Allan Kardec - Revista Espírita - Ano XI, Outubro de 1868
Belo exemplo de caridade evangélica
Um ato de caridade realizado pelo Dr. Ginet, cantoneiro de Saint-Julie-sousMontmelas, é contado pelo Echo de Fourvière:
No dia 1º de janeiro, ao cair da noite, achava-se agachada na praça de SaintJulien uma mendiga de profissão, coberta de chagas infectas, vestida de velhos trapos cheios de bichos, e, além disto, tão má que todos a temiam; ela não retribuía o bem que faziam senão por socos e injúrias. Tomada de um enfraquecimento súbito, teria sucumbido na calçada, não fosse a caridade do nosso cantoneiro que, superando a repugnância, tomou-a nos braços e a levou para sua casa.
Esse pobre homem tem apenas um alojamento muito apertado para si, para a mulher doente e para seus três filhos pequenos. Ele não tem outro recurso senão o seu módico salário. Ele pôs a velha mendiga sobre um pouco de palha dada por um vizinho e dela cuidou toda a noite, procurando aquecê-la.
Ao romper do dia, essa mulher, que enfraquecia cada vez mais, lhe disse: “Tenho dinheiro comigo; eu vo-lo dou pelos vossos cuidados.” E acrescentou: “O senhor cura...” e expirou. Sem se preocupar com o dinheiro, o cantoneiro foi procurar o cura, mas era tarde demais. A seguir apressou-se em avisar os parentes, que moram numa paróquia vizinha e que estão em situação folgada. Eles chegam e a primeira pergunta é esta: “Minha irmã tinha dinheiro consigo. Onde está?” O cantoneiro responde: “Ela me disse, mas eu não me inquietei.” Eles procuram e encontram, realmente, mais de 400 francos num dos bolsos.
Acabando a sua obra, o caridoso operário, com o auxílio de uma vizinha, enterrou a pobre morta. Algumas pessoas eram de opinião que na noite seguinte ele deveria colocar o caixão num telheiro vizinho que estava fechado. “Não, disse ele, esta mulher não é um cão, mas uma cristã.” E a velou toda a noite em sua casa, com sua lâmpada acesa.
Às pessoas que lhe exprimiam admiração e aconselhavam a pedir uma recompensa, respondia: “Oh! Não foi o interesse que me levou a agir. Dar-me-ão o que quiserem, mas eu nada pedirei. Na posição em que estou, posso encontrar-me na mesma situação, e ficaria muito feliz se tivessem piedade de mim.”
─ Que relação tem isto com o Espiritismo? perguntaria um incrédulo.
─ É que a caridade evangélica, tal qual a recomendou o Cristo, sendo uma lei do Espiritismo, todo ato realmente caridoso é um ato espírita, e a atitude desse homem é a aplicação da lei de caridade, no que ela tem de mais puro e mais sublime, porque ele fez o bem, não só sem esperança de retribuição, sem pensar em seus encargos pessoais, mas quase com a certeza de ser pago com a ingratidão, contentando-se em dizer que, em semelhante caso, quereria que tivessem feito o mesmo por ele.
─ Esse homem era espírita?
─ Ignoramo-lo; mas não é provável. Em todo caso, se não o era pela letra, era-o pelo espírito.
─ Se não era espírita, então não foi o Espiritismo que o levou a esta ação?
─ Seguramente.
─ Então por que o Espiritismo sente mérito nisto?
─ O Espiritismo não reivindica em seu proveito a ação desse homem, mas se ufana de professar os princípios que o levaram a praticá-la, sem jamais ter tido a pretensão de possuir o privilégio de inspirar os bons sentimentos. Ele reverencia o bem em qualquer parte onde se encontre. E quando seus próprios adversários o praticam, ele os oferece como exemplo aos seus adeptos.
É desagradável que os jornais tenham menos solicitude em reproduzir as boas ações, em geral, do que os crimes e os escândalos. Se há um fato que testemunha a perversidade humana, pode-se estar certo de que será repetido linha por linha, como atrativo à curiosidade dos leitores. O exemplo é contagioso. Por que não pôr aos olhos das massas o exemplo do bem de preferência ao do mal? Há nisso uma grande questão de moralidade pública, de que trataremos mais tarde, com todos os desenvolvimentos que ela comporta.
Allan Kardec
Fonte: Kardecpedia
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