bondade, e fazer de Satã um rival da Divindade?  A Bíblia, o Evangelho, os Pais da Igreja reconhecem perfeitamente a possibilidade das comunicações com o mundo invisível, e desse mundo não estão excluídos os bons; por que, pois, havemos hoje de excluí-los? Além disso, a Igreja, admitindo a autenticidade de certas aparições e comunicações de santos, rejeita, por isso mesmo, a ideia de só podermos entrar em relação com os Espíritos maus. Seguramente, quando os ditados obtidos só encerram coisas boas, quando eles nos pregam a mais pura e sublime moral evangélica, a abnegação, o desinteresse e o amor ao próximo; quando neles se combate o mal, seja qual for o aspecto sob o qual se manifeste, será racional acreditar-se que o Espírito maligno assim proceda?

O Padre. — O Evangelho nos ensina que o anjo das trevas, ou Satã, se transforma em anjo de luz para seduzir os homens.

A. K. — Segundo o Espiritismo e a opinião de muitos filósofos cristãos, Satã não é um ser real; é a personificação do Mal, como Saturno era, outrora, a personificação do Tempo. A Igreja toma ao pé da letra essa figura alegórica; é uma questão de opinião que eu não discutirei absolutamente.

Admitamos, por um instante, que Satã seja um ser real; a Igreja, de tanto exagerar o seu poder, tendo em vista intimidar, chega a um resultado totalmente contrário, isto é, à destruição, não somente do medo, mas também da crença em tal personagem, segundo o provérbio: Quem muito quer provar, acaba não provando coisa alguma. Ela o representa como eminentemente fino, sagaz e ardiloso, mas, na questão do Espiritismo, ela o faz desempenhar o papel de louco ou tolo.

Já que o objetivo de Satã é alimentar de vítimas o inferno e arrebatar almas do poder de Deus, compreende-se facilmente que se dirija àqueles que estão no bem para os induzir ao mal, e, para tal fim, se veja obrigado a transformar-se, segundo belíssima alegoria, em anjo de luz e a simular a verdade. Como compreender, porém, que deixe escapar aqueles que já estavam em suas garras?

Os que não creem em Deus nem na alma, os que desprezam a prece e vivem mergulhados no vício, já são do demônio, nada mais lhe restando fazer para sepultá-los no lamaçal; ora, excitá-los a voltar a Deus, a orar, a submeter-se à vontade do Criador, animá-los a renunciar ao mal, mostrando-lhes a felicidade dos escolhidos e a triste sorte que aguarda os maus, seria ato de um palerma, mais estúpido que o de dar liberdade a aves que estejam numa gaiola, com a intenção de apanhá-las novamente.

Há, pois, na doutrina da comunicação exclusiva dos demônios uma contradição que choca todo homem sensato. Nunca se convencerá alguém que os Espíritos que reconduzem a Deus aqueles que o negavam; os que encaminham ao bem os seres que praticavam o mal; os que consolam os aflitos e dão força e coragem aos fracos; os que, pela sublimidade de seus ensinos, elevam a alma acima da vida material, sejam cúmplices de Satã, e que, por este motivo, se deva interditar qualquer relação com o mundo invisível.

O Padre. — Se a Igreja proíbe as comunicações com os Espíritos dos mortos, é porque elas são contrárias à religião, como sendo formalmente condenadas pelo Evangelho e por Moisés. Este último, pronunciando a pena de morte contra essas práticas, prova quanto elas são repreensíveis aos olhos de Deus.

A. K. — Perdão, senhor, mas essa proibição não se encontra em parte alguma do Evangelho; ela se acha somente na lei mosaica. Trata-se, pois, de saber se a Igreja coloca a lei mosaica acima da evangélica, isto é, se ela é mais judia que cristã. Devemos mesmo notar que, de todas as religiões, a que faz menos oposição ao Espiritismo é a judaica, contra cujas evocações ela não invocou a lei de Moisés, em que se apoiam as seitas cristãs. [v. É permitido evocar os mortos, já que Moisés o proibiu?] Se as prescrições bíblicas são o código da fé cristã, por que proíbem a leitura da Bíblia? Que diriam se se proibisse a um cidadão o estudo do código das leis do seu pais?

A proibição feita por Moisés tinha então a sua razão de ser porque o legislador hebreu queria que o seu povo rompesse com todos os hábitos trazidos do Egito e, entre eles aquele de que tratamos era objeto de abuso. Não se evocava os mortos pelo respeito e afeição que se votava a eles nem com o sentimento de piedade, mas sim como meio de adivinhar, como objeto de tráfico vergonhoso, explorado pelo charlatanismo e pela superstição; Moisés teve, pois, razão de proibi-lo. Se ele pronunciou contra esse abuso uma penalidade severa, é que precisava de meios rigorosos para governar esse povo indisciplinado; por isso, a sua legislação era pródiga na aplicação da pena de morte.

É, pois, um erro apoiar-se na severidade do castigo para provar-se o grau de culpabilidade da evocação dos mortos. Se a interdição da evocação aos mortos vem do próprio Deus, como pretende a Igreja, deve também ser Deus que instituiu a pena de morte contra os delinquentes. Esta pena passa a ter uma origem tão sagrada quanto a interdição; neste caso, por que não a conservam também? Todas as leis de Moisés são promulgadas em nome e por ordem de Deus; se creem que Deus seja o autor delas, por que não as observam mais? Se a lei de Moisés é para a Igreja um artigo de fé sobre um ponto, por que não o é sobre os demais? Por que recorrem a ela naquilo que lhes convém, e a rejeitam quando não lhes interessa? Por que não lhe seguem todas as prescrições, entre outras a da circuncisão, que Jesus sofreu e não aboliu?

Havia na lei mosaica duas partes: 1ª a Lei de Deus, resumida nas tábuas do Sinai; esta lei foi conservada porque é divina, e o Cristo não fez mais que desenvolvê-la; 2ª a lei civil ou disciplinar, apropriada aos costumes do tempo e que o Cristo aboliu. Hoje, as circunstâncias já não são as mesmas, de modo que a proibição de Moisés perdeu a sua razão de ser. Além disso, se a Igreja proíbe a evocação dos Espíritos, acaso poderá impedir que eles venham sem ser chamados? Não estamos vendo diariamente manifestações de todos os gêneros, entre pessoas que nunca se ocuparam com o Espiritismo, e antes mesmo que se cogitasse da sua divulgação?

Outra contradição: Se Moisés proibiu evocar os Espíritos dos mortos, é porque eles podiam vir; do contrário essa interdição seria inútil. Se podiam vir naquele tempo, por que não o poderiam hoje? E, se são Espíritos de mortos, não são exclusivamente demônios. Antes de tudo, devemos ser lógicos.

O Padre. — A Igreja não nega que os Espíritos bons possam comunicar-se, pois reconhece que os santos também se têm manifestado; mas não pode considerar bons aqueles que vêm contradizer seus princípios imutáveis. Os Espíritos ensinam, é verdade, que há penas e recompensas futuras, porém de modo diverso do que ela ensina; só ela pode julgar o que eles pregam e, portanto, distinguir os bons dos maus.

A. K. — Eis a grande questão. Galileu foi acusado de heresia e de ser inspirado pelo demônio, porque vinha revelar uma Lei da Natureza, provando o erro de uma crença julgada inatacável; foi condenado e excomungado. Se os Espíritos tivessem, sobre todos os pontos, concordado com o ensino exclusivo da Igreja; se eles não proclamassem a liberdade de consciência e não condenassem certos abusos, teriam sido todos bem-vindos e não os qualificariam de demônios. Tal é também a razão pela qual todas as religiões, os muçulmanos como os católicos, por se julgarem na posse exclusiva da verdade absoluta, olham como obra do demônio toda doutrina que, do seu ponto de vista, não seja inteiramente ortodoxa. Ora, os Espíritos não vêm derrubar a religião, mas, como Galileu, revelar-nos novas Leis da Natureza. Se alguns pontos de fé sofrem com isto, é porque, como na velha crença de girar o Sol ao redor da Terra, estão em contradição com essas leis. A questão está em saber se um artigo de fé pode anular uma lei natural, que é obra de Deus, e se, uma vez reconhecida essa lei, não será mais racional interpretar o dogma sem ferir a lei, em vez de atribuí-la ao demônio.

O Padre. — Deixemos a questão dos demônios; bem sei que ela é diversamente interpretada pelos teólogos. O sistema da reencarnação, contudo, parece-me mais difícil, de conciliar com os dogmas, pois apenas ressuscita a metempsicose de Pitágoras.

A. K. — Não é este o momento próprio de discutir uma questão que demandaria longos desenvolvimentos; vós a encontrareis em O Livro dos Espíritos e na Moral do Evangelho segundo o Espiritismo, n apenas acrescentarei algumas palavras.

A metempsicose dos Antigos consistia na transmigração da alma do homem nos animais, o que implica uma degradação. Aliás, convém lembrar que essa doutrina não era o que vulgarmente se crê. A transmigração pelos corpos dos animais não era considerada como condição inerente à natureza da alma humana, mas como castigo temporário; admitia-se, assim, que as almas dos assassinos iam habitar os corpos dos animais ferozes, para neles receberem a sua punição; as dos sensuais passavam pelos corpos dos porcos e javalis; as dos inconstantes e estouvados migravam para os corpos das aves; as dos preguiçosos e ignorantes, para os corpos dos animais aquáticos. Depois de alguns milhares de anos, mais ou menos, conforme a culpabilidade, a alma, saindo dessa espécie de prisão, voltava à Humanidade. A encarnação animal não era, pois, uma condição absoluta; como se vê, ela se aliava à reencarnação humana, e a prova disso é que a punição dos homens tímidos consistia em passar a corpos de mulheres expostas ao desprezo e às injúrias. n Era mais uma espécie de espantalho para os simples, do que um artigo de fé para os filósofos. Assim como dizemos às crianças: “Não vos torneis más, senão o lobo vos comerá”, os Antigos diziam aos criminosos: “Sereis transformados em lobos”, e hoje se diz: “O diabo vos agarrará e levará para o inferno”.

Segundo o Espiritismo, a pluralidade das existências difere essencialmente da metempsicose, por não admitir a encarnação da alma humana nos corpos de animais, mesmo como punição. Os Espíritos ensinam que a alma não retrograda, mas progride sempre. Suas diferentes existências corpóreas se cumprem na humanidade, sendo cada uma um passo que a alma dá na senda do progresso intelectual e moral, o que é bem diferente da metempsicose. Não podendo adquirir um desenvolvimento completo em uma só existência, muitas vezes abreviada por causas acidentais, Deus lhe permite continuar, em nova encarnação, a tarefa que ela não pôde acabar em outra, ou recomeçar o que fez errado. A expiação na vida corpórea consiste nas tribulações que nela sofremos.

Quanto à questão de saber se a pluralidade das existências da alma é ou não contrária a certos dogmas da Igreja, limito-me a dizer o seguinte: ou a reencarnação existe, ou não; se existe, é que está nas Leis da Natureza. Para provar que ela não existe, seria necessário demonstrar que ela é contrária, não aos dogmas, mas a essas leis, e que há outra mais clara e logicamente melhor que ela, explicando as questões que só ela pode resolver.

Além disso, é fácil demonstrar que certos dogmas encontram na reencarnação uma sanção racional, hoje aceitos por aqueles que outrora os repeliam, por falta de compreensão. Não se trata, pois, de destruir, mas de interpretar; é o que se dará mais tarde, pela força das coisas. Aqueles que não quiserem aceitar a interpretação ficam inteiramente livres, como ainda hoje o são, de crer que é o Sol que gira ao redor da Terra. A ideia da pluralidade das existências se vulgariza com espantosa rapidez, em razão de sua extrema lógica e conformidade com a Justiça de Deus. Que fará a Igreja, quando a reencarnação for reconhecida como verdade natural e aceita por todos?

Em resumo: a reencarnação não é um sistema concebido para satisfazer as necessidades de uma causa nem uma opinião pessoal; é ou não é um fato. Se está provado que certos efeitos existentes são materialmente impossíveis sem a reencarnação, é preciso admitirmos que eles decorrem da reencarnação; logo, se essa lei está na Natureza, não pode ser anulada por uma opinião contrária.

O Padre. — Segundo os Espíritos, quem não crê neles nem nas suas manifestações será menos favorecido na vida futura?

A. K. — Se esta crença fosse indispensável à salvação dos homens, que seria daqueles que, desde o começo do mundo, não tiveram a chance de possuí-la, bem como daqueles que, durante muito tempo, morrerão sem tê-la? Poderá Deus fechar-lhes as portas do futuro? Não; os Espíritos que nos instruem são muito mais lógicos; eles nos dizem: Deus é soberana­mente justo e bom e não subordina a sorte futura do homem a condições alheias à sua vontade; eles não nos dizem que fora do Espiritismo não possa haver salvação, mas sim, como o Cristo, que Fora da caridade não há salvação.

O Padre. — Permiti-me, então, dizer-vos que, desde que os Espíritos só ensinam os princípios de moral encontrados no Evangelho, não vejo qual possa ser a utilidade do Espiritismo, visto como antes que este viesse e hoje, sem ser por ele, podíamos e podemos alcançar a salvação. Não seria o mesmo se os Espíritos viessem ensinar algumas grandes verdades novas, alguns desses princípios que mudam a face do mundo, como fez o Cristo. Ao menos o Cristo era só, sua doutrina era única, ao passo que os Espíritos se contam por milhares e se contradizem, uns dizendo que é branco o que outros afirmam ser negro; do que resulta que, já desde o começo, seus partidários formam muitas seitas. Não seria melhor deixarmos os Espíritos tranquilos e contentarmo-nos com o que já temos?

A. K. — Laborais em erro, senhor, em não sair do vosso ponto de vista e em considerar sempre a Igreja como o único critério dos conhecimentos humanos. Se o Cristo disse a verdade, o Espiritismo não podia dizer outra coisa, e em vez de apedrejá-lo por isso, deve-se acolhê-lo como poderoso auxiliar, que vem confirmar, por todas as vozes de além-túmulo, as verdades fundamentais da religião, combatidas pela incredulidade. Que o materialismo o combata, compreende-se facilmente; mas que a Igreja se associe ao materialismo para combatê-lo, é o que não se pode conceber. Ela também se contradiz quando qualifica de demoníaco um ensino que se apoia na autoridade de Jesus, e, ao mesmo tempo, proclama a missão divina do fundador do Cristianismo.

O Cristo teria dito tudo? revelado tudo? Não, porque Ele próprio disse: “Muitas coisas eu teria ainda a dizer-vos, mas não podeis compreendê-las; é por isso que vos falo em parábolas”. Hoje, que o homem está maduro para compreender, o Espiritismo vem completar e explicar o que o Cristo não fez senão tocar, ou só disse sob a forma alegórica. Direis, sem dúvida, que competia à Igreja dar essa explicação. Mas qual delas? a romana, a grega ou a protestante? Como não estão de acordo, cada uma delas explicaria a seu modo e reivindicaria o privilégio de dar essa explicação. Qual delas conseguiria reunir todos os dissidentes? Deus, que é sábio, prevendo que os homens iriam contaminá-la com suas paixões e prejuízos, não quis confiar-lhes o cuidado desta nova revelação: entregou-a aos Espíritos, seus mensageiros, que a proclamam por todos os pontos do globo, fora dos limites particulares de qualquer culto, a fim de que ela possa aplicar-se a todos, e nenhum a transforme em objeto de exploração.

Por outro lado, os diversos cultos cristãos não se terão, em coisa alguma, afastado do caminho traçado pelo Cristo? Seus preceitos de moral serão escrupulosamente observados? Não lhe desnaturaram as palavras, a fim de servirem de apoio à ambição e às paixões humanas, quando elas são a sua própria condenação? Ora, o Espiritismo, pela voz dos Espíritos enviados por Deus, vem chamar à estrita observância de seus preceitos aqueles que dela se afastam; será por isso que o qualificam de obra satânica?

Vós vos iludis dando o nome de seitas a algumas divergências de opiniões relativas aos fenômenos espíritas. Não é de admirar que no começo de uma ciência, quando para muitos as observações ainda eram incompletas, tenham surgido teorias contraditórias; essas teorias, porém, repousam sobre detalhes e não sobre o princípio fundamental. Podem constituir escolas que expliquem certos fatos a seu modo, mas não são seitas, como não o são os diferentes sistemas que dividem os nossos sábios sobre as ciências exatas: em Medicina, Física, etc. Riscai, pois, a palavra seita, que é imprópria ao nosso caso. A quantas seitas o Cristianismo não tem dado origem, desde que surgiu? Por que a palavra do Cristo não teve bastante poder para impor silêncio a todas as controvérsias? Por que é suscetível de interpretações que ainda hoje dividem os cristãos em diferentes igrejas, pretendendo todas elas possuir exclusivamente a verdade necessária à salvação, detestando-se intimamente e se anatematizando em nome do seu divino Mestre, que não pregou senão o  amor e a caridade? — Devido à fraqueza dos homens — direis vós. Seja; como, então, quereis que o Espiritismo triunfe subitamente dessa fraqueza e transforme a Humanidade como por encanto?

Passemos à questão da utilidade. Dizeis que o Espiritismo não nos ensina nada de novo. É um erro: ele ensina, ao contrário, bastante àqueles que não se detém na superfície. Ainda que ele não fizesse mais que substituir a máxima: Fora da caridade não há salvação, que congrega os homens, àquela: Fora da Igreja não há salvação, que os divide, e já teria marcado uma nova era à Humanidade.

Dissestes que se podia passar sem o Espiritismo; concordo, como também se podia passar sem uma porção de descobertas científicas. Os homens certamente viviam bem, antes da descoberta de todos os novos planetas, antes que se tivesse calculado os eclipses, antes que se conhecesse o mundo microscópico e cem outras coisas; o camponês, para viver e fazer germinar o trigo, não precisa saber o que é um cometa, e, contudo, ninguém nega que todas essas coisas alargam o círculo das ideias e nos fazem compreender melhor as Leis da Natureza. Ora, o mundo dos Espíritos é uma dessas leis que o Espiritismo nos faz conhecer; ele nos ensina a influência que esse mundo exerce sobre o corpóreo. Mesmo supondo que a isso se limitasse a sua utilidade, já não seria muito a revelação de tal potência?

Vejamos, agora, a sua influência moral. Admitamos que ele nada ensine, sob esse ponto de vista; qual o maior inimigo da religião? O materialismo, porque o materialismo não crê em coisa alguma; ora, o Espiritismo é a negação do materialismo, que já não tem razão de ser. Assim, não é mais pelo raciocínio nem pela fé cega que se diz ao materialista que nem tudo se acaba com o corpo, mas pelos fatos, fazendo-o, por assim dizer, tocar com os dedos e enxergar. Não será isso um pequeno serviço prestado à Humanidade e à religião? Isto, porém, não é tudo: a certeza da vida futura e o quadro vivo daqueles que nos precederam nessa vida mostram a necessidade do bem e as consequências inevitáveis do mal. Eis por que, sem ser uma religião, n o Espiritismo se prende essencialmente às ideias religiosas, desenvolve-as naqueles que não as possuem e fortifica-as nos que vacilam. A religião encontra, pois, um apoio nele, não para as pessoas de visão estreita, que veem a vida futura integralmente na doutrina do fogo eterno, mais na letra que no espírito, e sim para aqueles que a veem segundo a grandeza e a majestade de Deus.

Em síntese, o Espiritismo engrandece e eleva as ideias; combate os abusos gerados pelo egoísmo, a cupidez, a ambição; quem, porém, terá a coragem de defendê-los e se declararem seus campeões? Se ele não é indispensável à salvação, facilita-a, firmando-nos no caminho do bem. Além disso, que homem sensato ousará avançar que a falta de ortodoxia é mais repreensível, aos olhos de Deus, do que o ateísmo e o materialismo?

Submeto as seguintes questões a todas as pessoas que combatem o Espiritismo, sob o ponto de vista de suas consequências religiosas:

1 ° Quem será menos favorecido na vida futura: aquele que não crê em coisa alguma, ou quem, acreditando nas verdades gerais, não admite certas partes do dogma?

2° O protestante e o cismático serão confundidos na mesma reprovação que o ateu e o materialista?

3° Aquele que, no rigor da palavra, não é ortodoxo, mas faz todo o bem que pode, que é bom e indulgente para com o próximo, leal em suas relações sociais, terá menos garantia de salvação, do que aquele que crê em tudo, mas que é duro, egoísta e falta com a caridade?

4° O que vale mais aos olhos de Deus: a prática das virtudes cristãs sem a dos deveres da ortodoxia ou a destes últimos sem a da moral?

Respondi, senhor abade, às questões e objeções que me dirigistes, mas, como vo-lo disse no começo, sem intenção alguma preconcebida de vos conduzir às nossas ideias e de mudar as vossas convicções, limitando-me a fazer-vos encarar o Espiritismo sob o seu verdadeiro aspecto. Se não tivésseis vindo, eu não vos teria ido procurar, o que não quer dizer que desprezássemos a vossa adesão aos nossos princípios, caso ela se verificasse, longe disso, julgamo-nos sempre felizes pelas aquisições que fazemos, as quais têm para nós tanto maior valor quanto mais livres e voluntárias são. Não só não temos o direito de exercer constrangimento sobre quem quer que seja, como também sentiríamos escrúpulo em ir perturbar a consciência dos que, tendo crenças que os satisfazem, não venham espontaneamente ao nosso encontro.

Dissemos que o melhor meio de se esclarecerem sobre o Espiritismo é estudarem previamente a teoria; os fatos virão depois, naturalmente, e serão compreendidos facilmente, qualquer que seja a ordem em que as circunstâncias os façam vir. As nossas publicações são feitas no intuito de favorecer esse estudo.

A primeira leitura a fazer-se é a deste resumo, que apresenta o conjunto e os pontos mais salientes da ciência; com isso, já se pode fazer uma ideia do Espiritismo e ficar-se convencido de que, no fundo, existe algo de sério. Nesta rápida exposição nós nos empenhamos em indicar os pontos sobre os quais o observador deve fixar particularmente a atenção. A ignorância dos princípios fundamentais é a causa das falsas apreciações da maioria daqueles que querem julgar o que não compreendem, ou que se baseiam em ideias preconcebidas.

Se da leitura deste primeiro resumo surgir o desejo de saber mais sobre o assunto, deve-se ler O Livro dos Espíritos, onde os princípios da Doutrina estão completamente desenvolvidos; depois, O Livro dos Médiuns, para a parte experimental, destinado a servir de guia para os que desejarem operar por si mesmos, bem como aos que quiserem compreender melhor os fenômenos. Vêm depois as diversas obras onde são desenvolvidas as aplicações e as consequências da Doutrina, tais como: A moral do Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, etc.

A Revista Espírita é, de certo modo, um curso de aplicações, em virtude dos numerosos exemplos e desenvolvimentos que ela encerra, tanto sobre a parte prática como sobre a parte experimental.

Às pessoas sérias, que já fizeram um estudo prévio da Doutrina, teremos prazer em dar verbalmente as explicações que se tornarem necessárias, sobre os pontos que porventura não tiverem compreendido suficientemente.


Allan Kardec





Nenhum comentário:

Postar um comentário