quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Casimiro Cunha - Livro Cartas do Evangelho - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 2 - Carta de Ano Bom




Casimiro Cunha - Livro Cartas do Evangelho - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 2


Carta de Ano Bom


Entre um ano que se vai
E outro que se inicia,
Há sempre nova esperança,
Promessas de Novo Dia…

Considera, meu amigo,
Nesse pequeno intervalo,
Todo o tempo que perdeste
Sem saber aproveitá-lo.

Se o ano que se passou
Foi de amargura sombria,
Nosso Pai nunca está pobre
Do pão de luz da alegria.

Pensa que o Céu não esquece
A mais ínfima criatura,
E espera resignado
O teu quinhão de ventura.

Considera, sobretudo
Que precisas, doravante,
Encher de luz todo o tempo
Da bênção de cada instante.

Sê na oficina do mundo
O mais perfeito aprendiz,
Pois somente no trabalho
Teu ano será feliz.

Não esperes recompensas
Dos bens da vida terrestre,
Mas, volve toda a esperança
À paz do Divino Mestre.

Nas lutas, nunca te esqueças
Deste conceito profundo:
O reino da luz de Cristo
Não reside neste mundo.

Não olhes faltas alheias,
Não julgues o teu irmão,
Vive apenas no trabalho
De tua renovação.

Quem se esforça de verdade
Sabe a prática do bem,
Conhece os próprios deveres
Sem censurar a ninguém.

Ano Novo!… Pede ao Céu
Que te proteja o trabalho,
Que te conceda na fé
O mais sublime agasalho.

Ano Bom!… Deus te abençoe
No esforço que te conduz
Das sombras tristes da Terra
Para as bênçãos de Jesus.


Casimiro Cunha






Emmanuel - Livro Vida e Caminho - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 17 - Carta de ano novo




Emmanuel - Livro Vida e Caminho - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 17


Carta de ano novo


Ano Novo é também a renovação de nossa oportunidade de aprender, trabalhar e servir.

O tempo, como paternal amigo, como que se reencarna no corpo do calendário, descerrando-nos horizontes mais claros para a necessária ascensão.

Lembra-te de que o ano em retorno é novo dia a convocar-te para execução de velhas promessas, que ainda não tiveste a coragem de cumprir.

Se tens algum inimigo, faze das horas renascer-te o caminho da reconciliação.

Se foste ofendido, perdoa, a fim de que o amor te clareie a estrada para a frente.

Se descansaste em demasia, volve ao arado de tuas obrigações e planta o bem com destemor para a colheita do porvir.

Se a tristeza te requisita, esquece-a e procura a alegria serena da consciência feliz no dever bem cumprido.

Novo Ano! Novo Dia!

Sorri para os que te feriram e busca harmonia com aqueles que te não entenderam até agora.

Recorda que há mais ignorância que maldade, em torno de teu destino.

Não maldigas, nem condenes.

Auxilia a acender alguma luz para quem passa ao teu lado, na inquietude da escuridão.

Não te desanimes, nem te desconsoles.

Cultiva o bom ânimo com os que te visitam, dominados pelo frio do desencanto ou da indiferença.

Não te esqueças de que Jesus jamais se desespera conosco e, como que oculto ao nosso lado, paciente e bondoso, repete-nos de hora a hora: “Ama e auxilia sempre. Ajuda aos outros, amparando a ti mesmo, porque se o dia volta amanhã, eu estou contigo, esperando pela doce alegria da porta aberta de teu coração”.


Emmanuel






Emmanuel - Livro Marcas do Caminho - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 5 - O tesouro da fraternidade




Emmanuel - Livro Marcas do Caminho - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 5


O tesouro da fraternidade


Não desprezes as pequeninas parcelas de carinho para que atinjas o tesouro da fraternidade.

Uma palavra confortadora.

O gesto de compreensão e ternura.

A frase de incentivo.

O presente de um livro.

A lembrança de uma flor.

Cinco minutos de palestra edificante.

O sorriso de estímulo.

A gota de remédio.

A informação prestada alegremente.

O pão repartido.

A visita espontânea.

Uma carta de entendimento e amizade.

O abraço de irmão.

O singelo serviço em viagem.

Um ligeiro sinal de cooperação.

Não é com o ouro fácil que descobrirás os mananciais ignorados e profundos da alma.

Não é com a autoridade do mundo que conquistarás a devoção real de um amigo.

Não é com a inteligência poderosa que colherás as flores ocultas da confiança.

Mas sempre que o teu coração se inclinar para um mendigo ou para um príncipe, envolvido na luz sublime da boa vontade, ajudando e servindo em nome do Bem, olvidando a ti mesmo para que outros se elevem e se rejubilem, guarda a certeza de que tocaste o coração do próximo com as santas irradiações das tuas pérolas de bondade e caminharás no mundo, sob a invencível couraça da simpatia para encontrar o divino tesouro da fraternidade em plenos Céus.


Emmanuel





(União Espírita Mineira — Belo Horizonte, MG, 20.07.1950)

Irmão X - Livro Pontos e Contos - Chico Xavier - Cap. 50 - Ano Novo




Irmão X - Livro Pontos e Contos - Chico Xavier - Cap. 50


Ano Novo


Quando o desvelado orientador chegou ao Planeta, encaminhando o aprendiz à experiência nova, o lar estava em festa, na celebração do Ano Novo.

Músicas alegres embalavam a casa, flores festivas enfeitavam a mesa lauta. Riam-se os jovens e as crianças, enquanto os velhos bebiam vinhos de júbilo.

O devotado amigo abraçou o tutelado e falou:

— Nova existência, meu filho, é qual Ano Novo. Enche-se o coração das esperanças mais belas. Troca-se o passado pelo presente. Rejubila-se a alma na oportunidade bendita. Promessas divinas florescem no coração.

O tempo é o tesouro infinito que o Criador concede às criaturas. Não esqueças, todavia, que a concessão de um tesouro é título de confiança e toda confiança traduz responsabilidade. Tanto prejudica a obra de Deus o avarento que restringe a circulação dos valores, como o perdulário que os dissipa, olvidando obrigações sagradas.

O tempo, desse modo, é benfeitor carinhoso e credor imparcial simultaneamente. Na Terra, a maioria dos homens não chegou ainda a compreendê-lo.

Os ignorantes perdem-no.

Os loucos matam-no.

Os maus envenenam-no.

Os indiferentes zombam dele.

Os vaidosos confundem-no.

Os velhacos enganam-no.

Os criminosos perturbam-no.

Riem-se dele os pândegos.

Os mentirosos ridicularizam-no.

Os tolos esquecem-no.

Os ociosos combatem-no.

Os tiranos abusam dele.

Os irônicos menosprezam-no.

Os arbitrários dominam-no.

Os revoltados acusam-no.

Aproveitam-no os trabalhadores fiéis.

O tempo, contudo, meu filho, pertence ao Senhor e ninguém pode subverter a ordem de Deus.

É por isso que, ao fim da existência, cada um recebe conforme usou o divino patrimônio.

Vale-te, pois, da oportunidade nova, sem olvidares o dever, convicto de que ninguém falará ou agirá no mundo, em vão.

O homem precipita-se. O tempo espera. O primeiro experimenta. O segundo determina.

Se atingiste a alegria de recomeçar, alcançarás, igualmente, o dia de acertar.

Lembra-te de que o tempo ensinará aos ignorantes.

Anulará os loucos.

Envenenará os maus.

Zombará dos indiferentes.

Confundirá os vaidosos.

Esclarecerá os velhacos.

Perturbará os criminosos.

Surpreenderá os pândegos.

Ridiculizará os mentirosos.

Corrigirá os tolos.

Combaterá os ociosos.

Ferirá os tiranos.

Menosprezará os irônicos.

Prenderá os arbitrários.

Acusará os revoltados.

Compensará os trabalhadores fiéis.

Calou-se o venerável ancião.

Havia risos à mesa doméstica, expectativa no candidato à reencarnação, sorrisos paternais no velhinho experiente.

O sábio abraçou novamente o discípulo e despediu-se rematando:

— Não te esqueças de que o tempo é generoso nas concessões e justo nas contas. Vai, porém, meu filho, e não temas.

Nesse instante, à maneira do homem, cheio de esperanças, que penetra o Ano Novo, o aprendiz reingressou na onda do nascimento.


Irmão X
(Humberto de Campos)







quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Hammed - Livro A Imensidão dos Sentidos - Francisco do Espírito Santo Neto - Pág. 209 - A importância das intenções




Hammed - Livro A Imensidão dos Sentidos - Francisco do Espírito Santo Neto - Pág. 209


A importância das intenções 


(…) Ora, não credes que basta pronunciar algumas palavras para afastar os maus Espíritos; guardai-vos, sobretudo, de vos servirdes de uma dessas fórmulas banais, que se recita para desencargo de consciência; sua eficácia está na sinceridade do sentimento que a dita; está, sobretudo, na unanimidade da intenção (…)”. (Livro dos Médiuns - 2ª Parte. - Cap. XXXI, dissertação n° XVI.)


Abu Hamid Mohamed al-Ghazali, filósofo e teólogo muçulmano, nascido na Pérsia no século XI, escreveu: “Presta atenção, filho meu, e medita sobre as minhas palavras. Se soubesses que hoje viria visitar-te o soberano, que farias? Certamente te dedicarias ao requinte e à elegância, a fim de receberes com dignidade sua augusta presença. Usarias teu melhor vestuário, reorganizarias teus mais preciosos mobiliários, para que o soberano tudo observasse. Neste momento, ouve-me, meu filho, pois te considero suficientemente inteligente para interpretar minhas palavras: Deus não olha para os teus atos nem para a tua imagem externa. Deus apenas observa o teu coração e as tuas intenções“.

Somos vistos pela Divina Providência pelos “olhos do amor” e avaliados conforme nossas características distintivas, ou seja, nossa singularidade. O presente não é, simplesmente, uma cópia carbonada de fatos passados, e sim uma doação de novos aspectos a serem por nós incorporados. Cada dia nos concede uma visão ampliada da realidade. Somos, portanto, expressões individualizadas da Infinita Sabedoria. Ninguém é hoje a criatura que foi ontem.

O Poder da Vida, para julgar-nos, avalia o “nível de consciência” em que estamos estagiando no momento. Analisa a síntese das mensagens ou experiências que acumulamos através das diversas etapas evolutivas por onde transitamos em nossa jornada de almas imortais em busca de crescimento. 

O grau de intencionalidade é um fator imprescindível na medição do nosso merecimento, principalmente em se tratando de auxílio ou socorro espiritual. Não podemos falar de forma efetiva em eficácia da prece, sem levarmos em conta a sinceridade e a intenção com que envolvemos nossos atos e atitudes 

A Vida Providencial é sábia e justa e age em cada criatura de maneira dessemelhante, levando em conta sua individualidade. O agravamento das faltas ou dos erros é sempre proporcional ao conhecimento que se possui. Tanto é verdade que levou Paulo de Tarso a endereçar uma carta a Timóteo, na qual afirma: “(…) nosso Senhor, que me julgou fiel, tomando-me para o seu serviço, a mim que outrora era blasfemo, perseguidor e insolente. Mas obtive misericórdia, porque agi por ignorância, na incredulidade (…).”(1)

Como posso orar a Deus? De que maneira devo colocar-me diante do Senhor rogando proteção?
Descartando “(…) fórmulas banais, que se recita para desencargo de consciência (…)“, pois a eficácia da prece “(…) está na sinceridade do sentimento que a dita; está, sobretudo, na unanimidade da intenção (…)“.

Ora, a “sinceridade do sentimento” e a “unanimidade da intenção” têm tudo a ver com o grau de “maturidade da alma” ou de seu “estágio evolutivo”.

O amparo divino advém de nossa integridade. De nossa sinceridade ou honestidade para com nós mesmos. Da percepção de nossas intenções. 

Em várias ocasiões, abrimos mão de nossa integridade, por diversos motivos. Na realidade, ser íntegro é viver a inteireza do Espírito, sem falsidade ou vergonha, jamais querendo mostrar aos outros algo que não somos. Nosso jeito de ser, muitas vezes, não condizia com os pontos de vista ou com os valores comuns de nossa família ou da sociedade a qual pertencíamos. Muitos de nós, durante grande parte da vida, podemos ter ocultado tudo aquilo que denominamos “nossos defeitos”.

Fizemos um julgamento precipitado sobre nós mesmos, sufocando nossa força vital, nossa sinceridade e naturalidade. 

Mas, com o transcorrer dos anos, esses autojulgamentos inadequados podem ser corrigidos. Uma das graças que o tempo nos proporciona é a descoberta de que muitas das coisas que antes acreditávamos ser nossos pontos frágeis oportunamente se transformaram em pontos fortes, e outras tantas coisas que guardávamos como sendo valiosas acabaram por revelar-se pontos fracos. Sentimentos que durante anos não aceitávamos em nós, hoje são esteio e amparo para o nosso futuro. Se formos francos e honestos com nós mesmos, conseguiremos exalar uma “aura de integridade”, pois o crescimento espiritual acontece quando reconhecemos nossa realidade e os valores só nossos. “Quem vive de modo íntegro será salvo, mas quem se entorta em dois caminhos, num deles cairá“.(2) 

Devemos ser fiéis ao que é importante para nós e sempre nos lembrar de como é ser inteiro. Como é sentir e chorar, tomar iniciativa e ter opinião própria. Não devemos deixar ninguém abalar nossas convicções, como também não tentar convencer outras pessoas a aceitarem nossos valores. O correto é respeitarmos a nossa realidade, bem como a dos outros; assim viveremos na paz que a integridade proporciona.

Amadurecer na generalidade pode significar reconhecer ou aceitar que todos nós temos os dois lados de todas as coisas. Temos atitudes de medo e coragem, de raiva e determinação, de egoísmo e generosidade, de fragilidade e consistência. Todas essas atitudes não se anulam mutuamente ou por si mesmas. Na verdade, elas nos exercitam a alcançar equilíbrio e respostas diante das dificuldades de nossa vida, dentro e fora de nós mesmos. Às vezes, a vulnerabilidade é o nosso poder: nossa raiva transforma-se em determinação e nosso estado depressivo pode ser o caminho para o reencontro com nossa integridade. Talvez esse modo de ver tenha levado Paulo de Tarso a dizer: “(…) Por conseguinte, com todo ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força do Cristo. (…) Pois quando sou fraco, então é que eu sou forte”.(3)

“(…) Ora, não credes que basta pronunciar algumas palavras para afastar os maus Espíritos (…)“. O que atrairá vibrações positivas ou uma “aura de defesa” para todos nós será a sinceridade de nossas intenções.

A Misericórdia Divina jamais nega proteção a suas criaturas, mas esse amparo é sempre equivalente à expansão de nossa consciência, quer dizer, corresponde à nossa capacidade de discernir, avaliar e entender as leis naturais, dentro e fora de nós.


Hammed






(1) Timóteo, 1:12 e 13.
(2) Provérbios, 28:18
(3) II Coríntio, 12:9 e 10




Fonte: A imensidão dos sentidos -pdf

Joanna de Ângelis - Livro Messe de Amor - Divaldo P. Franco - Cap. 08 - Queixas




Joanna de Ângelis - Livro Messe de Amor - Divaldo P. Franco - Cap. 08


Queixas


Espanca a nuvem da queixa com os instrumentos de segurança plena, e apaga a fogueira da impulsividade que te impele aos atos impensados, afastando-te dos deveres para com a vida.

A queixa pode ser comparada a um ácido perigoso que sempre produz dano.

Na reclamação surge a maledicência que encoraja a calúnia, fomentando o desrespeito.

Todos guardamos compromissos com o passado, que ressurgem no presente como espinheiros da aflição, retificando erros, corrigindo distonias, reforçando a segurança.

Em razão disso, toda dificuldade pode ser considerada como favor da Lei divina, concedendo ensejo à simplificação e ao reajuste da alma.

Aquilo que se nos afigura provação indébita é, somente, resgate indispensável.

O obstáculo que nos cerceia o avanço, impedindo-nos o êxito na Terra, embora passageiro, pode ser aceito como dádiva da vida ou favor celeste.

Não vitalizes, desse modo, os próprios problemas com a dilatação da queixa.

Enquanto reclamamos, espalhando o nosso amargor, difundimos o lado negativo da oportunidade de reparação, ofertando desânimo e tristeza.

Cada alma reclama um coração que saiba escutar e amigos que se disponham a ouvir, num testemunho de solidariedade.

No entanto, enquanto a queixa, em forma de revolta íntima, flui pelos nossos lábios, desperdiçamos o favor da hora, gastando indebitamente o tempo precioso de realizar e produzir em favor de nós mesmos.

O queixoso aclimata-se à lamentação e emaranha-se nos cordéis da teia em que se prende.

Guarda sempre o azedume. Carrega noite no espírito.

Enquanto se detém no vão escuro do amor-próprio ferido, a pérola dos minutos muda de lugar, deixando-o de mãos vazias.

Reclamar pode ser traduzido na linguagem do dever como rebeldia, e a queixa pode ser interpretada como insubordinação.

Não vale muito fugir ao ressarcimento na dor, complicando o problema, que retornará como fornalha de fogo e aflição para a devida solução. A tarefa não executada volverá, hoje ou amanhã, para o necessário refazimento.

Ultrajado e preso entre zombarias e bofetões, o Senhor desceu do Monte das Oliveiras, cercado por sequazes do poder temporal, que ostentavam varapaus e archotes, para o supremo escárnio, sendo recolhido ao presídio, em absoluto silêncio, no qual buscava comungar com o Pai, haurindo na Fonte Divina a força para a vitória final.

Envolve nos tecidos do silêncio as tuas amarguras como Ele mesmo o fez.

Guarda na alma o compromisso com o sofrimento, serenamente, de espírito robusto e coração confiante, arrimado à tolerância.

A fonte gentil vence a lama do fundo, para atender ao sedento que lhe roga linfa cristalina.

Vence as dificuldades onde quer que as encontres, e atravessa o sítio lodacento em que te demoras.

Não apresentes queixas à cordialidade dos amigos que te buscam.

Não te animarias a oferecer àqueles a quem amas, borralho e cinza nos vasos da afeição, nem vinagre ou fel na taça da amizade.

A queixa cria pessimismo e estimula a ociosidade.

Ajusta o espírito à disciplina que corrige, para que a espontaneidade enfloresça os teus atos.

Honra os teus amigos com a esperança mediante um sorriso confiante.

Estende a palavra afável a quem te cerca de afeição, porquanto, embora esse coração amigo te pareça um bom ouvinte, abastecido de força e coragem, é, possivelmente, alguém lutando consigo mesmo, à cata de quem lhe oferte o lenitivo que parece possuir, para a dor do coração que se encontra em chaga aberta.


Joanna de Ângelis







Allan Kardec - O Livro dos Espíritos - 3ª Parte - Das leis morais - Cap. II - 1. Lei de adoração - A prece - Questão 662 (Miramez)




Allan Kardec - O Livro dos Espíritos - 3ª Parte - Das leis morais - Cap. II - 1. Lei de adoração


A prece


662. Pode-se, com utilidade, orar por outrem?

“O Espírito de quem ora atua pela sua vontade de praticar o bem. Atrai a si, mediante a prece, os Espíritos bons e estes se associam ao bem que deseje fazer.”

Possuímos em nós mesmos, pelo pensamento e a vontade, um poder de ação que se estende muito além dos limites de nossa esfera corpórea. A prece por outros é um ato dessa vontade. Se for ardente e sincera, pode chamar os bons Espíritos em auxílio daquele por quem pedimos, a fim de lhe sugerirem bons pensamentos e lhe darem a força necessária para o corpo e a alma. Mas ainda nesse caso a prece do coração é tudo e a dos lábios não é nada.


Allan Kardec


O Livro dos Espíritos comentado pelo Espírito Miramez

Questão 662 comentada


O que já escrevemos atrás não tira o estímulo de quem queira orar pelos que sofrem. Orar é um ato de amor, mas, se queres beneficiar realmente o irmão que padece, procura orar com amor, com a prece ardente, de modo que o pensamento sirva de canal para que as bênçãos de Deus possam aliviar o enfermo ou atribulado. No entanto, o sofredor deve estar consciente das suas provas e alimentar a fé, de modo que essa fé corresponda ao que disse Jesus aos inúmeros enfermos que eíe curou: A tua fé te curou.

Não só podes, mas deves orar pelos que sofrem, se possível todos os dias, não somente porque podes curar ou aliviar aos que padecem, mas, e principalmente, porque é um exercício de amor, que praticas em teu próprio benefício. Mesmo que o enfermo não tenha fé e não saiba que alguém está pedindo a Deus por ele, será bafejado pela luz da oração sincera, e sentirá um conforto que ele próprio não saberá de onde veio. Isto é Deus operando com o Seu amor para ajudar aos Seus filhos em todas as dimensões da vida em que estagiam.

Nós temos grande empenho em que todos os enfermos conheçam Jesus, enfim, que toda a humanidade o conheça, porque o Mestre é o Governador da Terra; nada se faz nela sem que Ele não saiba e decida.

Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez. (João, 1:3)

Se tudo que usamos, em todas as faixas em que vivemos, tem Seu traço de amor, o nosso dever é ser grato a essa Luz, que antes que o mundo fosse, já era.

Orar pelos que sofrem é nosso dever. A luz da oração, chegando aos corações sofredores, pode fazer muito, podendo lembrar ao enfermo que ele deve acordar para as coisas espirituais. É certo que, depois de Deus, somente ele pode fazer alguma coisa por si mesmo; no entanto, uma ajudazinha todos podem dar. Quando alguém dorme, mesmo que seja um sono profundo, pode-se acordá-lo, chamando-o mas, a decisão de permanecer acordado é dele. Depois de Deus, pela força da caridade, somente nós mesmos poderemos nos salvar. As decisões se movem pelo livre arbítrio, para que a conquista seja de quem trabalhou para a sua própria paz.

Quem deseja orar pelos que sofrem, que aprenda a orar com sinceridade, sem interesse que o leve à perturbação. Esse ato deve ser com amor. Somente quem ganha na purificação dos sentimentos é quem trabalhou para a sua evolução espiritual. Nada se perde; portanto, faze alguma coisa por ti mesmo, mudando a corrente dos teus pensamentos, palavras e atos.

A posição de orar, que muitos perguntam, és tu quem escolhes; o que é observado é o que passa pelo teu coração, ante o ponto que escolheste para ser beneficiado. Não é a posição que faz a prece mais ou menos elevada; os sentimentos é que são levados em conta. Quanto mais livre das coisas materiais, mais liberta fica a corrente mental, e busca mais assistência na sintonia dos benfeitores da eternidade. Os Espíritos superiores sempre atendem aos chamados honestos. Quando apenas os lábios falam, sem nada do coração, esses sons se perdem, ou o vento os leva, por não terem a direção do amor.

Todos os reinos se encontram na posição de orar; falta aos homens aprenderem a agradecer a Deus pelo que Ele fez e nos dá constantemente por Amor.


Miramez




Filosofia Espírita – Volume XIII - João Nunes Maia
Cap. 50 - Orar por outrem



Humberto de Campos - Livro Boa Nova - Chico Xavier - Cap. 10 - O perdão




Humberto de Campos - Livro Boa Nova - Chico Xavier - Cap. 10


O perdão


As primeiras peregrinações do Cristo e de seus discípulos, em torno do lago, haviam alcançado inolvidáveis triunfos. Eram doentes atribulados que agradeciam o alívio buscado ansiosamente; trabalhadores humildes que se enchiam de santas consolações ante as promessas divinas da Boa Nova.

Aquelas atividades, entretanto, começaram a despertar a reação dos judeus rigoristas, que viam em Jesus um perigoso revolucionário. O amor que o profeta nazareno pregava vinha quebrar antigos princípios da lei judaica. (Lv)  Os senhores da terra observavam cuidadosamente as palestras dos escravos, que permutavam imenso júbilo, proveniente das esperanças num novo reino que não chegavam a compreender. Os mais egoístas pretendiam ver no profeta generoso um conspirador vulgar, que desejava levantar as iras populares contra a dominação de Herodes; outros presumiam na sua figura um feiticeiro incomum, que era preciso evitar.

Foi assim que a viagem do Mestre a Nazaré redundou numa excursão de grandes dificuldades, provocando de sua parte as observações quase amargas que se encontram no Evangelho, com respeito ao berço daqueles que o deveriam guardar no santuário do coração. Não foram poucos os adversários de suas ideias renovadoras que o precederam na cidade minúscula, buscando neutralizar-lhe a ação por meio de falsas notícias e desmoralizá-lo, argumentando com informações mal alinhavadas de alguns nazarenos.

Jesus sentiu de perto a delicadeza da situação que se lhe criara com a primeira investida dos inimigos gratuitos de sua doutrina; mas, aproveitou todas as oportunidades para as melhores ilações na esfera do ensinamento.

No entanto, o mesmo não aconteceu a seus discípulos. Filipe e Simão Pedro chegaram a questionar seriamente com alguns senhores da região, trocando palavras ásperas, em torno das edificações do Messias. As gargalhadas irônicas, as apreciações menos dignas lhes acendiam no ânimo propósitos impulsivos de defesas apaixonadas. Não faltavam os que viam no Senhor um servo ativo do espírito do mal, um inimigo de Moisés, um assecla de príncipes desconhecidos, ou de traidores ao poder político de Ântipas. 

Tamanhas foram as discussões em Nazaré, que os seus reflexos nocivos se faziam sentir fortemente sobre toda a comunidade dos discípulos. Pedro e André advogavam a causa do Mestre com expressões incisivas e sinceras. Tiago aborrecia-se com a análise dos companheiros. Levi protestava, expressando o desejo de instituir debates públicos, de maneira a evidenciar-se a superioridade dos ensinos do Messias, em confronto com os velhos textos.

Jesus compreendeu os acontecimentos e, calmamente, ordenou a retirada, afastando-se da cidade com tranquilo sorriso.

Não obstante a determinação e apesar do regresso a Cafarnaum, a maioria dos apóstolos prosseguiu em discussão, estranhando que o Mestre nada fizesse, reagindo contra as envenenadas insinuações a seu respeito.

Daí a alguns dias, obedecendo às circunstâncias ocorrentes naquela situação, Pedro e Filipe procuraram avistar-se com o Senhor, ansiosos pela claridade dos seus ensinos.

— Mestre, chamaram-vos servo de Satanás e reagimos prontamente! — dizia Pedro, com sinceridade ingênua.

— Observávamos que por vós mesmo nunca oporíeis a contradita — ajuntava Filipe, convicto de haver prestado excelente serviço ao Mestre bem-amado — e por isso revidamos aos ataques com a maior força de nossas expressões.

Não obstante o calor daquelas afirmativas, Jesus meditava com uma doce placidez no olhar profundo, enquanto os interlocutores o contemplavam, ansiando pela sua palavra de franqueza e de amor.

Afinal, saindo de suas reflexões silenciosas, o Mestre interrogou:

— Acaso poderemos colher uvas nos espinheiros? De modo algum me empenharia em Nazaré numa contradita estéril aos meus opositores. Contudo, procurei ensinar que a melhor réplica é sempre a do nosso próprio trabalho, do esforço útil que nos seja possível. Nesse particular, não deixei de operar na minha esfera de ação, de modo a produzir resultados a nossa excursão à cidade vizinha, tornando-a proveitosa, sem desdenhar as palavras construtivas no instante oportuno. 

De que serviriam as longas discussões públicas, inçadas de doestos e zombarias? Ao termo de todas elas, teríamos apenas menores probabilidades para o triunfo glorioso do amor e maiores motivos para a separatividade e odiosas dissensões. Só devemos dizer aquilo que o coração pode testificar mediante atos sinceros, porque, de outra forma, as afirmações são simples ruído sonoro de uma caixa vazia.

— Mestre — atalhou Filipe, quase com mágoa —, a verdade é que a maioria de quantos compareceram às pregações de Nazaré falava mal de vós!

— Mas, não será vaidade exigirmos que toda gente faça de nossa personalidade elevado conceito? — interrogou Jesus com energia e serenidade. — Nas ilusões que as criaturas da Terra inventaram para a sua própria vida, nem sempre constitui bom atestado da nossa conduta o falarem todos bem de nós, indistintamente. 

Agradar a todos é marchar pelo caminho largo, onde estão as mentiras da convenção. Servir a Deus é tarefa que deve estar acima de tudo e, por vezes, nesse serviço divino, é natural que desagrademos aos mesquinhos interesses humanos. 

Filipe, sabes de algum emissário de Deus que fosse bem apreciado no seu tempo? Todos os portadores da verdade do Céu são incompreendidos de seus contemporâneos. Portanto, é indispensável consideremos que o conceito justo é respeitável, mas, antes dele, necessitamos obter a aprovação legítima da consciência, dentro de nossa lealdade para com Deus.

— Mestre — obtemperou Simão Pedro, a quem as explicações da hora calavam profundamente —, nos acontecimentos mais fortes da vida, não deveremos, então, utilizar as palavras enérgicas e justas?

— Em toda circunstância, convém naturalmente que se diga o necessário, porém, é também imprescindível que não se perca tempo.

Deixando transparecer que as elucidações não lhe satisfaziam plenamente, perguntou Filipe:

— Senhor, vossos esclarecimentos são indiscutíveis; entretanto, preciso acrescentar que alguns dos companheiros se revelaram insuportáveis nessa viagem a Nazaré: uns me acusaram de brigão e desordeiro; outros, de mau entendedor de vossos ensinamentos. Se os próprios irmãos da comunidade apresentam essas falhas, como há de ser o futuro do Evangelho?

O Mestre refletiu um momento e retrucou:

— Estas são perguntas que cada discípulo deve fazer a si mesmo. Mas, com respeito à comunidade, Filipe, pelo que me compete esclarecer, cumpre-me perguntar-te se já edificaste o Reino de Deus no íntimo do teu espírito.

— É verdade que ainda não — respondeu, hesitante, o apóstolo.

— De dentro dessa realidade, podes observar que, se o nosso colégio fosse constituído de irmãos perfeitos, teria deixado de ser irrepreensível pela adesão de um amigo que ainda não houvesse conquistado a divina edificação.

Ambos os discípulos compreenderam e se puseram a meditar, enquanto o Cristo continuava:

— O que é indispensável é nunca perdermos de vista o nosso próprio trabalho, sabendo perdoar com verdadeira espontaneidade de coração. Se nos labores da vida um companheiro nos parece insuportável, é possível que também algumas vezes sejamos considerados assim. Temos que perdoar aos adversários, trabalhar pelo bem dos nossos inimigos, auxiliar os que zombam da nossa fé.

Nesse ponto de suas afirmativas, Pedro atalhou-o, dizendo:

— Mas, para perdoar não deveremos aguardar que o inimigo se arrependa? E que fazer, na hipótese de o malfeitor assumir a atitude dos lobos sob a pele da ovelha?

— Pedro, o perdão não exclui a necessidade da vigilância, como o amor não prescinde da verdade. A paz é um patrimônio que cada coração está obrigado a defender, para bem trabalhar no serviço divino que lhe foi confiado. Se o nosso irmão se arrepende e procura o nosso auxílio fraterno, amparemo-lo com as energias que possamos despender; mas, em nenhuma circunstância cogites de saber se o teu irmão está arrependido. Esquece o mal e trabalha pelo bem. 

Quando ensinei que cada homem deve conciliar-se depressa com o adversário, busquei salientar que ninguém pode ir a Deus com um sentimento de odiosidade no coração. Não poderemos saber se o nosso adversário está disposto à conciliação; todavia, podemos garantir que nada se fará sem a nossa boa vontade e pleno esquecimento dos males recebidos. Se o irmão infeliz se arrepender, estejamos sempre dispostos a ampará-lo e, a todo momento, precisamos e devemos olvidar o mal.

Foi quando, então, fez Simão Pedro a sua célebre pergunta:

— “Senhor, quantas vezes pecará meu irmão contra mim, que lhe hei de perdoar? Será até sete vezes?”

Jesus respondeu-lhe, calmamente:

— Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete. 

Daí por diante, o Mestre sempre aproveitou as menores oportunidades para ensinar a necessidade do perdão recíproco, entre os homens, na obra sublime da redenção.

Acusado de feiticeiro, de servo de Satanás, de conspirador, Jesus demonstrou, em todas as ocasiões, o máximo de boa vontade para com os espíritos mais rasteiros de seu tempo. Sem desprezar a boa palavra, no instante oportuno, trabalhou a todas as horas pela vitória do amor, com o mais alto idealismo construtivo. E no dia inesquecível do Calvário, em frente dos seus perseguidores e verdugos, revelando aos homens ser indispensável a imediata conciliação entre o Espírito e a harmonia da vida, foram estas as suas últimas palavras — “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!…” 


Humberto de Campos
(Irmão X)







Emmanuel - Livro Mãos Unidas - Chico Xavier - Cap. 45 - Prontuário da alma




Emmanuel - Livro Mãos Unidas - Chico Xavier - Cap. 45


Prontuário da alma


Quanto mais se aperfeiçoam as técnicas e processos de vivência na civilização, mais se ampliam os dispositivos de proteção e defesa, a benefício da vida humana.

Leis de trânsito previnem acidentes.

Isoladores controlam cargas elétricas.

Antibióticos extinguem infecções.

Anestésicos frustram a dor.

Recorda que o progresso do mundo te faculta igualmente criar um prontuário da alma, capaz de imunizar-te contra desespero e amargura, angústia e insatisfação.

Referimo-nos ao binômio “serviço e esquecimento”, suscetível de conferir-nos tranquilidade sempre que seja posto em ação.

Quando apareça o sofrimento nascido de supostas decepções ou ingratidões do comportamento alheio, trabalha para o bem e olvida todo mal.

Se entregamos o coração em tais circunstâncias ao fel do pessimismo ou se alugamos a palavra ao domínio da queixa, será justo interrogar-nos quanto à inconsequência de nossa própria atitude.

Ressentimento ou desânimo de nossa parte traduziriam superestimação de valor, com respeito a nós mesmos, e espírito de irritação ou de azedume pressuporia, de nosso lado, a posse de uma superioridade ilusória.

Forçoso compreender que todos nós, os Espíritos em evolução na Terra, estamos ainda longe do aprimoramento a que aspiramos chegar.

E para a iniciação de semelhante burilamento ou mesmo para continuar dentro dele depois de começado, é indispensável contribuir na formação da felicidade de outrem, sem que outrem nos deva retribuir.

Em quaisquer dificuldades e males, procura a prática do bem e, na lavoura incessante do bem, busca transpor obstáculo a obstáculo, na certeza de que assim liquidarás problema a problema.

Isso porque “servir e esquecer” serão sempre as bases da harmonia e da elevação. E a vida assim será constantemente porque se hoje somos chamados a agir em socorro aos outros, amanhã provavelmente serão os outros chamados a agir em socorro a nós.


Emmanuel






Hilário Silva - Livro Seara de Fé - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 1 - Indicações da paz




Hilário Silva - Livro Seara de Fé - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap. 1


Indicações da paz


Faça o bem que puder.

Não se irrite.

Não censure a ninguém.

Conserve a paciência.

Desculpe sem condições.

Não crie adversários.

Adquira amigos por onde passe.

Não atrase o socorro possível a quem sofre.

Converse auxiliando para o bem.

Esqueça o mal, seja ele qual seja.

Não se lamente.

Ensine a prática da bondade e da tolerância, começando da própria casa.

Guarde silêncio, ante qualquer insulto.

Tolere com serenidade a palavra ou o gesto de qualquer agressor.

Aceite os seus problemas, buscando resolvê-los, sem levantar problemas para os outros.

Mantenha o seu sorriso de compreensão e solidariedade.

Dentro da consciência tranquila, transforme, quanto possível, o que lhe apareça na feição do mal em benefício concreto.

Trabalha servindo.

Não esmoreça, diante das provas necessárias, persistindo com o melhor que você possa fazer.

Em qualquer obstáculo ou situação difícil, imagine o que Jesus faria ou não faria, em seu lugar, e prefira estar com Jesus, em sua consciência e em seu coração, porque atendendo às indicações de Jesus, nunca perderemos o tesouro da paz.


Hilário Silva







Emmanuel - Livro 50 Anos Depois - Chico Xavier - Cap. 2 - Um anjo e um filósofo




Emmanuel - Livro 50 Anos Depois - Chico Xavier - Cap. 2


Um anjo e um filósofo


O palácio residencial do prefeito Lólio Úrbico demorava numa das mais belas eminências da colina em que se erguia o Capitólio.

A fortuna do seu dono era das mais opulentas da cidade, e a sua situação política era das mais invejáveis, pelo prestígio e respectivos privilégios.

Embora descendente de antigas famílias do patriciado, não recebera vultosa herança dos avoengos mais ilustres e, todavia, bem cedo o Imperador tomara-o a seu cuidado.

Dele fizera, a princípio, um tribuno militar cheio de esperanças e perspectivas promissoras, para promove-lo em seguida aos postos mais eminentes. Transformara-o, depois, no homem de sua inteira confiança. Fez-lhe doações valiosas em propriedades e títulos de nobreza, espantando-se, porém, a aristocracia da cidade, quando Adriano lhe recomendou o casamento com Cláudia Sabina, plebeia de talento invulgar e de rara beleza física, que conseguira, com o seu favoritismo, as mais elevadas graças da Corte.

Lólio Úrbico não vacilou em obedecer à vontade do seu protetor e maior amigo.

Casara-se, displicentemente, como se no matrimônio devesse encontrar uma salva-guarda total de todos os seus interesses particulares, prosseguindo, todavia, em sua vida de aventuras alegres, nas diversas campanhas de sua autoridade militar, fosse na Capital do Império ou nas cidades de suas Províncias numerosas.

Por outro lado, a esposa, agora prestigiada pelo seu nome, conseguia no seio da nobreza romana um dos lugares de maior evidência. Pouco inclinada às preocupações de matrona, não tolerava o ambiente doméstico, entregando-se aos desvarios da vida mundana, ora seguindo o plano delineado pelos amigos, ora organizando festivais célebres, afamados pela visão artística e pela discreta licenciosidade que os caracterizava.

A sociedade romana, em marcha franca para a decadência dos antigos costumes familiares, adorava-lhe as maneiras livres, enquanto o espírito discreto do Imperador e a volúpia dos áulicos se regozijavam com os seus empreendimentos, no turbilhão das iniciativas alegres, nos ambientes sociais mais elevados.

Cláudia Sabina conseguira um dos postos mais avançados nas rodas elegantes e frívolas. Sabendo transformar a inteligência em arma perigosa, valia-se da sua posição para aumentar, cada vez mais, o próprio prestígio, elevando, às culminâncias do meio em que vivia, criaturas de nobreza improvisada, para satisfazer facilmente os seus caprichos. Assim que, em torno de seus preciosos dotes de beleza física, borboleteavam todas as atenções e todos os desvelos.

Entardece.

No elegante palácio, próximo do templo de Júpiter Capitolino, paira um ambiente pesado de solidão e quietude.

Recostada num divã do terraço, vamos encontrar Cláudia Sabina em palestra reservada com uma mulher do povo, em atitudes de grande intimidade.

— Hatéria, dizia ela, interessada e discretamente — mandei chamar-te afim de aproveitar a tua velha dedicação numa incumbência.

— Ordenai. — Respondia a mulher de aspecto humilde, com o artificialismo de suas maneiras singelas. — Estou sempre pronta a cumprir as vossas ordens, sejam quais forem.

— Estarias disposta a servir-me cegamente, em outra casa?

— Sem dúvida.

— Pois bem, eu não tenho vivido senão para vingar-me de terríveis humilhações do passado.

— Senhora, lembro-me das vossas amarguras, no seio da plebe.

— Ainda bem que conheceste os meus sofrimentos.

Escuta — continuava Cláudia Sabina baixando a voz intencionalmente — sabes quem são os Lúcius, em Roma?

— Quem não conhece o velho Cneio, senhora? Antes de me falardes de vossas mágoas, devo esclarecer que sei também dos vossos desgostos, devidos à ingratidão do filho.

— Então, nada mais preciso dizer-te a respeito do que me compete fazer agora. Talvez ignores que Helvídio Lúcius e sua família chegarão a esta cidade dentro de poucos dias, de regresso do Oriente. Tenciono colocar-te no serviço de sua mulher, afim de poderes auxiliar a execução integral dos meus planos.

— Ordenai e obedecerei cegamente.

— Conheces Túlia Cevina?

— A mulher do tribuno Máximo Cunctátor? — Ela mesma. Ao que fui informada, Túlia Cevina foi encarregada, por sua antiga companheira de infância, de arranjar duas ou três servas de inteira confiança e habilitadas a satisfazer os imperativos da atualidade romana. Assim, importa que te apresentes, quanto antes, como candidata a esse cargo.

— Como? Achais provável que a esposa do tribuno venha a aceitar o meu simples oferecimento, sem referência que me recomende ao seu critério?

— Precisamos muita ponderação neste sentido. Túlia jamais deverá saber que és pessoa da minha intimidade. Poderias apresentar referências especiais de Crisotémis ou de Musónia, minhas amigas mais íntimas; todavia, essa medida não ficaria bem, igualmente. Suscitaria, talvez, qualquer suspeita, quando eu tivesse mais necessidade de tua intervenção ou de teus serviços.

— Que fazermos, então?

— Antes de tudo, é necessário te capacites da utilidade dos teus próprios recursos, em benefício dos nossos projetos. A aquisição de uma serva humilde é coisa preciosa e rara. Apresenta-te a Túlia com a mais absoluta singeleza. Fala-lhe das tuas necessidades, explica-lhe os teus bons desejos. Tenho quase certeza de que bastará isso para vencermos nossos primeiros passos. Em seguida, conforme espero, serás admitida ao ambiente doméstico de Alba Lucínia, a usurpadora da minha ventura. Servi-la-ás com humildade, submissão e devotamento, até conquistar-lhe confiança absoluta. Não precisarás procurar-me amiúde para não despertar suspeitas em torno de nossas combinações. Virás a esta casa um dia em cada mês, afim de estabelecermos os acordos necessários. A princípio, estudarás o ambiente e me cientificarás de todas as novidades e descobertas da vida íntima do casal. Mais tarde, então, veremos a natureza dos serviços a executar. Posso contar com a tua dedicação e com o teu silêncio?

— Estou inteiramente às ordens e cumprirei as vossas determinações com absoluta fidelidade.

— Confio nos teus esforços.

E, assim dizendo, Cláudia Sabina entregou à comparsa algumas centenas de sestércios, em penhor de mútuos compromissos.

Hatéria guardou o preço da primeira combinação, avidamente, lançando um olhar cúpido à bolsa e exclamando atenciosa:

— Podeis estar certa de que serei vigilante, humilde e discreta.

Caíam as sombras da noite sobre os Montes Albanos, mas a emissária de Cláudia procurou Túlia Cevina, daí a algumas horas, para os fins conhecidos.

A esposa do tribuno Máximo Cunctátor, patrícia de coração bondoso e afável, recebeu aquela mulher do povo, com generosidade e doçura. As solicitações insistentes de Hatéria confundiam-na. Havia comentado o pedido de sua amiga Alba Lucínia num círculo reduzidíssimo de amizades mais íntimas; entretanto, aquela serva desconhecida não lhe trazia recomendação alguma dos amigos com quem se entendera a respeito. Atribuiu, porém, o fato à tagarelice de alguma escrava que houvesse conhecido o assunto, indiretamente, através de qualquer palestra despreocupada.

A humildade e singeleza de Hatéria pareceram-lhe adoráveis. Suas maneiras revelavam extraordinária capacidade de submissão, desvelada e carinhosa.

Túlia Cevina aceitou-a e, apiedada da sua situação, recolheu-a naquela mesma noite, acomodando-a entre as suas fâmulas.

Daí a dias, a Porta de Óstia apresentava singular movimento. Luxuosas viaturas encaminhavam-se para o porto, onde a galera dos nossos conhecidos já havia ancorado.

Nas edificações da praia ensolarada, estalavam os ditos alegres e carinhosos. Uma chusma de amigos e de representações sociais e políticas vinha receber Helvídio e Caio, num dilúvio de abraços carinhosos.

 Lólio Úrbico e a esposa chegavam, igualmente, ao lado de Fábio Cornélio e sua mulher Júlia Spínter, velha patrícia, conhecida por suas tradições de orgulhosa sinceridade. Túlia Cevina e Máximo Cunctátor lá se encontravam, também, ansiosos pelo amplexo fraternal dos amigos, que, por largos anos, se haviam ausentado. Numerosos parentes e afeiçoados disputavam, entre si, o instante de estreitar nos braços amigos os queridos recém-chegados, mas, dentre toda a multidão, destacava-se o vulto venerando de Cneio Lúcius, aureolado pelos cabelos brancos, que as penosas experiências da vida haviam santificado. Uma atmosfera de amor e veneração fazia-se em torno da sua personalidade vibrante de cultura e generosidade, que setenta e cinco anos de lutas não conseguiram empanar. A sociedade romana havia seguido o curso de todos os seus passos, conhecendo, de longe, as suas tradições de nobreza e lealdade e respeitando nela um dos mais sagrados expoentes da educação antiga, cheia da beleza de Roma, em seus princípios mais austeros e mais simples.

Cneio Lúcius soubera desprezar todas as posições de domínio, compreendendo que o espírito do militarismo operava a decadência do Império, esquivando-se a todas as situações materiais de evidência, de modo a conservar o ascendente espiritual que lhe competia. No acervo dos seus serviços à coletividade, contavam-se as providências desenvolvidas pelo Governo Imperial a favor dos escravos que ensinavam as primeiras letras aos filhos de seus senhores, além de muitas outras obras de benemerência social, a prol dos mais pobres e dos mais humildes, a quem a sorte não favorecera. Seu nome era respeitado, não somente nos círculos aristocráticos do Palatino, mas também na Suburra, onde se acotovelavam as famílias anônimas e desventuradas.

Naquela manhã, o rosto do velho patrício deixava entrever o júbilo sereno que lhe palpitava na alma.

Estreitou os filhos longamente de encontro ao coração, chorando de alegria ao abraçá-los; osculou as netas com paternal contentamento, mas, enquanto as mais festivas saudações eram trocadas entre todos, no turbilhão de expressivas demonstrações de afeto e carinho, Cneio Lúcius notou que Lólio Úrbico contemplava, com insistência, o perfil de sua nora, enquanto Cláudia Sabina, fingindo absoluto olvido do passado, concentrava a sua atenção em Helvídio, em furtivos olhares que lhe diziam tudo à experiência do coração, cansado de bater entre caprichosos desenganos do mundo.

Nestório, por sua vez, desembarcado em Óstia, por satisfazer velho sonho, qual o de conhecer a cidade célebre e poderosa, sentia estranhas comoções a lhe vibrarem no íntimo, como se estivesse a rever lugares amigos e queridos. Guardava a convicção de que o panorama, agora desdobrado aos seus olhos ansiosos, era-lhe familiar, dos mais remotos tempos. Não podia precisar a cronologia de suas recordações, mas conservava a certeza de que, por processo misterioso, Roma estava inteira na tela de suas mais entranhadas reminiscências. Naquele mesmo dia, enquanto Alba Lucínia e as filhas se retiravam para a cidade, ao lado de Fábio Cornélio e de sua mulher, Helvídio Lúcius tomava lugar ao lado do velho genitor, encaminhando-se ao perímetro urbano, sem observarem as horas ou as perspectivas suaves do caminho, plenamente mergulhados, como se encontravam, em suas confidências mais íntimas.

Helvídio confiou ao pai todas as impressões que trazia da Ásia Menor, rememorando cenas ou evocando carinhosas lembranças, salientando, porém, as suas intensas preocupações morais a respeito da filha, cujos conhecimentos prematuros em matéria de religião e filosofia o assombravam, desde que, acidentalmente, se dera ao prazer de ouvir os escravos da casa, sobre perigosas superstições da crença nova que invadia os setores do Império, em todas as direções. Esclareceu, assim, ante o delicado e generoso mentor espiritual de sua existência, toda a situação familiar, apresentando-lhe os pormenores e circunstâncias, em torno do assunto.

O velho Cneio Lúcius, depois de ouvi-lo atentamente, prometeu-lhe auxílio moral, no que se referia à questão, a cuja solução o seu experimentado tirocínio educativo prestaria o mais proveitoso concurso.

Em poucos dias, instalavam-se os nossos amigos na sua magnífica residência do Palatino, iniciando um novo ciclo de vida citadina.

Helvídio Lúcius estava satisfeito com a sua nova posição, salientando-se que, como substituto imediato do sogro nas funções de Censor, estava-lhe reservado um papel relevante na vida da cidade, sob as vistas generosas do Imperador. Quanto a Alba Lucínia, graças aos seus inatos pendores artísticos, auxiliada por Túlia, transformou as perspectivas da velha propriedade, imprimindo-lhes o gosto da época e edificando em cada recanto um fragmento de harmonia do lar, onde o marido e as filhas pudessem repousar das largas inquietações da vida.

Desnecessário dizer que, abonada por Túlia, Hatéria foi admitida no lar, impondo-se a todos por sua humildade habilidosa e conquistando dos amos confiança plena, em poucos dias.

Na semana seguinte, a pretexto de repousar algum tempo junto do avô, que a idolatrava, foi Célia conduzida pelos pais à residência do mesmo, na outra margem do Tibre, nas faldas do Aventino.

Cneio Lúcius habitava confortável palacete de apurado estilo romano, em companhia de duas filhas já idosas, que lhe enchiam de afeto a estrelejada noite da velhice.

Recebeu a neta carinhosa, com as mais inequívocas provas de contentamento.

No dia imediato, pela manhã, mandou preparar a liteira particular para, em sua companhia, oferecer um sacrifício no templo de Júpiter Capitolino.

Célia acompanhou-o calma e prazerosa, embora reparasse os olhares expressivos com que o ancião a observava, ansioso, talvez, por lhe identificar os sentimentos mais íntimos.

Cneio Lúcius não estacionou tão somente no santuário de Júpiter, dirigindo-se, igualmente, ao templo de Serápis, onde procurou palestrar com a neta a respeito das mais antigas tradições da família romana. A jovem não lhe contradisse as palavras nem interrompeu a carinhosa preleção, submetendo-se à maior obediência no que se referia à ritualística dos templos, conforme os regulamentos instituídos em Roma pelos padres flamíneos.

A tarde já caía, quando o generoso velhinho deu por terminada a peregrinação através dos edifícios religiosos da cidade. O Sol escondia-se no poente, mas Cneio Lúcius desejava conhecer toda a intensidade dos novos pensamentos da neta, conduzindo-a, para esse fim, ao altar doméstico, onde se alinhavam as soberbas imagens de marfim dos deuses familiares.

— Célia, minha querida — disse ele por fim, descansando num largo divã à frente dos ídolos — levei-te hoje aos templos de Júpiter e de Serápis, onde ofereci sacrifícios em favor da nossa felicidade; mais que a nossa ventura, porém, cara filha, eu desejo a tua própria. Notei que acompanhavas os meus gestos e, todavia, não demonstravas devoção sincera e ardente. Acaso, trouxeste da Província alguma ideia nova, contrária às nossas crenças?!…

Ouviu a palavra do venerando avô, com a alma perdida em profundas cismas. Compreendeu, de relance, a situação, e, afeita às rigorosas tradições da família, adivinhou que seu pai solicitara tal providência, no intuito de reformar-lhe os pensamentos, bem como as convicções mais íntimas.

— Querido avô — respondeu de olhos úmidos, nos quais transparecia sublimada inocência — eu sempre vos amei de toda a minhalma e vós me ensinastes a dizer toda a verdade, em quaisquer circunstâncias.

Sim — exclamou Cneio Lúcius admirado, adivinhando as emoções da adorada criança — estás no meu coração a todos os instantes. Fala, filhinha, com a maior franqueza! Eu não aprendi outro caminho que o da verdade, junto às nossas tradições e aos nossos deuses…

— De antemão devo esclarecer-vos que foi certamente meu pai quem vos solicitou a reforma de meus atuais sentimentos religiosos.

O venerável ancião fez um gesto de espanto em face daquela observação inesperada.

— Sim — continuou a jovem — talvez meu pai não me pudesse compreender inteiramente… Ele jamais poderia ouvir-me satisfatoriamente, sem um protesto enérgico de sua alma; entretanto, eu continuaria a amá-lo sempre, ainda que o seu coração não me entendesse.

— Então, filhinha, porque negaste a Helvídio as tuas mais íntimas confidências?…

— Tentei fazer-lhas um dia, quando ainda nos encontrávamos na Judeia, mas compreendi, imediatamente, que meu pai julgaria mal as minhas palavras mais sinceras, percebendo, então, que a verdade para ser totalmente compreendida precisa ser tratada entre corações da mesma idade espiritual.

— Mas, filha, onde colocas, agora, os laços sagrados da família?

— No amor e no respeito com que sempre o cultivei; entretanto, avozinho, no campo das ideias os elos do sangue nem sempre significam harmonia de opinião entre aqueles que o Céu uniu no instituto familiar. Venerando e estimando a meu pai, no meu afeto filial e no respeito às tradições do seu nome, esposei ideias que ao seu espírito não é possível aderir, por enquanto…

— Mas, que queres traduzir por idade espiritual?…

— Que a mocidade e a velhice, quais as vemos no mundo, não podem significar senão expressões de uma vida física que finda com a morte. Não há moços nem velhos e sim almas jovens no raciocínio ou profundamente enriquecidas no campo das experiências humanas.

— Que queres dizer com isso? — perguntou o ancião altamente admirado — Tens tão vasta leitura dos autores gregos?! Isso é de estranhar, quando teu pai só há pouco obteve um escravo culto, especialmente destinado a enriquecer a tua e a educação de tua irmã.

— Vovô bem sabe da ânsia de aprender, que sempre me impeliu, desde pequenina. Embora jovem, sinto em meu espírito o peso de uma idade milenária. Em todos estes anos de ausência, na Província, gastei todo o tempo disponível em devorar a biblioteca que meu pai não podia levar consigo para as suas atividades na Idumeia.

— Filhinha — exclamou o respeitável ancião sinceramente consternado — não terias agido à moda dos enfermos que, à força de buscarem a virtude de todos os medicamentos ao alcance da mão, acabam lamentavelmente intoxicados!…

— Não, querido avô, eu não me envenenei. E se tal coisa houvera acontecido, há mais de dois anos tenho no coração o melhor dos antídotos à influência corrosiva de todos os tóxicos deste mundo.

— Qual? — Interrogou Cneio Lúcius sumamente surpreendido.

— Uma crença fervorosa e sincera.

— Colocaste teus pensamentos, neste sentido, sob a invocação dos nossos deuses?…

— Não, querido avô, pesa-me confessar-vos, mas, sinto em vosso íntimo a mesma capacidade de compreensão que vibra em minhalma e devo ser sincera. Os deuses de nossas antigas tradições já me não satisfazem…

— Como assim, querida filha? A que entidade dos Céus confias hoje a tua fé sublimada e fervorosa?…

Como se nos seus grandes olhos vibrasse estranha luz, Célia respondeu calmamente:

— Guardo agora a minha fé em Jesus-Cristo, o Filho de Deus Vivo.

— Declaras-te cristã? — Perguntou o velho avô empalidecendo.

— Só me falta o batismo.

— Mas filha — disse Cneio Lúcius emprestando à voz uma doce inflexão de carinho — o Cristianismo está em contradição a todos os nossos princípios? pois elimina todas as noções religiosas e sociais, basilares da nossa concepção de Estado e de Família. Além disso, não sabes que adotar essa doutrina é caminhar para o sacrifício e para a morte?…

— Vovô, apesar dos vossos longos e criteriosos estudos, acredito que não chegastes a conhecer as tradições de Jesus e a claridade suave dos seus ensinamentos. Se tivésseis o conhecimento integral da sua doutrina, se ouvísseis diretamente aqueles que se saturaram da sua fé, teríeis enriquecido ainda mais o tesouro de bondade e compreensão do vosso espírito.

— Mas não se compreende uma ideia tão pura, a encaminhar seus adeptos para a condenação e para o martírio, há quase um século.

— Entretanto, avozinho, ainda não atentastes, talvez, para a circunstância de partir do mundo essa condenação, ao passo que Jesus prometeu as alegrias do seu Reino a todos os que sofressem na Terra, por amor ao seu nome.

— Desvairas, minha querida, não pode haver divindade maior que o nosso Júpiter, nem pode existir outro reino que ultrapasse o nosso Império. Além disso, o profeta nazareno, ao que sou informado, pregou uma fraternidade impossível e uma humildade que nós outros não poderemos compreender.

Pousou sobre a neta os olhos plácidos, cheios de claridade misteriosa, sentindo, porém, uma comoção mais intensa ao encontrar os dela serenos, piedosos, transparentes de candura indefinível.

— Avozinho — continuou a dizer com o olhar abstrato, como se o espírito voejasse em recordações queridas e longínquas — Jesus-Cristo é o Cordeiro de Deus, que veio arrancar o mundo do erro e do pecado. Porque não lhe compreendermos os divinos ensinamentos se temos fome de amor em nossa alma? Aparentemente sou uma jovem e vós um homem velho, para o mundo; no entanto, sinto que nossos pensamentos são gêmeos na sede de conhecimento espiritual…

Da Terra inteira nos chegam clamores de revolta e gritos de batalha… Misturam-se o fel dos oprimidos e as lágrimas de todos os que padecem na humilhação e no cativeiro!…

Tendes conhecimento de todos esses tormentos insondáveis que campeiam em todo o mundo! Vossos livros falam das angústias indefiníveis do vosso espírito sensível e carinhoso. Esses brados de sofrimento chegam até aos vossos ouvidos, a todos os momentos!

Onde estão os nossos deuses de marfim, que não nos salvam da decadência e da ruína?! Onde Júpiter, que não vem ao cenário do mundo para restabelecer o equilíbrio da maravilhosa balança da justiça divina?! Poderemos aceitar um deus frio, impassível, que se compraz em endossar todas as torpezas dos poderosos contra os mais pobres e os mais desgraçados? Será a Providência do Céu igual à de César, para cujo poder o mais dileto é aquele que lhe traz as mais ricas oferendas? Entretanto, Jesus de Nazaré trouxe ao mundo uma nova esperança. Aos orgulhosos advertiu que todas as vaidades da Terra ficam abandonadas no pórtico de sombras do sepulcro; aos poderosos deu as lições de renúncia aos bens transitórios do mundo, ensinando que as mais belas aquisições são as que se constituem das virtudes morais, imperecíveis valores do Céu; exemplificou, em todos os seus atos de luz indispensáveis à nossa edificação espiritual para Deus Todo-Poderoso, Pai de misericórdia infinita, em nome de quem nos trouxe a sua doutrina de amor, com a palavra de vida e redenção.

Além de tudo, Jesus é a única esperança dos seres desamparados e tristes da Terra, porquanto, de acordo com as suas doces promessas, hão de receber as bem-aventuranças do Céu todos os desventurados no mundo, entre as bênçãos da simplicidade e da paz, na piedade e na prática do bem.

Cneio Lúcius ouvia a neta, em comovido silêncio, sentindo-se tocado de uma inquietação mesclada de encanto, qual a que devesse sentir um filósofo do mundo, que ouvisse as mais ternas revelações da Verdade pela boca de um anjo.

A jovem, por sua vez, dando curso às sagradas inspirações que lhe rociavam a alma, continuou a falar, revolvendo o tesouro de suas lembranças mais gratas ao coração:

— Por muito tempo estivemos em Antipátris, em plena Samaria, junto à Galileia… Ali, a tradição de Jesus ainda está viva em todos os espíritos. Conheci de perto a geração de quantos foram beneficiados pelas suas mãos misericordiosas. E fiquei conhecendo a história dos leprosos, limpos ao toque do seu amor; dos cegos em cujos olhos mortos fluiu uma vibração nova de vida, em virtude da sua palavra carinhosa e soberana; dos pobres de todos os matizes, que se enriqueceram da sua fé e da sua paz espiritual.

Nas margens do lago de suas pregações inesquecíveis, pareceu-me ver ainda o sinal luminoso dos seus passos, quando, alma em prece, rogava ao Mestre de Nazaré as suas bênçãos dulcificantes!…

— Mas Jesus Nazareno não era um perigoso visionário? — perguntou Cneio Lúcius, profundamente surpreendido — Não prometia um outro reino, menosprezando as tradições do nosso Império?

— Vovô — respondeu a donzela sem se perturbar — o Filho de Deus não desejou jamais fundar um reino belicoso e perecível, qual os possuem os povos da Terra. Nem se cansou jamais de esclarecer que o seu reino ainda não é deste mundo, antes ensinou que a sua fundação se destina às almas que desejem viver longe do torvelinho das paixões terrestres.

Revolucionária a palavra que abençoa a todos os aflitos e deserdados da sorte? Que manda perdoar o inimigo setenta vezes sete vezes? Que ensina o culto a Deus com o coração, sem a pompa das vaidades humanas? Que recomenda a humildade como penhor de todas as realizações para o Céu?…

O Evangelho do Cristo, que tive ocasião de ler em fragmentos de pergaminho, nas mãos dos nossos escravos, é um cântico de sublimadas esperanças no caminho das lágrimas da Terra, em marcha, porém, para as glórias sublimes do Infinito.

O respeitável ancião esboçou um sorriso complacente, exclamando bondoso:

— Filha, para nós, a humildade e o desprendimento são dois postulados desconhecidos. Nossas águias simbólicas jamais poderão descer dos seus postos de domínio e nem os nossos costumes são passíveis de se acomodarem ao perdão, como norma de evolução ou de conquista…

Tuas considerações, porém, interessam-me sobremaneira. Mas dize-me: onde hauriste semelhantes conhecimentos? Como pudeste banhar o espírito nessa nova fé, a ponto de argumentares fervorosamente em desfavor das nossas tradições mais antigas?… Conta-me tudo com a mesma sinceridade que sempre reconheci no teu caráter!…

— Primeiramente, vim a conhecer os ensinamentos do Evangelho, ouvindo, curiosamente, as conversas dos escravos de nossa casa…

Após haver pronunciado essas palavras reticenciosas, Célia pareceu meditar gravemente, como se experimentasse uma dificuldade indefinível para atender aos bons desejos do querido avô, naquelas circunstâncias.

Em seguida, como se travasse consigo mesma um diálogo silencioso, entre a razão e o sentimento, ruborizou-se, como receosa de expor toda a verdade.

Cneio Lúcius, todavia, identificou-lhe imediatamente a atitude mental, exclamando:

— Fala, filha! Teu velho avô saberá entender o teu coração.

— Direi. — Respondeu ela ruborizada, dirigindo-lhe os olhos súplices, na sua timidez de menina e moça. — Vovô, será pecado amar?!

— Certo que não. — Respondeu o velhinho, adivinhando um mundo de revelações no inopinado da pergunta.

— E quando se ama a um escravo?

O venerável patrício sentiu constritiva emoção, ao ouvir a penosa revelação da neta adorada; respondeu contudo, sem hesitar:

— Filhinha, estamos muito distantes da sociedade em que a filha de um patrício possa unir seu destino ao de algum dos seus servos.

Todavia — acrescentou depois de ligeira pausa — chegaste a querer tanto a um homem sujeito a tão dolorosas circunstâncias?

Mas, vendo que os olhos da jovem se umedeciam e adivinhando-lhe as comoções penosas e constrangedoras em face daquelas confidências, atraiu-a num beijo, de encontro ao coração, murmurando-lhe ao ouvido em tom carinhoso:

— Não temas os julgamentos do avozinho, inteiramente devotado ao teu bem-estar. Revela-me tudo sem omitir detalhe algum da verdade, por mais dolorosa que ela seja. Saberei compreender a tua alma, acima de tudo. Ainda que as tuas aspirações amorosas e os teus sonhos áureos de menina hajam pousado no ser mais abjeto e desprezível, não te amarei menos por isso, e, confiando em ti mesma, saberei respeitar a tua dor e a tua dedicação!

Confortada com aquelas palavras, que deixavam transparecer generosidade e sinceridade absolutas, Célia prosseguiu:

— Faz dois anos que papai nos levou em uma de suas excursões encantadoras, pelo lago extenso, na região onde possuímos a nossa casa. Além de mim, da mamãe e da Helvídia, ia conosco um jovem escravo adquirido na véspera e o qual, em vista da sua perícia nos remos, auxiliava a tarefa de abrir caminho ao longo das águas.

Ciro, chama-se esse escravo de vinte anos, que a vontade do Céu deliberou fosse parar em nossa casa.

Íamos todos alegres, observando a linha do horizonte e o recorte das nuvens no claro espelho das águas marulhantes.

De vez em quando, Ciro me dirigia o olhar lúcido e calmo, que me produzia uma emoção cada vez mais intensa e indefinível.

Quem poderá explicar esse mistério santo da vida? Dentro desse divino segredo do coração, basta, às vezes, um gesto, uma palavra, um olhar, para que o espírito se algeme a outro para sempre…

Fez uma pausa na exposição de suas reminiscências, e observando-lhe a emotividade a desbordar dos olhos úmidos Cneio Lúcius animou-a:

— Continua, filhinha. Faço questão de ouvir e sentir a tua história toda.

— Nosso passeio — prosseguiu ela com os olhos d’alma mergulhados no painel de suas mais íntimas recordações — corria sereno e sem tropeços, quando, em dado instante, levantou-se uma onda larga, impelida pelo vento forte. Um abalo mais violento, justamente no ponto onde me instalara, quando, absorta nos meus pensamentos, caí de borco no seio espesso das águas…

Ainda ouvi os primeiros gritos de mamãe e da irmãzinha, supondo-me perdida para sempre; mas, quando me debatia, inutilmente, para vencer o peso enorme que me oprimia o peito, sob a massa líquida, senti que dois braços vigorosos me arrancavam do fundo lodoso do lago, trazendo-me à tona, mercê de um desesperado e imenso esforço.

Era Ciro que me salvara da morte, com o seu espírito de sacrifício e lealdade, conquistando com esse ato espontâneo a gratidão sem limites de meu pai, e de todos nós um reconhecimento carinhoso e sincero.

No dia imediato, meu pai concedeu-lhe a liberdade, muito comovido pelos sucessos da véspera.

No instante da sua emancipação, o jovem liberto beijou-me as mãos com os olhos úmidos, na sua gratidão profunda e sincera, conservando-o meu pai em nossa casa, como serviçal prestimoso e livre, quase um amigo, se outras fossem as condições do seu nascimento.

Ciro, porém, não me conquistou somente gratidão e estima a toda prova, como também o meu afeto d’alma, espontâneo e profundo.

Em tardes serenas e claras, sob as árvores do pomar, contou-me a sua história singular, cheia de episódios interessantes e comovedores.

Em tenra idade, vendido a um rico senhor que o conduziu desde logo ao país do Ganges — terra misteriosa e incompreensível para os romanos — ali teve ocasião de conhecer os princípios populares de consoladoras filosofias religiosas.

Nessa região do Oriente, cheia de segredos confortadores, ele aprendeu que a alma não tem apenas uma existência, mas vidas numerosas, mediante as quais adquire novas faculdades, purificando-se ao mesmo tempo dos erros passados, em outros corpos, ou redimindo-se das aflições, no doloroso resgate dos crimes ou desvios do seu passado.

Todavia, após a aquisição desses conhecimentos, foi levado à Palestina,  †  onde se saturou dos ensinos cristãos, tornando-se adepto fervoroso do Messias de Nazaré!…

Então, era de ver-se como a sua palavra se impregnava de inspiração divina e luminosa!…

Apaixonado pelas ideias generosas que trouxera do ambiente religioso da Índia, acerca dos formosos princípios da reencarnação, sabia interpretar com simplicidade e clareza de raciocínio, para mim, muitas passagens evangélicas, algo obscuras para o meu entendimento, qual aquela em que Jesus afirma que “ninguém poderá atingir o reino do Céu sem nascer de novo”!…

Fosse ao crepúsculo langoroso da Palestina, fosse ao luar caricioso das suas noites estreladas, quando descansava das fadigas do trabalho diuturno, falava-me ele das ciências da vida e da morte, das coisas da Terra e do Céu, com os dons divinos da sua inteligência, mantendo o meu espírito suspenso entre as emoções da vida física e as gloriosas esperanças da vida espiritual.

Enlevada pela doce carícia de suas expressões e gestos de ternura, afigurava-se-me ele a alma gêmea do meu destino, reservada por Deus a me estimar e compreender, desde as vidas mais remotas.

Durante um ano a vida nos correu em mar de rosas, porque nos amávamos intensamente. Em nossos idílios calmos, falávamos de Jesus e de suas glórias divinas, e, quando lhe suscitava a possibilidade da nossa união à face deste mundo, Ciro ensinava-me que deveríamos esperar a felicidade no Reino do Senhor, alegando que, na Terra, não era ainda possível um matrimônio feliz, entre um escravo miserável e uma jovem patrícia.

Por vezes, entristecia-me com as suas palavras despidas de esperanças terrenas, mas as suas inspirações eram tão elevadas e tão puras que, num relance, sabia o seu coração levantar o meu para as jornadas da fé, que levam a tudo esperar, não da Terra ou dos homens, mas do Céu e do amor infinito de Deus.

O valoroso ancião tudo ouvia, sem um reproche, embora sua atitude mental se caracterizasse pela mais funda consternação.

Observando que a neta fizera uma pausa na encantadora e triste narrativa, Cneio Lúcius interrogou-a com benevolência:

— Qual a atitude desse rapaz para com teu pai?

— Ciro admirava-lhe a generosidade franca e espontânea, revelando no íntimo a mais santa gratidão pelo seu ato de fraternidade, quando o alforriou para sempre. A todo propósito, ensinava-me a respeitá-lo cada vez mais e a lhe realçar as qualidades mais elevadas; falava-me, constantemente, de suas atitudes generosas, com entusiasmo, admirando-lhe a dedicação ao trabalho e a singular energia.

— E Helvídio nunca soube do teu amor? Perguntou o avô admirado.

— Soube sim. — Respondeu Célia humildemente. — Contar-vos- ei tudo, sem omitir um só detalhe.

Em nossa casa havia um chefe de serviço, que dirigia as atividades de todos os servos da família. Pausanias era um coração amigo do escândalo e nada sincero. Meu pai, atendendo à necessidade de viajar constantemente, conservava-o quase como mandatário de sua vontade, em função dos seus numerosos interesses, e Pausanias, muita vez, abusou dessa confiança generosa para estabelecer a discórdia em nosso lar.

Observando a minha intimidade com o liberto, cujos dotes morais tão fortemente me haviam impressionado o coração, esperou, certa feita, o regresso de meu pai, de uma viagem à Idumeia, envenenando-lhe então o espírito com insinuações caluniosas da minha conduta.

— E que fez Helvídio? — Interrogou o velhinho bruscamente, cortando-lhe a palavra, como se adivinhasse o desenrolar de todas as cenas ocorridas a distância.

— Repreendeu minha mãe, asperamente, inculpando-a e chamou-me à sua presença, de maneira que lhe recebesse as admoestações e conselhos necessários, sem, jamais, permitir que lhe expusesse tudo, com a sinceridade e franqueza com que o faço agora.

— E quanto ao liberto?… — Perguntou Cneio Lúcius ansioso por conhecer o desfecho do caso.

— Mandou pô-lo a ferros, ordenando a Pausanias lhe aplicasse a punição que julgasse necessária e conveniente.

Atado ao tronco Ciro foi açoitado várias vezes, pelo crime de me haver ensinado a amar pelo coração e pelo espírito com o mais carinhoso respeito a todas as tradições do mundo e da família, no altar do devotamento silencioso e do sacrifício espiritual.

No segundo dia de seus indizíveis padecimentos, consegui avistá-lo, apesar da vigilância extrema que todos resolveram exercer sobre os meus passos.

Como nos dias de nossa tranquilidade feliz, Ciro recebeu-me com um sorriso de ventura, acrescentando que eu não deveria alimentar nenhum sentimento de amargor pela decisão de meu pai, considerando que o seu espírito era bom e generoso e que se não podíamos quebrar preconceitos milenários da Terra, nem por isso deveríamos dar guarida a pensamentos de ingratidão.

O sofrimento, porém, — prosseguia a jovem, enxugando as lágrimas de suas reminiscências — era dilacerante para minhalma.

Reconhecendo a situação penosa daquele que polarizava todas as minhas esperanças, cheguei a maldizer sinceramente da minha posição de afortunada. Que me valiam os mimos da família e as prerrogativas do nome que me felicitava, se a alma gêmea do meu destino estava encarcerada em pavorosa noite de sofrimentos?…

Expus-lhe, então, minha tortura íntima e os meus amargurados pensamentos. Ciro ouviu-me com resignação e brandura, respondendo-me, depois, que ambos tínhamos um modelo, um mestre, que não era deste mundo, e que o Salvador nos guardaria no Céu um ninho de ventura, se soubéssemos sofrer com resignação e simplicidade, à maneira dos bem-aventurados de sua palavra sábia e doce. Acrescentou que o Cristo também amara muito e, entretanto, perlustrou os caminhos da incompreensão terrestre, sozinho e abandonado; se éramos vítimas de um preconceito ou de perseguições, tais sofrimentos deviam ser justos, por certo, dados os desvios do nosso passado espiritual, de eras prístinas e acrescentando que Jesus se sacrificara pela Humanidade inteira, embora de coração imaculado como o lírio, e manso como cordeiro.

— Que valem nossos sofrimentos comparados aos d’Ele, no alto da cruz da impiedade e da cegueira humanas? — dizia-me valorosamente. — Célia, minha querida, levanta os olhos para Jesus e caminha!… Quem melhor que nós poderá compreender esse doce mistério do amor pelo sacrifício?… Sabemos que os mais felizes não são os que dominam e gozam neste mundo, mas, os que compreendem os desígnios divinos, praticando-os na vida, ainda que nos pareçam as criaturas mais desprezíveis e mais desventuradas… Além disso, querida, para os que se amam pelos laços sacrossantos da alma, não existem preconceitos nem obstáculos, no espaço e no tempo. Amar-nos-emos, assim, constantemente, esperando a luz do Reino do Senhor. Soa, agora, o penoso instante da separação, mas, aqui ou além, estarás sempre viva em meu peito, porque hei de amar-te toda a vida, como o verme desprezado que recebeu o suave sorriso de uma estrela… Poderão, acaso, separar-se os que caminham com Jesus através das névoas da existência material? Não prometeu o Mestre o seu reino ditoso a quantos sofressem de olhos voltados para o amor infinito do seu coração? Sejamos conformados e tenhamos coragem!… Além destes espinhais, desdobram-se estradas floridas, onde repousaremos um dia sob a luz do Ilimitado. Se sofremos agora, deve haver uma causa justa, oriunda de tenebroso passado, em sucessivas existências terrenas. Mas a vida real não é esta, e sim a que viveremos amanhã, no ilimitado Plano da espiritualidade radiosa!…

— Enquanto as suas expressões consoladoras me retemperavam o ânimo combalido, via-lhe o rosto macerado e os cabelos empastados de copioso suor, que me deixavam entrever um sofrimento físico martirizante e infinito.

Embora a sua palidez extrema, Ciro me sorria e confortava. Sua lição de paciência e fé embalsamou-me o coração e aquela corajosa serenidade deveria constituir, para mim, precioso incitamento à fortaleza moral, em face das provas.

Consolei-o, então, do melhor modo, testemunhando-lhe minha compreensão funda e sincera, quanto ao sentido daquelas palavras de bondade e ensinamento, compreensão que eu guardaria no imo, para sempre.

Prometemo-nos, reciprocamente, a mais absoluta calma e confiança em Jesus, bem como eterna fidelidade neste mundo, para nos unirmos, um dia, nos Céus.

Terminados os rápidos minutos que consegui para falar ao encarcerado, reconstituí as energias interiores da minha fé, enxugando corajosamente as próprias lágrimas.

Procurei minha mãe, implorei sua intercessão afetuosa, de modo a cessarem as cruéis punições que Pausanias impusera ao bem-amado de minhalma, dando-lhe ciência dos quadros penosos que presenciara.

Ela comoveu-se profundamente com a minha narrativa e obteve de meu pai a ordem para que Ciro fosse libertado, sob certas condições, que, apesar de penosas, constituíram para mim um brando alívio!”

— Que condições? — Perguntou Cneio Lúcius admirado, ante o romance comovedor da neta, cujos dezoito anos atestavam a mais profunda intensidade de sofrimento.

— Meu pai acedeu, sob a condição de que não mais avistasse o jovem liberto para qualquer despedida, providenciando, na mesma noite, para que ele fosse, escoltado por dois escravos de confiança, até Cesareia, em cujo porto deveria ser internado numa galera romana, desterrado a critério dos que a comandavam!…

— E chegaste, filha, a alimentar algum rancor contra Helvídio, em face da sua atitude?

— Não. — Respondeu com espontânea sinceridade. — Se tivesse de alimentar qualquer rancor, seria contra o meu próprio destino.

Aliás, Ciro ensinava-me sempre que não podem caminhar para Jesus aqueles que não honrarem pai e mãe, de acordo com os preceitos divinos.

Cneio Lúcius encontrava-se eminentemente surpreendido. Quando Helvídio lhe solicitara a intervenção moral junto da neta, longe estava de presumir tão doloroso romance de amor num coração de dezoito anos, cheio de juventude e de piedade. Seu espírito, que conhecia o vírus destruidor que operava a decadência da sociedade mergulhada num abismo de sombras, extasiava-se com aquela narrativa simples de um amor doce e cristão, que aguardava, pacientemente, o Céu para todas as suas realidades divinas. Nenhuma voz da mocidade ainda lhe falara, assim, com tanta pureza à flor dos lábios.

Admirado e enternecido, descansou a face enrugada na mão direita meio trêmula, entregando-se a uma longa pausa para coordenar ideias.

Ao cabo de alguns minutos, notando que a neta aguardava ansiosa a sua palavra, perguntou com a mesma benevolência:

— Minha filha, esse jovem escravo jamais abusou da tua confiança ou da tua inocência?

Ela fixou nele os olhos serenos, em cujo fulgor cristalino podiam ler-se uma candidez e sinceridade a toda prova, exclamando sem hesitar:

— Nunca! Jamais Ciro permitiu que os meus próprios sentimentos pudessem tisnar-se de qualquer tendência menos digna. Para demonstrar-vos a elevação de seus pensamentos, quero contar-vos que, um dia, quando conversávamos à sombra de velha oliveira, notei que sua mão pousara levemente em meus cabelos, mas, no mesmo instante, como se nossos corações se deixassem levar por outros impulsos, retirou-a, dizendo-me comovido:

— Célia, minha querida, perdoa-me. Não guardemos qualquer emoção que nos faça participar das inquietações do mundo, porque, um dia, nos beijaremos no Céu, onde os clamores da malícia humana não poderão atingir-nos.

Cneio Lúcius contemplou de frente a neta, cuja sinceridade diamantina lhe irradiava dos olhos cândidos e valorosos, exclamando:

— Sim, filha, o homem a que te consagras possui um coração generoso e diferente do que se poderia presumir no peito de um escravo, ao inspirar-te um amor tão distante das concepções da mocidade atual.

E acentuando as palavras, como se quisesse imprimir-lhes nova força, com vistas a si mesmo, continuou após ligeira pausa:

— Além disso, essa nova doutrina, qual a aceitaste, deve conter uma essência profunda, dado o maravilhoso elixir de esperança que destila nas almas sofredoras. Acredito, agora, que Helvídio não sondou bastante o assunto para conhecer a questão nas suas facetas numerosas.

— É verdade, avô — respondeu confortada, como se houvesse encontrado um bálsamo para as suas feridas mais íntimas — meu pai, a princípio, não receava que analisássemos os estudos evangélicos, considerando-os perigosos; somente depois das intrigas de Pausanias, supôs que as doutrinas do Cristo me houvessem acarretado qualquer deficiência mental, em virtude da minha inclinação pelo jovem liberto.

— Sim, teu pai não poderia entender um sentimento dessa natureza, no teu espírito de moça afortunada.

Mas ouve: já que me falaste com uma ponderação que não admite reprovações ou corretivos, quais são as tuas perspectivas de futuro? Sobre tua irmã, teus pais já me falaram dos planos assentados. Daqui a alguns meses, depois de completar sua educação, na atualidade romana, Helvídia esposará Caio Fabrícius, cuja afeição a conduzirá a um dos postos de maior relevo social, de acordo com os nossos méritos familiares. Mas, a teu respeito? Perseverarás, porventura, nesses sentimentos?!…

— Meu avô — respondeu com humildade — Caio Fabrícius com os seus trinta e cinco anos maturados, cheio de delicadeza e generosidade, há-de fazer a ventura de minha irmã, que bem o merece!… Perante Deus, Helvídia fez jus às sagradas alegrias da constituição de um lar e de uma família. Junto do seu coração pulsará um outro, que lhe enfeitará a existência de mimos e ternuras…

Quanto a mim, pressinto que não obterei a felicidade como a sonhamos nesta vida!

Desde a infância, tenho sido triste e amiga da meditação, como se a misericórdia de Jesus estivesse a preparar-me, em todos os ensejos, para não faltar aos meus deveres espirituais no instante oportuno.

E, fixando no ancião o olhar percuciente e calmo, prosseguiu:

— Sinto pesar-me no coração muitos séculos de angústia… Devo ser um Espírito muito culpado, que vem a este mundo de maneira a remir-se de passados tenebrosos!…

Desde a Palestina, minhas noites estão povoadas de sonhos estranhos e comovedores, nos quais ouço vozes carinhosas que me exortam à submissão e ao sacrifício.

Acusada de cristã no seio da família, sinto que todos os meus carinhos ficam sem retribuição e todas as minhas palavras afetuosas morrem sem eco! Dou-me, porém, por imensamente venturosa em acreditar que o vosso coração vibra com o meu, compreendendo-me as intenções e os pensamentos.

Como se lobrigasse melancolicamente o caminho de sombras do porvir, desdobrado ante os olhos espirituais, Célia continuou a falar para o coração enternecido do velho avô que a idolatrava:

— Sim!… nos meus sonhos proféticos, tenho visto uma cruz a que me devo abraçar, com resignação e humildade!… Experimento no coração um peso enorme, avozinho!… Por vezes inúmeras vislumbro à minha frente quadros penosos, que devem radicar nas minhas existências pregressas. Pressinto que nasci neste mundo para resgatar e redimir-me. Quando oro e medito, chegam-me ao raciocínio as ponderações da alma ansiosa!… Não devo aguardar primaveras risonhas nem flores de ilusão, que me fariam esquecer a via dolorosa do Espírito, destinado à redenção; mas, sim, invernias de dor e provas ríspidas, em dias de lutas ásperas, que me hão de reconduzir a Jesus, com a divina claridade da experiência!…

Cneio Lúcius tinha os olhos molhados de lágrimas, ante as palavras comovedoras da neta, que, desde criança, lhe conquistara adoração.

— Filha — exclamou com bondade — não posso compreender tamanho desalento num coração da tua idade. O nome de nossa família não permitirá tal abandono de ti mesma…

— Entretanto, caro avô, não desdenharei a realidade dolorosa do sacrifício, sabendo, de antemão, que a sua taça me está reservada…

— E nada esperas da Terra no que se refere à possível felicidade deste mundo?!…

— A felicidade não pode estar onde a colocamos, com a nossa cegueira terrestre, mas no compreendermos a Vontade Divina, que saberá localizar a ventura para nós, como e quando oportuna. Não temos uma só vida. Teremos muitas. O segredo da alegria reside em nossa realização para Deus, através do Infinito. De etapa em etapa, de experiência em experiência, nossa alma caminhará para as glórias supremas da espiritualidade como se fizéssemos a laboriosa ascensão de uma escada rude e longa… Amar-nos-emos sempre, meu avô, através dessas numerosas existências. Elas serão como anéis na cadeia de nossa união ditosa e indestrutível. Então, mais tarde, vereis que a vossa neta, dentro da sua realidade espiritual, se encontrará convosco, com a mesma compreensão e com o mesmo amor imperecível, na região da felicidade real que a morte nos descerrará, com os seus sepulcros de cinzas dolorosas!…

Atualmente, aos vossos olhos serei, talvez, sempre triste e desventurada; mas, no íntimo, guardo a certeza de que as minhas dores constituem o preço da minha redenção para a luz da Eternidade.

Segundo me falam os augúrios do coração em suas vozes silenciosas e secretas, não terei um lar constituído, especialmente, para a minha ventura nesta vida!… Viverei incompreendida, de coração dilacerado no caminho acerbo das lágrimas remissoras! O sacrifício, porém, será suave, porque, na sua exaltação, sinto que encontrarei a estrada luminosa para o reino da Verdade e do Amor, que Jesus prometeu a todos os corações que confiassem no seu nome e na sua misericórdia bendita!

Os olhos de Célia elevaram-se para o Alto, como se o espírito aguardasse, ali mesmo, junto do velho avô, as graças divinas vislumbradas pela sua crença cheia de luminosidade e de esperança.

Cneio Lúcius, todavia, aconchegou-a de mansinho ao coração, como se o fizesse a uma criança falando-lhe com acentuada ternura:

— Filhinha, estás cansada! Não te justifiques por mais tempo. Conversarei com Helvídio a respeito dos teus mais íntimos pensamentos, elucidarei a tua situação perante o seu conceito.

E chamando Márcia, a filha mais velha, que representava junto da sua velhice confortada o papel de anjo tutelar e carinhoso, o respeitável patrício acentuou:

— Márcia, nossa pequena Célia precisa de tranquilidade e repouso físico. Conduze-a ao teu quarto e fá-la descansar.

A neta beijou-lhe ternamente a fronte, retirando-se com a tia, amável e generosa, que quase a tomou nos braços, conduzindo-a para o interior.

A noite ia já adiantada, enchendo o céu romano de caprichosas fulgurações.

Cneio Lúcius, absorto em profundos cismares, abismou-se num mar de conjeturas.

Seu velho coração estava exausto de palpitar, na incompreensão dos arcanos do mundo. Também fora jovem e também nutrira sonhos. Na juventude longínqua, muita vez aniquilara as aspirações mais nobres e os propósitos mais generosos, ao tumultuoso embate das paixões materializadas e violentas.

Somente as brisas cariciosas da reflexão, na idade madura, lhe haviam sazonado as concepções espirituais, a caminho de uma compreensão cada vez maior da vida e de suas leis profundas.

Desde que se habituara a meditar sinceramente, assombravam-lhe o espírito os fantasmas da dor e os espantosos contrastes dos destinos humanos. Apesar de arraigado às tradições mais puras dos antepassados e não obstante have-las transmitido, com fidelidade e amor, aos descendentes, seu coração não podia aceitar toda a verdade divina encarnada em Júpiter, símbolo antigo que consubstanciava todas as velhas crenças.

Desejoso de propinar uma lição àquela criança, na sua freima educativa, fora o seu espírito que se abalara e comovera ante as novas concepções que lhe provinham dos lábios puros de um anjo. Ele, que se habituara a investigar as causas profundas da dor e a sentir os padecimentos de quantos soluçavam no cativeiro, acabava de receber uma chave maravilhosa para solucionar os caprichosos enigmas do destino. A visão das existências sucessivas, a lei das compensações, as estradas do resgate espiritual pela expiação e pelo sofrimento, eram agora patentes ao seu raciocínio, como soluções providenciais.

Sua cultura dos autores gregos fazia-lhe sentir que o assunto não lhe era totalmente estranho, mas a palavra carinhosa e convincente da neta, testemunhando-lhe a verdade com os seus próprios padecimentos prematuros, abria-lhe à mente nova senda para todas as cogitações em tal sentido.

Reclinado no divã da ara doméstica, seus olhos contemplavam a imagem soberba de Júpiter Státor, talhada em marfim, no centro dos outros deuses de sua família e de sua casa, com o coração tomado de angústia.

Levantou-se e andou pausadamente, em torno dos nichos adornados de luzes e flores.

A imagem de Júpiter já lhe não despertava os mesmos sentimentos de piedosa veneração, como nas noites anteriores.

Ante as revelações suaves e profundas de Célia, experimentava no íntimo a amargurosa suspeita de que todos os deuses dos seus ascendentes respeitáveis estavam rolando dos altares, confundindo-se no torvelinho de desilusões das velhas crenças. De alma opressa, o patrício venerando observava que novas equações filosóficas e religiosas apossavam-se, precipitadamente, do seu coração… Em seguida, receoso e aturdido, Cneio Lúcius escutava no íntimo o doce rumor de uns passos divinos… Parecia-lhe que a figura suave e enérgica do profeta de Nazaré, cuja filosofia de perdão e de amor conhecida através das pregações então correntes, surgia no mundo para estilhaçar todos os ídolos de pedra, a assenhorear-se do coração humano para sempre!…

O respeitável ancião, se era amigo da verdade, não o era menos do sagrado depósito das tradições austeras.

No compartimento consagrado às divindades do lar, sentiu que o ambiente lhe asfixiava o coração e o raciocínio. Instintivamente, abriu uma das amplas janelas mais próximas; por onde o ar da noite penetrou em rajadas, refrescando-lhe a fronte atormentada.

Debruçou-se para contemplar a cidade quase adormecida. Sua conversa com a neta pareceu-lhe haver durado um tempo indefinido, tão grande fora o efeito das suas asserções profundas o empolgantes…

De olhos úmidos, contemplou o curso do Tibre em toda a paisagem que o olhar abrangia, descasando o pensamento abatido nos efeitos de luz que a claridade lunar operava caprichosamente sobre as águas.

Por quantas horas contemplou as constelações fulgurantes, sondando os mistérios divinos do firmamento?

Somente muito depois, aos albores da madrugada, a voz cariciosa de Márcia veio despertá-lo de suas cogitações graves e intensas, convidando-o a recolher-se.

Cneio Lúcius dirigiu-se, então, para o quarto, a passos vagarosos, a fronte vincada de angústia, olhos fundos e tristes, como alguém que houvesse chorado amargamente.


Emmanuel



Fonte: Bíblia do Caminho † Testamento Xavieriano



AUDIOLIVRO:

Radionovela Cinquenta Anos Depois - Chico Xavier/Emmanuel

  • Minissérie - 50 Anos Depois (parte 1) - Capítulos 1 ao 9 
  • Minissérie - 50 Anos Depois (parte 2) - Capítulos 10 ao 35 

Tobias Neuhaus 


 


 


A radionovela 50 Anos Depois, romance do Espírito Emmanuel, psicografado pro Chico Xavier, é uma adaptação do livro de mesmo título. Se você se comoveu com a saga de Públio Lentulus em Há 2000 anos, renove seu estoque de emoções: cinqüenta anos depois do terremoto de Pompéia, quando o impiedoso e arrependido senador se desprendeu da vida material, em busca do perdão supremo para as faltas que aqui cometeu, iremos encontrá-lo novamente, porém, sob os trajes humildes de Nestório, escravo de personalidade iluminada, um Ser Humano especial, que fará você reconhecer em cada traço de seus sofrimentos terrestres o resgate de um passado de injustiças. Ouça e vivencie a versão dramatizada do livro 50 Anos Depois com elenco de vozes, trilha sonora e efeitos sonoros.

Federação Espírita Brasileira