segunda-feira, 27 de julho de 2020

Emmanuel - Livro Renúncia - Chico Xavier - Cap. 2 - Anseios da mocidade



Emmanuel - Livro Renúncia - Chico Xavier - Cap. 2


Anseios da mocidade


No dia 7 de junho de 1662, Paris em peso não comentava outro assunto senão as esplêndidas festas populares do Carrousel, que Luís XIV havia improvisado em frente às Tulherias. Dizia-se que o rei estava perdidamente apaixonado por Louise de La Vallière, e a festividade não obedecera a outro motivo senão homenagear a favorita, não obstante a reserva com que ambos se entregavam ao culto das relações afetivas.

As duas noites precedentes haviam assinalado ruidosas alegrias populares e animadas reuniões elegantes nos salões mais ricos da Corte. Grande massa de forasteiros invadia os hotéis, principalmente as famílias abastadas procedentes do Norte e das cidades vizinhas, atraídas pelo espetáculo inédito do grande feito.

Dizia-se que o soberano mostrava-se agora mais acessível e generoso. Paris estava farta de guerras externas e recordava-se, com temor, das gigantescas lutas internas pelas atividades da Fronda. Terminara o período de influência do Cardeal Mazarini e o espírito popular banhava-se nos boatos de elevadas perspectivas e supremas esperanças. A cidade inteira aguardava, ansiosamente, largos benefícios públicos e novas instituições.

Na tarde desse dia, compartilhando a alegria geral, dois jovens passeavam de carro, nas imediações da Porta de São Dinis, entre os enormes movimentos da antiga Ville, comentando as deliciosas emoções da véspera.

A viatura, muito leve, seguia harmoniosamente o trote de soberbo cavalo normando, cujas rédeas eram manejadas com mestria por Cirilo Davenport, tendo ao lado a jovem Susana Duchesne, sua prima, graciosamente trajada ao sabor da época. O pequeno veículo tinha o interior ornado de soberbas azáleas, colhidas pela jovem num jardim de Montmartre. O jovem par havia empreendido a excursão desde o meio-dia. Susana visitara duas famílias importantes, de suas relações, buscando rever antigas amizades. Entregara-se às mais alegres expansões junto do primo, que, embora correspondesse fraternalmente às suas manifestações afetivas, denotava agora preocupação inabitual, enquanto a jovem tagarelava, obedecendo aos costumes e caprichos de futilidade de todos os tempos:

— Não concordei com os adornos escolhidos para os salões de Madame de Choisy. A festa perdeu muito com aqueles enfeites coloridos e esvoaçantes.

— Não reparei bem — respondeu Cirilo, mergulhado noutras reflexões.

— Fiquei cansadíssima de tanto ouvir confabulações atinentes à vida alheia. Sou avessa à maledicência, mas, como sempre acontece, não podemos ficar indiferentes aos eventos do ambiente social. Por isso mesmo, estou ansiosa de regressar à nossa paz de Blois. 

E como o primo não respondesse, muito vivaz e palradora, continuou:

— Já sabes como se processou a aventura amorosa do rei?

— Não.

— Luís n não havia destacado a humilde descendente dos Le Blanc entre as mulheres que frequentam a Corte, mas o fato é que começou a dispensar muitas simpatias a Henriqueta n Iniciaram-se os idílios carinhosos, mas a cunhada tratou de salvaguardar, quanto antes, a sua reputação de honestidade e começou a encontrar-se com o rei em companhia de Mademoiselle de La Vallière, que era, então, do grupo de damas do seu séquito. Desse modo, afastava qualquer suspeita direta. Contra qualquer impressão menos digna, poder-se-ia dizer que Luís lhe frequentava o ambiente doméstico, não com o propósito de avistá-la, mas para encontrar-se com a pobre menina. Foi nesse jogo que apareceu a mortificante situação que Henriqueta não poderia esperar.

Depois de breve gargalhada irônica, Susana rematava o comentário impiedoso:

— Luís apaixonou-se desvairadamente e temos agora o escândalo, que constitui o prato do dia para a voracidade das más línguas. Não conheces todos esses detalhes, porventura?

— Ah! — exclamou o jovem Davenport revelando propósito de modificar os rumos da conversação — o que não ignoro é que o soberano é casado com a rainha.

— Ora! ora! — a pobre dona do cetro é apenas uma vítima da política espanhola.

Observando, todavia, que o rapaz se calava, Susana timbrou outra tecla das críticas sociais para chamar-lhe a atenção, dizendo:

— Reparaste a Henriqueta lá no baile? As suas convidadas estavam escandalosamente vestidas…

O moço fez um gesto de enfado e replicou:

— Quase não me detive no exame dos trajes.

— Entretanto dançaste todos os números.

Renovando a apreciação acerada, prosseguiu:

— Henriqueta coloca em dificuldade a todos nós que temos alguma ligação com as ilhas. O que posso afirmar é que seu temperamento seria outro, se tivesse alguns princípios da educação irlandesa.

— Mas a pobre princesa muito sofreu na infância — atalhou Cirilo advogando-lhe a causa.

— Essa circunstância, contudo, não deveria ser uma razão para conduzi-la a tantas leviandades. Julgo que o sofrimento deve servir para temperar o caráter de outro modo…

— Todavia — observou o rapaz —, ela é atualmente casada. A análise de suas atitudes deve ser tarefa privativa do marido.

— Ora essa! E supões, acaso, que Monsieur Filipe n está aparelhado para impor-lhe a educação espiritual de que precisa?

— Quem sabe?

Esta resposta, dada em tom de profundo desinteresse, desautorizava qualquer discussão nesse particular. Reconhecendo-o, Susana fez longa pausa e absteve-se de novos comentários.

A elegante viatura voltou do seu longo trajeto, dirigiu-se para a rua Barillerie, na Ilha, onde estacionou por minutos à frente de uma casa comercial, e depois tomou rumo da antiga rua de São Dinis, levada ao trote do magnífico animal.

Decorrido algum tempo, a moça retomou a palavra, dando conta da sua inquietação feminina:

— Não desejarias ir conosco, mais logo, ao Teatro de Petit-Bourbon? 

— Não, não; hoje não me sinto disposto a aderir ao programa do Sr. Molière. 

A carruagem aproximara-se da velha ponte de São Miguel, sobre um braço do Sena.

O crepúsculo ia um tanto adiantado, mas estava embalsamado de perfumes primaveris. Ventos suaves farfalhavam a copa florida de duas grandes árvores próximas. Impressionado, talvez, com a sugestiva beleza da tarde que se vestia no imenso anil do céu, o jovem Davenport fitou a companheira com expressão diferente, e falou:

— Susana, tenho a alma de tal modo repleta de sensações ignoradas para mim, que muito desejaria abrir o coração a quem me compreendesse. Não quero, porém, comentar os assuntos da Corte nem do Teatro. Necessito de palestra espiritual, que traduza o que sinto, encontrando quem me entenda. Que me interessa o desvio do rei ou a comédia que conquista a atenção dos mais fúteis?

A companheira ruborizou-se. Apertou, disfarçadamente o seio, onde o coração batia descompassado. Há quanto tempo esperava aquele minuto adorável, que lhe permitisse examinar com Cirilo a intensidade do seu afeto? De muito cedo habituara-se a admirá-lo como a personagem dos seus sonhos de mulher, e não era segredo, em família, o projeto de uma união pelos elos conjugais. Ambos haviam nascido na Irlanda, mas sua mãe, que era francesa, obrigara o genitor a transferir-se para o país de origem, havia muitos anos. Susana, porém, nunca perdera o contato com a terra do seu berço. Não obstante as dificuldades naturais da época, visitava, periodicamente, a terra que a vira nascer.

Acabava de atingir os vinte anos, enquanto Cirilo orçava pelos vinte e cinco. Não seria, então, o momento azado para realizar o sublime ideal? É verdade que sempre aguardara, ansiosamente, do primo as primeiras declarações de amor, a fim de entreter, com mais segura esperança, os seus deliciosos projetos de ventura. Cirilo, todavia, jamais se manifestara a tal respeito. Ela sabia contudo, justificar-lhe as reservas expansivas, pelas singularidades de temperamento que o caracterizavam. Embora jovial e sincero, enérgico e impulsivo, era muito discreto nas questões da palavra. Raramente prometia, porque, após o compromisso, materializava as declarações fosse como fosse, pelo mal ou pelo bem.

Susana passou em revista todas as conjeturas e julgou-se dona de uma situação favorável. Aliás, estava certa de que o primo, após desligar-se dos serviços que o retinham na Sorbona, demandaria a Irlanda, onde a família o aguardava cheia de esperança, para os enormes trabalhos da propriedade rural, de que seus pais e irmãos se mantinham.

De olhos fulgurantes, a jovem respondeu entre satisfeita e comovida:

— Acaso poderias supor que te não compreendo? Fala, Cirilo!… Não desejarias gozar um pouco desta amenidade vespertina? Paremos o carro. Sentemo-nos ali perto da ponte, alguns minutos, vendo deslizar as águas mansas…

O rapaz obedeceu sorridente e satisfeito. Abrigou a carruagem num posto próximo e, dando o braço à companheira graciosa, dirigiu-se para os bancos de pedra que se localizavam nas extremidades da construção muito antiga. Tinha os olhos escuros mergulhados numa onda de paixão dominadora.

— Susana — disse tomando-lhe a destra em atitude fraternal, como quem busca um refúgio —, nunca experimentei no coração o que sinto agora. Minha alma está cheia de sonhos e esperanças sublimes. Ah! o amor é o generoso vinho da vida!…

A jovem fizera-se muito pálida. Deveria ser aquele o minuto decisivo do seu destino. Certamente, Cirilo lhe revelaria os propósitos mais íntimos, falaria do sonho dourado de suas esperanças de moça. Casar-se-iam muito breve… Buscariam a felicidade, abandonariam a França pela Irlanda, a fim de cultivarem a ventura conjugal no âmbito de cariciosas tradições familiares. Mergulhada em formosas visões, seus olhos brilhavam de intenso júbilo, enquanto o jovem Davenport continuava:

— Edificar um ninho doméstico, ter filhos que nos acariciem e garantam a ventura, não será o ideal mais nobre da vida?

Susana Duchesne apertou-lhe a mão com mais carinho, desejou, com ânsia, enlaçar-lhe o busto no impulso de sua afeição desvairada, beijar-lhe repetidamente a formosa cabeleira. Sentia-se estonteada de alegria e de esperança, mas ainda não havia acordado de sua visão fantástica, quando ele perguntou, fraternalmente, depois de uma pausa mais longa:

— No entanto, dar-se-á que ela me corresponda com igual paixão?

Ela? A pergunta vibrou estranhamente aos ouvidos da jovem, que se esforçou por dominar as primeiras impressões de assombro. Outra mulher, então disputava com ela o mesmo sonho de amor? Monstruoso ciúme corrompeu-lhe as emoções mais gratas. O coração fechara-se-lhe de súbito. Não suportaria semelhante afronta. Lutaria pela posse de Cirilo, até ao crime ou até à morte. Para isso, seguira-lhe os passos como sentinela fiel, desde a infância, e, aos seus olhos, o título de esposa deveria pertencer-lhe como patrimônio inconteste. Verificando, contudo, que o primo observava com estranheza a demora da resposta, cobrou alento em situação tão difícil e replicou:

Ela? Ignoro a quem te referes, querido. Explica melhor para que te possa compreender.

— Madalena Vilamil — esclareceu o rapaz, arroubadamente.

Ah! agora tinha na modulação daquelas duas palavras a chave da questão que se lhe figurava aos olhos um profundo enigma. Identificara a grande e natural inimiga. Não lhe perdoaria nunca. Subjugada por enorme desespero íntimo, recordava que fora ela própria quem apresentara ao primo a jovem amiga, em vésperas das famosas festividades parisienses. Notou que ambos haviam demonstrado recíproco interesse; que, desde então, palestravam animadamente em todas as oportunidades e, contudo, jamais pudera imaginar a possibilidade de uma aproximação afetiva de tamanhas consequências. Somente aí percebeu o interesse de Cirilo pela companhia de Madalena, nos bailados da véspera. Tinha a impressão de ainda a estar vendo com aquela atraente fantasia espanhola, que chamara a atenção de pessoas eminentes da Corte. No quadro da imaginação superexcitada, não mais a considerava associada fraternal de passeios e diversões, mas adversária perigosa que urgia afastar do caminho… 

Conhecera-a numa visita que Madalena fizera, em companhia do pai, velho fidalgo espanhol arruinado, ao formoso e tradicional palácio da antiga Corte francesa, em Blois. Simpatizara com os seus dotes de inteligência e com as maneiras simples que lhe assinalavam as atitudes; e seu genitor, Jaques Duchesne Davenport, manifestara pela jovem espontânea admiração e sincera amizade. Não somente pelas afinidades naturais, mas também no intuito de agradar o coração paterno, dedicado e carinhoso, Susana afeiçoara-se à Madalena com singular interesse. Ela e sua irmã Carolina, nas constantes viagens a Paris, visitavam-na frequentemente em sua residência de Santo Honorato, e sentiam prazer na sua companhia alegre e inteligente. Desde aquele instante, porém, a moça Vilamil estava condenada à sua aversão cruel. A amizade nobre convertia-se em ódio instantâneo e perigoso. É verdade que Madalena não podia saber das cogitações do seu íntimo, mas Susana não conseguia deter a onda de pensamentos ultrizes que, num instante, lhe invadiam a mente, apossando-se impiedosamente do seu coração. Não toleraria tal preferência do primo, mesmo porque lhe doía na alma como insulto feroz.

— Recordas, acaso, daquela derradeira melodia aragonesa que Mademoiselle Vilamil executou ao cravo com tanta graça? — perguntou o jovem, alimentando as próprias reminiscências.

Excessivamente pálida, esforçando-se por disfarçar a intensa emoção que a dominava, a moça fixou em Cirilo o olhar enérgico, orgulhoso e replicou:

— Mas isso é infantilidade da tua parte. Francamente, sempre considerei refinado o teu senso artístico; Madalena, de maneira alguma, pode corresponder às exigências do teu nome e da tua posição.

— Exigências do nome? — respondeu o rapaz mostrando-se agitado. Julgas, então, que me case em obediência aos outros, em desacordo com as minhas inclinações?

— Não é bem isso — retrucou a moça compreendendo a firmeza de resolução que defrontava —; não quero dizer que ela desmereça inclinações afetuosas; mas não concordo que seja a criatura indicada a tomar-te a mão de esposo.

— Por quê? — perguntou o jovem, mal-humorado.

Desejarias, porventura, que te aprovassem o casamento com uma pobretona espanhola, nascida nos confins de Granada? 

— E se alguém afirmasse que somos irlandeses dos confins de Belfast, seríamos por isso menos respeitáveis?

Susana mordeu os lábios, revelando cólera profunda e respondeu:

— Cirilo, onde colocas o altar sagrado da família? Que há para te mostrares tão desinteressado em face de nossas tradições familiares? Apresentei-te Madalena, há poucos dias, mas não podia acreditar se engendrassem em teu espírito laços tão perigosos e detestáveis. Adotei-a como amiga íntima, em vista da profunda simpatia do papai, a quem nunca cessarei de agradar, em obediência ao amor e gratidão que lhe consagro. Nossas afinidades, no entanto, não vão além disso, porquanto não lhe reconheço qualquer destaque justo para o quadro de nossas relações. Como afirmei, trata-se de uma predileção de papai e…

Mas não terminou, porque o rapaz, emitindo um olhar mais duro, cortou-lhe a palavra nestes termos:

— Não acuses, Susana. Sempre atendi a meu tio, antes que a meus próprios pais. Conheço-lhe o bom senso e não posso permitir…

Desta vez, no entanto, foi a jovem que, ponderando a inconveniência da discussão acalorada, aproveitou-se da pausa espontânea, sentenciando contrafeita:

— Ora, Cirilo, acalma-te. A irritação impede qualquer entendimento mútuo.

Fixou-o com disfarçada angústia. Agora que sentia tão profundamente ameaçados os seus sonhos de felicidade, achava-o mais belo que nunca. Em outras ocasiões, conservava a esperança, mas não experimentava tantos zelos. Não era Cirilo o seu ideal? Que poderosa atração a retinha encarcerada no seu sonho de ventura, sem energias para renunciar a favor da outra que lhe ocupava o coração sincero? Sentiu que forte emoção lhe afetava as fibras mais íntimas e com dificuldade afogava o pranto no peito opresso, receando chorar diante do primo engolfado em graves pensamentos.

— Cirilo — disse com entono mais delicado na voz —, não te agastes comigo. Quero auxiliar-te fraternalmente.

O rapaz comoveu-se com a mudança súbita e respondeu:

— Sim, conto com a tua boa vontade de sempre. Ajuda-me a refletir. Necessito orientar e fortalecer meu espírito.

— Não posso dizer que esteja absolutamente certa nas minhas apreciações — exclamou fundamente modificada em sua primeira atitude —, mas precisarás refletir com mais calma. O pai de Madalena é um nobre espanhol arruinado, que se incompatibilizou com os elementos mais influentes da Corte de França. Aqui está, em Paris, há muito tempo, em sérias dificuldades financeiras, não obstante ter vindo no séquito da rainha.

— Já conheço D. Inácio Ortegas Vilamil — esclareceu o rapaz, solícito —; estivemos juntos no Carrousel anteontem, à noite. Não duvido que se trate de um homem pobre, mas é bastante simpático e portador de temperamento expansivo, que me agradou muitíssimo.

— Mas é um fidalgo sem fortuna, cuja situação é francamente condenável, pois perdeu-a nas dissipações da vaidade e do jogo, segundo consta em nossas rodas mais íntimas.

— Quanto a isso, precisamos ampliar nossa compreensão da vida — obtemperou o rapaz convictamente. — Meu pai, como não ignoras, não fez excessos nem arriscou dinheiro em aventuras; entretanto, conta hoje com reduzidíssimos recursos, devido a perseguições religiosas desencadeadas na Irlanda.

— Susana compreendeu que toda argumentação naquele momento lhe desfavorecia as pretensões e propósitos mais ardentes.

— D. Inácio — acrescentou com velada ironia — não poderia nem mesmo cogitar da concessão de um dote à filha…

— Nunca me casarei visando a um dote, Susana!…

A moça escondia a muito custo o seu rancor, mas ponderou ainda:

— Pois trata-se de questão muito importante, e talvez venha a ser por isso mesmo que Madalena recuse aceder aos teus caprichos juvenis…

— Como assim? — interrogou, impressionado pela maneira como foram pronunciadas tais palavras.

— Talvez ignores — disse ela resoluta, como quem guarda os trunfos do jogo para o fim — que a tua eleita está prometida, por decisão dos pais, ao seu primo Antero de Oviedo Vilamil, que cresceu a seu lado, como irmão.

Desta vez foi Cirilo a esboçar atitude de entranhado assombro. Sem poder dominar-se, profundo rancor se apossou dele. O ciúme que devastava a jovem Duchesne apuava-lhe agora o coração.

— Será crível? — perguntou lívido.

— Sim — disse a moça, gozando com a sua amargura íntima —, D. Inácio, dizem, há quase dois anos vive à custa do rapaz, que não se entregou a tal sacrifício sem um propósito deliberado. É sabido que a prima constitui o seu sonho de amor, não obstante Madalena pareça insensível a esse afeto. O fato incontestável, todavia, é que a família Vilamil está totalmente empenhada nesse débito de graves proporções.

Cirilo Davenport submergiu-se num mar de reflexões profundas. Não cederia a qualquer obstáculo. Madalena lhe tocara o coração como nenhuma outra mulher. Guardava nos ouvidos o som das suas últimas palavras. Aspirava ainda o perfume da sua mão muito leve, entre as harmoniosas vibrações do último bailado. Ouvia, enlevado, as músicas aragonesas que ela havia dedilhado no cravo, ainda na véspera. Seus sentimentos mergulhavam na mesma ansiedade experimentada ao ouvi-la falar da Espanha distante. Os temas castelhanos jamais o haviam preocupado a qualquer tempo e, no entanto, aquela afeição imensa despertava-lhe interesses novos, abrasava-lhe a alma, qual vulcão ardente. Estava convicto de que Madalena fora igualmente sensível ao seu amor. Apertara-lhe a mão, apaixonadamente, nos bailados. Seus olhos fulgiam de sublime afeto. Onde estava ele, que não houvesse de lutar com o rival até nos confins da Terra? Era indispensável afastar Antero de Oviedo a qualquer preço. Sua presença tornava-se indesejável no caminho. De olhos fixos no espaço, desvairado pela emoção que o dominava, o jovem Davenport parecia não mais ver a prima ao lado, nem mesmo a beleza silenciosa do crepúsculo, que se despedia com o fulgir das primeiras estrelas.

— Não desistirei! — bradou em voz alta, como se dialogasse com uma sombra importuna.

Ouvindo-lhe a exclamação estranha e inesperada, Susana experimentou intenso choque. Aquela sentença, em voz estridente, assustou-a. Tomou-se de justificado receio e exclamou:

— Vamos, Cirilo. É noite quase fechada e esperam-me para o espetáculos.

O moço Davenport, seguido da jovem que lhe acompanhava o profundo silêncio, procurou o veículo, tomou as rédeas quase maquinalmente e deu o sinal de partir. Susana atirou ao solo algumas azáleas murchas, em atitude de enfado e, enquanto ambos se engolfavam em penoso mutismo, a viatura rodou celeremente na direção de uma casa residencial de nobre aspecto, em frente da ponte do Câmbio, onde a prima se hospedava.

Em vão, a jovem Duchesne insistiu para que Cirilo fosse ao teatro; debalde rogou que a acompanhasse até ao interior doméstico. Ele recusou todos os convites afetuosos e, imprimindo ao carro nova direção, seguiu a galope para o seu hotel em São Germano.

De quando em quando o chicote estalava no dorso do belo animal que, então, parecia sofrer a mesma inquietação do dono.

Depois de recolher o veículo a enorme galpão destinado às carruagens da época e conduzir o cavalo à estrebaria próxima, Cirilo Davenport, sufocado por angustiosos pensamentos, saiu à rua, ansioso por banhar a fronte atormentada nos carinhosos ventos da noite. Atravessou ruas e praças engolfado em vastas meditações, alheio ao grande movimento de pedestres e viaturas ao longo dos caminhos. Não se deteve senão no mundo íntimo, inquieto por conchavar e resolver os problemas torturantes.

Chegara à conclusão de que a existência se lhe transformaria em breve tempo. Não podia suportar, sem graves danos, a continuidade das estroinices da juventude, e o conhecimento de Mademoiselle Vilamil induzia-o a pensar seriamente no matrimônio. No entanto, como encontrar a equação justa? Depois de certo período de estudos em Paris, prosseguia em serviço na Sorbona, onde a sua remuneração era regular, sem contudo permitir quaisquer perspectivas de futuro financeiro. Seu pai, Samuel Davenport, chamara-o mais de uma vez, aguardando-lhe a presença na Irlanda do norte, onde possuía valiosa propriedade rural, apesar dos golpes  sofridos. Como resolver a situação? Deveria casar e partir para as ilhas, ou visitar antes o lar paterno, para consorciar-se depois? Na primeira hipótese, sua atitude poderia ocasionar sérios atritos com a família; na segunda, o intruso Antero poderia sair vencedor e anular-lhe os planos de felicidade. Recordou a simpática figura do tio, que sempre lhe entendera e amparara o coração, nos momentos difíceis, e considerou a possibilidade de ir a Blois, a fim de ouvi-lo. Concluiu consigo mesmo que, tendo combinado com Madalena um encontro junto à igreja de Nossa Senhora, na noite seguinte, faria a viagem logo após o novo entendimento com a jovem, que lhe enchera o coração de sonhos miríficos.

Após atravessar imenso labirinto de reflexões, voltou ao hotel, muito depois da meia noite, recolhendo-se ao quarto extremamente nervoso, só conseguindo dormir alta madrugada.

No dia seguinte, atirou-se ao trabalho comum, de alma inquieta, pensamento voltado para a noite, quando teria o júbilo de rever a bem-amada e renovar as doces emoções do espírito.

Muito antes da hora marcada, Cirilo postava-se à frente da majestosa catedral, andando de um lado para outro. A fim de evitar a curiosidade de transeuntes audaciosos, penetrou no santuário, em cujo interior magnífico permaneceu por instantes. Seus olhos eram indiferentes aos tesouros artísticos que o cercavam. Os capitéis preciosos, os arabescos dourados, os baixos-relevos, as estátuas maravilhosas, diluíam-se numa atmosfera de sonho. Os sacerdotes e os nichos, as flores e os objetos do culto não lhe falavam ao coração. Quando surgiam no alto os primeiros astros da noite, Davenport regressou ao adro, passeando nervosamente ao lado dos belos degraus que davam acesso ao interior do templo, e que o progresso de Paris fez desaparecessem com a elevação do solo.

Entre aflições singulares, observou, atento, uma carruagem que parou nas proximidades, dela saltando três galantes criaturas em demanda ao santuário.

Madalena Vilamil, com efeito, junto de Colete e Cecília, duas amigas da juventude chegara com o pretexto de participar dos ofícios religiosos da noite, mas, em breves minutos, favorecida pela conivência das companheiras, insulou-se da romaria devocional, em companhia do jovem Davenport, ansiosos ambos pela permuta de impressões afetivas.

Enquanto a viatura permanecia à espera, e ciente de que as amigas se entregavam às práticas religiosas, Mademoiselle Vilamil tomava prazerosa o braço que o rapaz lhe oferecia, afastando-se alguns passos ao longo da praça extensa que se rodeava, então, de casas velhas.

Cirilo sentia-se o mais ditoso dos homens. Por surpreendente e misterioso mecanismo que seu espírito não conseguia compreender, resumia, agora, na jovem todos os sonhos centrais da existência. Falou-lhe, com desembaraço, dos seus ideais mais íntimos, revelando-lhe profundas impressões de sua alma ardente. Ele próprio estava surpreendido com o manancial de espontânea confiança que lhe brotava do espírito pouco afeito a grandes expansões.

Madalena Vilamil, em identidade de circunstâncias, tocava-se de sublimes emoções. Não era temperamento que confiasse sentimentos íntimos, ao primeiro sinal de afeição. Sua mãe, descendente de nobres famílias no sul da França, e seu pai, antigo fidalgo espanhol, haviam educado a filha única habituando-a a rigoroso critério no capítulo da vida social. Pela primeira vez a jovem atendia a um apelo afetivo, em lugar público, consagrado, no seu modo de entender, às exteriorizações das criaturas vulgares e sem títulos de maior nobreza moral. O convite de Cirilo fora um tanto chocante para a sua vaidade feminina; entretanto, obedecendo a indefiníveis anseios do coração, acedera em palestrar com o jovem num recanto da via pública, desejando um entendimento recíproco, longe da multidão maliciosa. Além disso, sentia-se receosa de recebe-lo na própria casa, dado o rigorismo da genitora, há muito enferma, e às ruidosas expansões do pai, desligado de qualquer encargo nas esferas políticas e por isso mesmo sempre pródigo de afirmativas chocantes para os costumes franceses.

Mademoiselle Vilamil julgou imprescindível explicar ao jovem Davenport suas dificuldades domésticas, antes que o rapaz pudesse agasalhar conjeturas menos dignas a respeito dos pais, a quem amava de todo o coração. Somente por isso, e incapaz de resistir ao suave magnetismo que sobre ela exercia o moço irlandês, encontrava-se ali sob o céu estrelado às primeiras horas da noite, trocando confidências.

Cirilo começou por comentar a beleza das melodias que ela arrancara do cravo, toda sentimento e vibração, e Madalena relatava ao jovem, muito admirado, os encantadores costumes da sua terra natal, assinalando as palavras com as interessantes características de quem se não achava absolutamente senhora da língua francesa.

Tudo, porém, que constituía alguma coisa de sua personalidade, era graça e leveza aos olhos e aos ouvidos do moço Davenport, que se sentia transportado a um plano de felicidade divina, em sua companhia.

A certa altura do amoroso colóquio, Cirilo exclamou, algo perturbado por trazer à tona a súmula de suas cogitações mais íntimas:

— Madalena, ocioso é dizer-te da minha infinita afeição. Saberás entender o sentido de minhas palavras. Nunca me conformei com as atitudes superficiais, nem posso aprovar os desvarios da juventude contemporânea. Digo-o, a fim de que não vejas laivos de leviandade nas minhas palavras. Amo-te muito e estes poucos dias de convivência bastam para que reconheça tua soberania no meu coração, onde ocupas lugar insubstituível. Mas, poderei contar com o teu amor para sempre?

A essa pergunta direta, a jovem respondeu extremamente confundida:

— Sim!…

— Sempre idealizei uma criatura que me compreendesse inteiramente e, agora que nos encontramos, tenho a esperança de poder edificar um castelo de suprema ventura. Desde a noite em que nos vimos pela primeira vez, sonho contigo e antevejo as alegrias de um lar povoado de flores e de filhinhos.

Ela, toda ruborizada, elevava-se nas asas do amor, de emoção em emoção, aos páramos do sonho. Aquelas palavras representavam a deliciosa música que os seus ouvidos esperavam de há muito. O moço Davenport era o cavalheiro do seu ideal. Sua voz cariciosa e dominadora penetrava-lhe o íntimo, como perfumado sopro de vida. Queria falar exprimindo seus sentimentos mais nobres; a emoção, contudo, embargava-lhe a voz, enquanto o coração desejava prolongar ao infinito aquele instante divino. Compreendendo-lhe o silêncio, o rapaz recordou as advertências de Susana, fez um gesto significativo e acentuou:

— No entanto, Madalena, tenho o coração repleto de presságios tristes!… Dizem que o sofrimento é comum aos que se amam; trago o espírito ansioso por esclarecimentos mais amplos…

— Como? — indagou a jovem no impulso instintivo de anular qualquer dúvida.

Revelando funda preocupação, ele acrescentou como que medindo a responsabilidade de cada palavra:

— Ninguém disputa comigo o tesouro do teu coração?

— Que dizes? — retrucou a moça com grande surpresa.

— Sinto que tua alma se dirige ao meu coração como fonte cristalina de verdade — acrescentou Davenport acentuando as palavras —, acredito na tua sinceridade e nem seria lícito duvidar dos teus sentimentos; mas, quem sabe, Madalena, teus pais te destinam a outrem que te mereça pela fortuna que não possuo, ou por títulos que também me faltam?

A essa altura, sua voz tornou-se enternecida e comovedora, qual a de uma criança disposta a resignar-se com os obstáculos, não obstante seu violento desejo.

A jovem, por sua vez, como se despertasse de um sonho, começou a chorar convulsivamente. A imagem do primo torturava-lhe agora o pensamento, como se recordasse um verdugo cruel. Lembrava as lutas domésticas, os enormes débitos do genitor para com Antero de Oviedo, as combinações de ambos para o futuro matrimônio, com sacrifício dos seus ideais, e não conseguia dissimular a imensa dor que lhe avassalava o coração sensível, ante a possibilidade de perder Cirilo, compelida pelas humanas convenções a renunciar à sua união com o jovem em cujo espírito adivinhava a fonte de todas as sublimes compreensões de que sua alma necessitava para ser feliz.

Entregava-se assim a copioso pranto, enquanto o moço irlandês, comovidíssimo, tomava-lhe a cetínea mão, cobrindo-a de beijos.

— Não chores, Madalena! O amor confia sempre e acreditas, acaso, que sou de todo inútil?

Recordando as palavras impiedosas de Susana que aquelas lágrimas confirmavam, assumiu atitudes decisivas e acrescentou:

— Ninguém poderá impor-te um casamento contra os teus desígnios. Se me amas, saberei defender-te até os confins do mundo. Não pertencerás a qualquer miserável truão, apenas por circunstâncias mesquinhas de mil francos a mais, ou a menos. O dinheiro jamais entrará em nossos planos de felicidade!…

A filha de D. Inácio enxugou as lágrimas depois de ouvir-lhe as ponderações consoladoras e afetuosas, e atendendo-lhe aos apelos relatou minuciosamente as dificuldades da família desde os tempos de Granada, assinalados por grandes lutas. Nascera nessa famosa cidade espanhola, onde o pai desempenhava cargos políticos de certa relevância. Tivera uma infância risonha, mas, desde a fase dos primeiros estudos, vivera quase que absolutamente reclusa num convento de Ávila, onde o genitor procurava enriquecer-lhe os dotes intelectuais. Nos poucos dias do ano, quando feriava no ambiente doméstico, seguia de perto os sofrimentos da genitora, que recrudesciam de tempos a tempos, em vista das extravagâncias paternas. Quando abandonou definitivamente o educandário religioso, seus pais já se encontravam em Madrid, para onde se mudaram com enorme dificuldade. No vórtice de acerbos tormentos morais, sua mãe encontrara arrimo único em Antero — sobrinho do marido, criado com toda a dedicação e ternura maternais. Seus pais haviam adotado o rapaz, de pequeno, como próprio filho. 

Antero era um homem de psicologia difícil, em virtude dos sentimentos condenáveis que sabia dissimular com habilidade, mas que, em sua ausência nos estudos e nos desvios constantes de seu pai, apresentava dotes apreciáveis aos olhos de sua mãe, de quem se fizera sustentáculo e consolação. Permaneciam em Madrid, completamente arruinados, quando o casamento da filha de Filipe IV com Luís XIV deu ensejo a que o genitor e o primo se colocassem otimamente, em funções de natureza política. Desde 1660, estavam em Paris cheios de esperança numa vida nova. D. Inácio, no entanto, não conseguira permanecer no cargo senão por alguns meses, porque se incompatibilizara com a Corte, em vista da sua crítica franca aos atos de Sua Majestade. Leal amigo da infanta espanhola não conseguia suportar calado as humilhações penosas infligidas à rainha, que se socorria da religião, com santificada paciência, de modo a tolerar e esquecer os desvarios amorosos do real esposo. Ciente dos seus firmes protestos, o soberano demitira-o do cargo e Antero de Oviedo só foi conservado em suas obrigações remuneradas por influência dos amigos de Maria Teresa, que lhe mantiveram os proventos com alguma dificuldade. Havia quase dois anos, a família vivia a expensas do rapaz, não obstante a tristeza que semelhante situação lhe causava.

Seu pai, continuava Madalena de olhos molhados, era um generoso coração, mas alimentava inveterada paixão pelo jogo. Tal obsessão acarretara o desbarate de todos os bens que possuíam e, após lamentáveis aventuras, nada lhes ficara do passado feliz. A genitora resistira heroicamente aos reveses da vida, mas sofria agora do coração, passando os dias na expectativa angustiosa da existência que se extingue, e da morte que se aproxima.

Mademoiselle Vilamil fez longa pausa a fim de enxugar as lágrimas abundantes, enquanto Cirilo acariciava-lhe a mão, comovidamente.

Em seguida, evidenciando grande embaraço por ver-se constrangida a versar tão delicado assunto, começou a falar com mais enleio dos propósitos paternos de casá-la com o primo e contou que este, por vezes, já lhe havia falado de amor, ao que se esquivava ela, sempre com enorme repugnância. Alimentava o desejo ardente de lançar-lhe em rosto a negativa formal, com o desprezo que essa união lhe inspirava, mas, continha-se a custo, considerando o reconhecimento da mãe enferma e a situação do pai, que devia ao pretendente alguns milhares de francos.

Nesse ínterim, o jovem Davenport, mal disfarçando o ciúme que o devorava, interpelou-a exclamando:

— Mas teu pai, a quem consagras tão grande veneração, teria coragem de vender a felicidade da filha por um punhado de miseráveis escudos?

— Não creio — disse a moça convictamente demonstrando a sinceridade de sua confiança filial nos grandes olhos, onde esplendia a candura das suas dezenove primaveras — meu pai, apesar das estroinices, tem sido o meu maior e melhor amigo.

Cirilo guardou-lhe a destra entre as mãos, com infinito carinho, ansioso por confortá-la. Depois de alguns instantes em que o silêncio de ambos era mais eloquente que as expressões verbais, a jovem Vilamil, como se fosse arrebatada a longínqua impressão do passado, perguntou inesperadamente:

— Cirilo, acreditas nos adivinhos?

— Ora essa! por que perguntas? — exclamou intrigado.

— É que, ainda em Granada — disse Madalena com muita simplicidade —, numa de minhas rápidas visitas ao lar, estava à porta do Alhambra com algumas colegas de estudo, quando fomos atraídas por um ancião que lia o destino dos transeuntes interessados em sua estranha ciência. Atendendo à brincadeira geral, aproximei-me e dei-lhe a mão. Ele pareceu meditar um momento e falou: — “A menina é bem nascida, mas não é bem fadada.” E depois de fixar-me nos olhos com expressão inesquecível, não mais sorriu e continuou aconselhando-me: — “Prepara-te, minha filha, e une-te à fé em Deus, porque teu cálice, no mundo, transbordará de amargura. Não vivemos apenas esta vida. Temos existências várias e a tua existência atual é promissora de tempos afanosos para a redenção.” Suas palavras me impressionaram a ponto de me fazerem chorar copiosamente. Senti enorme abalo e foi preciso que as amigas me reconduzissem à casa, onde fui compelida a acamar-me.

 — E onde estava D. Inácio que não repeliu o estúpido? — indagou o jovem Davenport bruscamente, cortando-lhe a palavra.

— Meu pai ficou furioso, e, depois de repreender-me severamente, tomou as providências devidas, mandando que o feiticeiro fosse levado ao Tribunal da Inquisição, que lhe aplicou disciplinas por uma semana e o deteve encarcerado mais de três meses. Mais tarde, o Geral dos Jesuítas cientificou ao papai que se tratava de um peregrino demente, de origem egípcia, que penetrara no reino através do Marrocos.

— E admitiste suas afirmativas? — interrogou Cirilo, evidenciando ansiedade por apagar qualquer resquício de impressão dolorosa no espírito da jovem.

— Apesar de muito impressionada — esclareceu Mademoiselle Vilamil — não acreditei nos sombrios vaticínios, mas, não posso deixar de reconhecer que, até hoje, Cirilo, minha vida tem sido tormentoso mar de preocupações infinitas. Tenho a impressão de que atingirei os vinte anos com um peso sufocante de velhice prematura.

Depois de ligeira pausa, acrescentava:

— Não desejo fraquejar, deixar-me vencer pelos presságios de um peregrino desconhecido. Sinto-me forte na fé em Deus e estou convicta de que o poder celestial me auxiliará nas lutas humanas; entretanto, um detalhe houve, na conversação do velhinho, que nunca poderei esquecer; é o que se refere a outras vidas. O destino está cheio de circunstâncias misteriosas. Nossa vida não terá começado no instante de nascermos no mundo. Devemos ter existido em outra parte. Creio que temos amado e odiado, e o esforço em que nos achamos se destina ao trabalho de redenção das nossas culpas. Não me detenho em tais ideias tão só por haver ouvido as advertências do adivinho errante, mas tenho tido sonhos significativos…

O companheiro, que lhe seguia as palavras com indisfarçável mal-estar, apertou-lhe a mão e sentenciou:

— Que é isso, Madalena? Desvairas? Não te quero ver entregue a filosofias abstrusas. Se encontrasse esse feiticeiro infame, reforçaria as penas que lhe foram impostas pelos inquisidores.

Ansioso por libertá-la dos pensamentos amargurosos, continuava:

— Casar-nos-emos e encontraremos a ventura sem fim. Ficaremos em Paris ou onde quiseres. Lutarei por ti, tenho braços laboriosos e enérgicos. Futuramente, rir-nos-emos desses temores infantis, provocados por um mendigo irresponsável. Os egípcios, como os orientais, foram sempre grandes imbecis. Caso seja do teu agrado, fixaremos residência na Irlanda, junto dos meus. Levar-te-ei, mais tarde, a Londres; excursionaremos até à Escócia e hás de ver que, em toda parte, o amor sincero será a chave de nossa ventura imortal. As almas que se adoram movimentam-se nos caminhos resplandecentes de luz.

A jovem, que o ouvia dominada pela emoção, pareceu olvidar as ideias transcendentes e profundas, e respondeu enlevada:

— Sim, seremos felizes para sempre. Seguir-te-ei para onde fores. Anseio por conhecer terras novas, onde possamos sentir a felicidade unida a nós!…

— Terras novas? — perguntou Cirilo revelando-se iluminado por ideia súbita — não será bom experimentarmos os largos horizontes da América?

— Ah! isso tem sido um longo sonho meu — disse a jovem de olhos coruscantes. — Tenho sede inexplicável do mundo novo que nos acena a distância. Nossas grandes cidades, corrompidas, consternam e sufocam! Granada, Ávila, Madrid e Paris não diferem o bastante umas das outras. Em todas vejo os homens como loucos, disputando realizações que lhes agravam os padecimentos espirituais. Tenho sonhado sempre com as enormes florestas escuras, com os rios caudalosos, com as campinas verdes e sem fim…

— Edificaremos por lá o nosso ninho de amor — rematava o rapaz apaixonadamente.

E falaram longamente da América, como duas crianças ansiosas, permutando compromissos sagrados.

Ao termo da palestra, o moço Davenport, ciente de todas as preocupações íntimas da sua amada, prometeu visitar-lhe os pais na noite seguinte, na casa de Santo Honorato, de maneira a criar o ambiente propício ao culto de suas esperanças em flor.

Depois que Colete e Cecília procuraram a companheira para a volta, Cirilo fixou o olhar no vulto da carruagem até que se confundisse de todo com as sombras espessas. Largo tempo levou ainda a meditar, sentado junto aos nichos externos, escassamente iluminados no bojo silente da noite.

No dia imediato, ao entardecer, tomou o seu carro ligeiro, dirigindo-se à residência dos Vilamil e fazendo o possível por apagar os receios que lhe tumultuavam na alma inquieta. Como se comportaria na hipótese de lá encontrar Antero de Oviedo? Teria força bastante para tratá-lo fraternalmente? Como o compreenderiam, por sua vez, os pais de Madalena? Engolfado em vastas cismas íntimas, parou à porta da casa indicada. Tratava-se de antigo edifício, dos que comumente eram alugados a famílias de tratamento, mas de reduzidos recursos financeiros. Extenso gradil, no centro um grande portão pintado de azul, cercava gracioso jardim onde as flores disputavam o beijo da primavera; ao fundo, a residência de aspecto antiquado, com as características exteriores da época de Luís XIII. 

Cirilo bateu discretamente, sendo atendido com presteza por um lacaio que lhe deu acesso ao interior, onde era aguardado com certa curiosidade.

D. Inácio trajava corretamente, como se fora convocado a assistir a uma cerimônia solene, enquanto a esposa, muito pálida, acomodava-se em espaçosa poltrona de repouso, dando a impressão de que ali se conservava não por impulso espontâneo, mas por inevitável obrigação da vida em família. Ambos estavam envelhecidos e alquebrados prematuramente; ele, talvez por extravagâncias de toda sorte; ela, por certo devido aos constantes desgostos. Junto aos dois, na sala que se caracterizava por linhas monótonas, Madalena com a sua radiosa juventude parecia um raio de claridade afugentando as impressões tristes.

D. Inácio acolheu o rapaz com ruidosas manifestações de simpatia.

— Não terá, nesta casa, as designações devidas aos moços de tratamento, em Paris — disse satisfeito —; chamá-lo-emos Dom Cirilo, em homenagem à nossa Espanha distante.

— Desse modo ficará mais íntimo — acrescentava D. Margarida Fourcroy de Saint-Megrin e Vilamil com um sorriso. — Desejamos que este lar seja também seu.

Enquanto os jovens se alegravam experimentando a certeza da condescendência dos velhos generosos, D. Inácio acrescentava:

— E pode estar certo, D. Cirilo, de que sua estrela deve ser muito brilhante, porque minha esposa não acolhe a qualquer, na primeira visita.

Riso geral coroou essas afirmativas, ao mesmo tempo que a palestra descambava para as recordações das pátrias distantes. O jovem Davenport falou de suas lembranças da Irlanda e depois de bordar inúmeros comentários em torno das relações entre espanhóis e irlandeses, D. Inácio acentuou:

— Nossas afinidades religiosas com a Irlanda sempre foram estimáveis e confortadoras. Aliás, fui eu quem teve a honra de acender a primeira vela enviada pelos devotos do santo arcebispo de Armagh, em Dublin, na fogueira em que foram castigados, em Granada, alguns hereges do Longford, num de nossos maiores autos-de-fé.

Cirilo franziu o cenho como quem se desagradava do assunto e acrescentou:

 — A psicologia da gente irlandesa é muito difícil e complicada.

— Tal como a nossa, na Península — atalhou o velho fidalgo —; é impossível esqueçamos nossas tradições para acompanhar o surto de loucuras e novidades que terminará projetando os povos no abismo. Não podemos confundir liberdade com licenciosidade e seria falta grave aplaudir essa onda de tolerância criminosa que varre atualmente o mundo. Temos de ser exóticos em qualquer parte da Terra. Será lícito estabelecer a desordem e dizer que se progride? Então, a Espanha toleraria o chamado Edito de Nantes?   Nunca! Julgo que a fogueira deve cercar os hereges e os apóstatas onde quer que estejam. Pelo menos, isso constitui elevada instrução de nossos santos padres. Se o traidor da pátria deve ser condenado, muito mais criminoso é o traidor da fé.

O rapaz esboçou um gesto de leve desacordo, obtemperando delicadamente:

— De acordo, no que se refere à política. A administração desordenada é sintoma de desagregação e ruína. O mesmo, porém, não ocorre quanto a crenças. Considero que, em matéria de manifestações religiosas, outras seriam as circunstâncias se todos entendêssemos o valor do perdão.

— O senhor é muito moço — replicou D. Inácio, sereno —, só mais tarde poderá compreender que o perdão dissolve a família.

O jovem fez menção de espanto e respondeu instintivamente:

— Mas Jesus perdoou sempre, D. Inácio.

O velho fidalgo, entretanto, como quem se habituava a interpretar os textos evangélicos, pro domo sua, esclareceu sem qualquer preocupação de espírito:

— Esse problema foi estudado por mim, junto ao Inquisidor-Mor de Granada. Depois de algum tempo chegamos à conclusão de que se o Cristo suportou os algozes, mandou também que o homem orasse e vigiasse, incessantemente. E o senhor já observou alguém vigiando sem armas? Em que lugar do mundo a sentinela pode abraçar o inimigo?

Cirilo não estava acostumado a discussões religiosas e, ouvindo tal argumento, silenciou com profunda estranheza, ao passo que o interlocutor, observando a desaprovação que lhe transparecia dos olhos, tratou de mudar de assunto acrescentando:

— Não poderíamos nunca aplaudir uma Corte desordenada e indiferente, como a de França.

Neste ponto da conversação, D. Margarida, considerando que as expansões do marido poderiam melindrar o rapaz, advertiu calmamente:

— Ora, Inácio, não generalizes. Suponho que, na tua idade, qualquer pessoa deve examinar acontecimentos e fatos sem a paixão que sói envenenar as melhores fontes do caminho. Por que acusar a Corte, quando a culpa não pode cair indistintamente? Todos os governos são ótimos, quando somos jovens.

O velho fidalgo empertigou-se, cofiou os bigodes, fitou a esposa sobranceiramente, e sentenciou:

— A senhora acha, então, que falo por ouvir dizer? Há três anos, com a mesma velhice de hoje, assisti à assinatura do nosso tratado com a França, na Ilha dos Faisões, acompanhando D. Luís de Haro e não sentia qualquer desalento. Aos meus olhos, as águas do Bidassoa estavam belas como nunca. Mas não posso repetir semelhantes emoções nesta terra de polifrontes.

— Consideras, então, que os franceses devem pagar pelo teu abatimento de agora? — perguntou a nobre senhora serenamente. — Há tanta gente sem juízo em Paris, como em qualquer grande cidade espanhola. Além do mais, cada região tem seus costumes próprios e, naturalmente, um francês não se sentiria tão bem se fosse compelido a viver sob o ritmo das tradições espanholas.

— Ah! sim — replicou D. Inácio sem conseguir disfarçar a irritação —, para os franceses todos os descalabros podem ficar bem; mas eu sou um homem antigo e é preciso não esquecer que minha família descende de parentes colaterais da rainha católica.

E depois de um gesto significativo, rematava orgulhoso:

— Minha filha e eu não fomos nascidos nas margens do Garona, tampouco ao pé das águas sujas do Sena. 

Nesse instante, contudo, antes que Cirilo pudesse interferir com alguma observação afetuosa e conciliadora, ouviu-se o ruído de um carro que parecia trazido por cavalos resfolegantes.

D. Margarida, como se já estivesse alheada do pequeno atrito doméstico, fez um sinal à filha, revelando maternal preocupação, e falou:

— Madalena, previne lá dentro. Antero deve estar regressando de Versalhes. 

Enquanto a jovem se dirigia para a sala da copa, o moço Davenport prestou atenção, a fim de observar o recém-vindo, cujas passadas fortes se faziam ouvir quase junto à porta da entrada.

Ia, finalmente, conhecer o rival. A presença do sobrinho de D. Inácio, em plena sala, não lhe deu oportunidade a mais vastas considerações íntimas.

Antero exibia dotes singulares de beleza física, nos seus trinta anos bem formados. Alto, elegante, cabelos negros e ondulados, tez levemente amorenada, peninsular, olhos argutos e indefiníveis, deixava transparecer nas maneiras polidas um quê de intencional. Dir-se-ia que suas atitudes delicadas não eram sinceras, mas oriundas do profundo artificialismo de quem não se deixa conhecer tal qual é. Apresentado ao rapaz irlandês, cumprimentou-o cordialmente, embora seus olhos parecessem interrogar a razão de sua presença ali, e, depois de se encaminhar para o interior, enquanto a palestra prosseguia suavemente, regressou à sala, onde prestou singular atenção aos olhares significativos trocados entre a prima e o visitante inesperado, compreendendo que o seu campo afetivo fora invadido por influências estranhas. Embora não manifestasse o mal-estar que, aos poucos, se lhe apossava do espírito, de quando em vez dirigia o olhar indagador para a tia e mãe adotiva, como a interrogar sobre as pretensões desconhecidas do intruso.

A uma pergunta direta do velho fidalgo, quanto à marcha dos trabalhos que lhe competiam, respondeu cortesmente:

— Todas as obrigações obedecem ao ritmo normal e o senhor pode crer que, em breves dias, Versalhes reunirá toda a Corte e será o centro da vida política da nação francesa.

— E o rei? — perguntou D. Inácio exprimindo certa inquietação nos olhos — expediu a ordem de pagamento da minha disponibilidade?

— Por enquanto, não — esclareceu o interpelado. — Ainda hoje, porém, pude avistar-me com Sua Majestade quando procurei o Sr. Colbert, trazendo-lhe hoje a boa notícia de que o soberano pede o seu comparecimento em palácio.

— Para quê? — rosnou o nobre espanhol quase colérico — amanhã, farás o favor de dizer ao rei dos franceses que, se me chama para me despojar de algum bem, os seus ministros já me usurparam as dignidades; se pretende conferir-me honras, agradeço-as; e se me oferece algum favor, não necessito de suas esmolas.

Após uma pausa que ninguém ousava interromper, rematava com esta afirmativa:

— E, se Sua Majestade manda buscar-me visando a fins mais ásperos, podes afirmar-lhe que não será necessária minha presença em palácio, para que me mande ao pelourinho. Bastará uma ordem…

Madalena, muito acanhada, observava Cirilo, que acompanhava o diálogo do tio e do sobrinho com alguma estranheza.

Esperava-se que D. Margarida viesse à discussão com interferência conciliatória, mas foi Antero que desfez o silêncio, ponderando com calma:

— No entanto, meu tio, é possível que as coisas sejam conciliadas em seu favor. Como sabemos, o Sr. Fouquet já não permanece à testa dos negócios públicos.

— E achas porventura que o soberano é melhor do que o ex-ministro? Um remendado não poderá condenar um andrajoso. Fouquet não se retirou do cargo pela sua prodigalidade nas despesas. A causa de tudo, no capítulo da sua demissão, foi o escândalo dos ciúmes por Mademoiselle La Vallière.  Antero ia exprimir um gesto de desacordo, mas o fidalgo continuou:

— Não permito que me contradigas. Acaso, não estás farto de saber que aqui, em França, são as mulheres que fazem os ministros?

D. Margarida, desejosa de imprimir novo rumo à conversação, a fim de que o esposo não incidisse nos comentários apaixonados, aventurou:

— Suponho, Inácio, que deves ir. Ainda que não conseguisses um acordo para o recebimento do que te é devido, essa visita dar-te-á ensejo a qualquer combinação com a rainha.

— Eu? — bradou ele com energia — que me poderia dar a desventurada infanta, necessitada de quase tudo em seu ambiente doméstico? Poderei procurar a filha do meu soberano para chorar as desditas, mas nunca alimentando o propósito de pedir qualquer coisa.

— Em todo o caso, seria útil alguma tentativa — exclamou Cirilo Davenport timidamente, receoso de ser tomado como indesejável nas combinações familiares.

D. Inácio Vilamil, porém, carregou mais expressivamente o semblante e sentenciou:

 — Mas eu sou um homem da velha têmpera.

O rapaz, compreendendo-lhe a resistência inquebrantável, baixou os olhos e calou-se.

A palestra chegou ao fim, com as expressões conciliatórias de todos, ante a intransigência do velho fidalgo. Nenhum argumento lhe modificou a atitude.

Nas despedidas, notando a ternura dos olhares e gestos da prima e do jovem Cirilo, Antero sentiu que mortal ciúme lhe envenenava para sempre o coração.

Duas semanas passaram, repetindo-se diariamente a visita de Davenport, as ideias intransigentes de D. Inácio e a perplexidade do sobrinho dos Vilamil, que vinha de Versalhes a Paris, de três em três dias.

O par venturoso continuou tecendo, carinhosamente, os fios dourados de seus sonhos de felicidade, enquanto Antero dissimulava habilmente o profundo rancor que lhe dilacerava o espírito. Apesar da mágoa odiosa, tratava Cirilo com maneiras cativantes. No íntimo, detestava o rival, que lhe triturava devagarinho as esperanças; no entanto, buscava conquistar-lhe a confiança, intencionalmente maquinando projetos sutis e terríveis de vingança, a seu tempo. O próprio Cirilo estava surpreso. A amizade que Antero de Oviedo lhe demonstrava era mais um obstáculo transposto. A certeza de que o companheiro da infância de Madalena lhe compreendera os propósitos sinceros, constituía fonte de tranquilidade para o seu coração. Andava, por isso mesmo, plenamente satisfeito. Respirava os ares de Paris a longos haustos. O serviço diuturno fizera-se-lhe leve e doce, o novo estado de espírito descortinava-lhe profundos horizontes no entendimento justo da vida. Aguardava a noite, ansiosamente, e, quando em companhia da jovem amada, renovavam, os dois, os votos afetuosos, os juramentos sublimes, as promessas de eterno amor.

Surgiu a ocasião em que Madalena se preocupou com a atitude da família Davenport e insistiu para que o rapaz comunicasse aos parentes de Belfast  †  o projeto de casamento. Cirilo prometeu escrever, mas alegou que, antes mesmo da consulta aos pais, procuraria ouvir o tio Jaques, em Blois,  †  que lhe consagrava paternal afeição desde os primeiros dias da sua vida. Mademoiselle Vilamil demonstrava cuidados justos e, contudo, no espírito de resolução que lhe era característico, Cirilo considerava semelhante zelo de somenos importância, pois, ao seu ver, casar-se-ia ainda que não obtivesse para isso a aprovação da família. Todavia, dada a insistência da jovem nas conversações confidenciais, Davenport dirigiu-se, certo dia, a Blois, com o fim de aconselhar-se com o tio, antes de assumir o compromisso desejado.

Durante toda a viagem, Cirilo entregou-se a singulares devaneios. Susana, havia muitos dias, voltara de Paris para o ninho doméstico e o rapaz lembrava o seu olhar inesquecível, quando se despediram. Sua expressão traduzia um misto de frieza e dor, de ressentimento e crueldade. Por quê? Ignorava a violência das suas intenções, procurava, em vão, atinar com a causa da sua tristeza. Debalde procurava aproximá-la de Madalena, convidando-a a segui-lo em alguma de suas habituais visitas ao bairro de Santo Honorato. A prima recusara sempre, em termos ásperos que lhe feriam o coração. Além disso, emagrecera, tornara-se irascível. Nunca mais se aproximou da sua eleita, nem mesmo para as cortesias comuns. Em suas cogitações íntimas ponderou mais seriamente aquele procedimento da prima. Certo, ela dera ouvidos, na infância, a possíveis projetos familiares de casar-se com ele.

Relacionou em suas reminiscências os pequeninos detalhes dos planos paternos e compadeceu-se da companheira de infância. Contudo, em breves instantes, buscou desvencilhar-se de semelhantes impressões. Afinal de contas, refletia, as inclinações da prima não passariam, por certo, de anseios transitórios da mocidade. Ela encontraria afetos novos. Era senhora de vultoso dote, não lhe seria difícil encontrar um partido rico, que lhe pudesse satisfazer os caprichos de moça. Se possível, falar-lhe-ia pessoalmente, assegurando-lhe o penhor da sua amizade constante.

Buscando desfazer-se das preocupações que não coadunavam com os seus propósitos do momento, Cirilo penetrou nas ruas da velha cidade, ansioso agora por atirar-se nos braços do fiel amigo e confiar-lhe as mais íntimas esperanças.

O professor Jaques Duchesne Davenport residia em antigo parque, que adquirira para a localização da sua escola, de proporções vastas, destinada à preparação de crianças de ambos os sexos, antes do acesso aos monastérios do tempo, consagrados ao serviço educativo. Viúvo já de alguns anos, o bondoso amigo da infância, com a cooperação de dois professores dedicados, ali vivia entre os meninos de Blois como se estivesse esquecido das cogitações mais fortes do mundo. Não era propriamente um velho, na expressão justa do termo; entretanto, os fios grisalhos destacavam-se na cabeleira e as rugas povoavam-lhe o rosto, embora estivesse tão somente próximo dos sessenta anos. Muito raramente dispensava a bengala que lhe completava a feição de patriarca junto dos petizes, e as crianças adoravam-no como a um pai. Não obstante as profundas experiências da vida, que suas atitudes demonstravam, seus olhos eram vivazes e amorosos, dando a impressão de que no peito palpitava um coração de grande criança, afetuosa e compreendedora.

As famílias de Blois encontravam nele um arrimo forte para solução de todos os problemas relativos à infância. “Mestre” Jaques era um ponto de referência de magna importância, entre todas as classes sociais. Os brasonados amavam-no pelo seu nobre entendimento das coisas práticas, e os desfavorecidos da fortuna encontravam no seu carinho fraternal a proteção prestigiosa de um benfeitor. Os padres católicos estimavam-lhe as preciosas qualidades de cooperação e os protestantes admiravam-lhe o respeito às crenças e opiniões alheias. E no seu pequeno mundo de amigos leais e crianças amadas, Jaques Duchesne Davenport sentia-se confortado e quase feliz.

Anoitecia, quando Cirilo bateu num largo portão cercado de trepadeiras e madressilvas. As árvores vetustas e acolhedoras do grande jardim faziam da paisagem um trecho de paraíso, pela sua paz ao sussurro do vento leve. A casa, muito antiga, dava ideia de vasta mansão de repouso, no seio da tarde amiga.

Susana veio atender, prestemente, e não pôde disfarçar a surpresa com a chegada do primo, sem aviso prévio. Entretanto, longe de perder sua feição voluntariosa, cumprimentou-o quase friamente, conduzindo-o ao interior e abstendo-se das expansões afetivas com que o recebia de outras vezes.

O mesmo não aconteceu, porém, lá dentro, onde Jaques abraçou o sobrinho, transbordante de alegria. O velho educador quase carregou Cirilo nos braços, como se recebesse a mais adorada de suas crianças no caminho da vida.

— Como te demoraste meu filho! Há muitos dias te procuro, debalde, entre todos os cavaleiros que passam por Blois.

Cirilo sensibilizava-se fundamente com tais expressões de carinho.

Em doce aconchego familiar, jantaram juntos.

Depois de trocadas as primeiras impressões e quando a noite amortalhara a paisagem, de manso, o estimado educador, notando que Susana e Carolina se afastavam deliberadamente, chamou o sobrinho ao gabinete particular e exclamou batendo-lhe carinhosamente no ombro:

— Vamos Cirilo, acendamos o velho candelabro. Teus olhos indicam que tens alguma coisa importante a dizer-me.

O rapaz acompanhou-o enternecidamente e respondeu hesitante:

 — É verdade, meu tio…

Sentados em poltronas confortáveis, junto de ampla janela que lhes descortinava o céu pontilhado de estrelas, foi Jaques quem iniciou a palestra dizendo ao rapaz das novas impressões que nutria a seu respeito.

Atendendo a uma interrogação direta, o moço esclareceu:

— Sim, encontrei uma jovem que resume as minhas esperanças.

— Conheço-a? — interrogou, afetuoso.

— É Madalena Vilamil.

— Ah! muito bem! Ainda nisso as nossas afinidades se manifestam e as tuas inclinações me alegram a alma. Conheci-a quando de sua visita ao antigo palácio de Luís XII,  †  e isso bastou para que a estimasse infinitamente. Como tudo isso é interessante, meu filho! Não mais me esqueci dessa jovem, tanto que, quando Carolina e Susana vão a Paris, recomendo-lhes que não regressem sem notícias dela.

— Essa circunstância constitui enorme alegria para mim — disse o rapaz assaz comovido.

— Não podias fazer melhor escolha — concluiu Jaques, convicto. — Quando pretendem casar-se? Não seria lógico adiar tão feliz evento. Além disso, quando amamos, é natural que o coração seja atendido.

Amparado por semelhante compreensão, Cirilo Davenport não conseguiria definir o júbilo que lhe inundou a alma.

— Seu parecer, meu tio, nobilita os meus propósitos; entretanto, estou francamente indeciso, quanto à data dos esponsais, visto não ter ainda comunicado a meus pais os meus desígnios.

— E pretendes ir a Belfast, com esse fim?

— Se fosse possível…

Jaques meditou alguns instantes e, como pessoa habilitada a aconselhar com perfeito conhecimento da causa, voltou a dizer:

— Não vás à Irlanda antes do casamento.

— Por quê? — indagou Cirilo um tanto surpreso.

— Não estou fazendo apologia da desobediência ou da anarquia familiar, mas recordo o meu casamento e não posso deixar-te ao desamparo. Em nossa ilha costuma-se colocar o interesse acima das inclinações naturais. Quando conheci Felícia — a santa companheira que me aguarda no Céu —, nossos parentes moveram-me guerra permanente e foi-me indispensável um ato de força para desposá-la. Se fores a Belfast, começarão a malsinar tua escolha e cada amigo envenenará teu espírito com superstições descabidas. Serás flechado de tantos apelos estranhos, entre missas e promessas, que talvez fiques por lá, carregando para sempre um sonho morto. Samuel permanece distante de nossa compreensão da vida. Tua mãe é sensível e amorosa, mas está presa aos excessos devocionais. Teus irmãos são afetuosos mas são espíritos muito irrequietos. Talvez a isso devam a difícil situação em que se encontram.

— Como proceder, então?

— Escreverei a teu pai dizendo que, de há muito, me incumbiste de pleitear a devida permissão, mas, devido a trabalhos imperiosos, protelei o assunto, obrigando-o a assumir comigo o compromisso de anuir a teus desejos e explicando que a futura nora é minha filha de coração. Samuel, naturalmente, ficará preocupado, a princípio, mas cederá satisfeito, estou certo. Quanto à adesão de tua mãe, sabemos, por antecipação, que estará de acordo conosco, em todos os sentidos.

Cirilo estava tão contente que não sabia como agradecer.

— E não te detenhas em conjeturas inúteis — continuou o bondoso educador. — Madalena é digna de teus carinhos e ambos serão meus filhos, com a obrigação de povoar de netos a minha estrada, para que não me falte um raio de luz na noite da decrepitude, que todos os homens devem esperar.

No gabinete que se atulhava de cadernos e livros esparsos, havia uma atmosfera de felicidade indefinível. Ondas de perfume do jardim próximo penetravam pela janela aberta, como se a natureza incensasse o entendimento afetuoso de duas almas afinadas no mesmo idealismo.

Observando que o sobrinho prosseguia calado, Jaques interrogou:

 — Sentes alguma dificuldade para executar meus conselhos?

— Reconheço, meu tio, que os meus ordenados mensais são exíguos — explicou o jovem algo tímido.

— Não digas isso. Os melhores tempos da minha vida conjugal foram justamente quando Felícia e eu lutávamos contra todos os obstáculos para assegurar nossa felicidade. Minha família, na Irlanda, contrariava os nossos sonhos, enquanto os parentes de Blois hostilizavam as minhas pretensões. Casamo-nos sem apoio de ninguém. Meu salário, como professor, era irrisório, mas as barreiras, aparentemente intransponíveis, pareciam valorizar nossa união. Com as lutas intensas de cada dia, as horas de convivência doméstica tornavam-se mais preciosas. No entanto, meu filho, quando Felícia me compeliu a vir para este país, onde nos esperava a valiosa herança deixada por sua mãe, o júbilo perfeito pareceu fugir do alcance de nossas mãos. A vida de Blois tornou-se muito diferente da de Belfast. Na Irlanda possuíamos um ninho; na França encontramos uma casa. No ninho, vivíamos de amor e paz; na casa, a existência obedeceu às imposições dos cuidados numerosos pelas muitas convenções sociais. Não quero dizer com isso que as casas sejam organizações dispensáveis, e sim que devem ser ninhos simples e acolhedores, onde cada membro da família experimente a tranquilidade devida. Minha pobre Felícia, porém, não soube resistir ao peso do bem-estar e fomos, finalmente, menos felizes desde que as posses de Blois nos compeliram a numerosos esforços de manutenção e defesa. Minhas filhas, habituadas de início à simplicidade, cresceram entre exigências de toda sorte. Susana é um coração inquieto, insatisfeito, resistindo sempre aos meus paternais conselhos e Carolina, contra as minhas tendências, vai casar-se por simples questão de dinheiro com o Sr. de Nemours. Mas, que fazer? Minha inolvidável companheira acreditou mais na sociedade humana que nas leis simples da vida, e a sua ansiedade segregou as pequenas do nosso antigo ideal.

Jaques Davenport pareceu meditar um minuto, deixando perceber que voltava, em espírito, aos tempos da sua mocidade distante. Depois de prolongado silêncio, como que despertando de profunda divagação, interrogou:

— Compreendeste?

— Sim, meu tio, e agradeço a preciosidade dos seus ensinamentos; no entanto, há considerar que Madalena descende de fidalgos, enquanto que eu sou muito pobre.

— Pobre? — tornou o educador, sorridente e otimista — convém manter acima da classificação comum, de pobres e ricos, a tábua de valores reais, que define os homens como trabalhadores ou ociosos. Há indigentes no seio de tesouros inapreciáveis e pessoas há de reduzidos recursos financeiros, singularmente ricas de esperanças e de ideal. Por isso, meu filho, o perigo está em que o homem seja ocioso. Quem trabalha deve esperar sempre o melhor; mas quem perde o tempo, alcançará a miséria.

Os ensinamentos do bondoso velho caíam na alma do rapaz como um bálsamo.

Atentando no efeito benéfico dos seus conceitos, Jaques continuou:

— O trabalhador possui o tesouro da paz de cada dia, o ocioso encontra em cada noite o padecimento da insatisfação; um vive na claridade da esperança, outro na tormenta da ambição. Uma casa sem lacaios é um refúgio de repouso espiritual, nestes tempos de devassidão. Muitas vezes, o homem que dispõe de muitos servos paga-lhes por supostos serviços, mas o que recebe, em verdade, é calúnia e ingratidão.

Cirilo, radiante ao ouvir tão sábios conceitos, exclamou:

 — Suas palavras, meu tio, confortam-me profundamente. Sendo assim…

— Declaremos guerra as reticências — atalhou ele bondosamente —; já que não és ocioso, podes casar quando bem quiseres.

E como se fizesse uma conta mental, após pequena pausa, acentuou:

— Os esponsais de Carolina estão marcados para novembro próximo. Debalde tentei induzi-la a fixá-los para o Natal. Desse modo, Cirilo designaremos tuas núpcias para o futuro 25 de dezembro.

— Tão perto? — perguntou o moço assaz admirado. — Isso é quase impossível, pois nem mesmo solicitei aos pais de Madalena o necessário consentimento.

— Estou convencido de que hão de ceder para felicidade da filha.

— Mas, as providências indispensáveis?

— Serão atendidas — murmurou o tio com significativo contentamento. — Guardo-te dois mil escudos, a título de cooperação afetuosa no teu sonho de amor.

O jovem Davenport estava repleto de júbilo, mas, depois de pensar alguns momentos, advertiu:

— Meu tio, tanta generosidade é demais. Contento-me com o seu apoio moral, porque, relativamente ao auxílio material, minhas primas seriam capazes de opor alguma objeção.

— Não dês guarida a tais desconfianças. Deus me livre de contender com a família por questões de dinheiro. Quando Felícia morreu, renunciei espontaneamente a todos os direitos que me competiam, em favor das filhas, que dividiram entre si a legítima materna. Apenas desejei ficar com a minha liberdade e com a minha escola. A contribuição, portanto, é de meu próprio pecúlio e não temos nenhuma satisfação que dar a Susana ou Carolina.

O jovem não cabia em si de contente. A oferta preciosa vinha solucionar o melindroso problema econômico que o perturbava. Não queria casar-se sem uma base de recursos a cultivar. Supinamente reconhecido, tomou a destra do tio, apertou-a com carinho e exclamou:

— Não sei como traduzir minha gratidão.

— Ora essa! nem eu desejo que te perturbes por manifestar reconhecimento. Acreditas, acaso, que o dinheiro seja definitiva propriedade nossa? Todo o cabedal financeiro é de Deus, que o distribui consoante as necessidades de cada um, por intermédio dos próprios homens.

A palestra afetuosa entrou pela noite a dentro, até que um velho relógio bateu as onze horas. Jaques lembrou que necessitava da sua beberagem habitual para o estômago, e o sobrinho se despediu agradecido e venturoso.

— Meu tio, dormirei hoje um dos sonos mais tranquilos de minha vida.

— E devê-lo-ás só a Deus — exclamou o generoso amigo, afastando-se ao toque-toque da bengala, como a dispensar o rapaz de novos agradecimentos.

Enquanto Cirilo se recolhia, ditoso, ao quarto de dormir, Jaques foi abordado por Susana em copioso pranto, quando buscava o remédio da noite no velho armário da copa.

— Ouvi tudo, meu pai! — exclamou debulhada em lágrimas, evidenciando fundo rancor.

— Mas, de que se trata? Que ouviste?

— Suas combinações com Cirilo.

— E por que não foste participar da nossa conversação no gabinete? — indagou o genitor muito admirado. — Tratávamos, porventura, de assuntos secretos que justificassem a curiosidade de alguém atrás das portas?

A moça não respondeu, limitando-se a soluçar convulsivamente.

— Mas, que significa tudo isso, minha filha? — obtemperou o bondoso velho abraçando-a.

— Meu pai, amo Cirilo e não me conformo com a sua decisão.

Jaques Davenport inclinou-se para a jovem profundamente preocupado. Agora chegava a compreender suas amarguras secretas, suas inquietações aparentemente injustificáveis, dos últimos dias. Sentou-se pausadamente, contendo a custo a própria aflição e fê-la aquietar-se a seu lado, murmurando depois:

— Filhinha, tem calma e fortaleza, porque este é um desejo que teu velho pai não pode satisfazer.

E o amoroso Jaques, com o seu espírito eminentemente conciliador, fez-lhe ver a necessidade de retificar as inclinações afetuosas, falando longamente da delicadeza da situação, salientando a escolha do sobrinho e os méritos inegáveis de Madalena Vilamil.

Desenganada em seus dissabores cruéis, Susana reprimia com dificuldade as expressões de ironia e ciúme que lhe explodiam no coração. Diante do amoroso pai, a cujo espírito se sentia ligada por irresistível magnetismo, não fazia mais que chorar comovedoramente, ansiosa por desabafar o misto de cólera e angústia que lhe empolgava a alma caprichosa.

O genitor carinhoso, reconhecendo que a filha lhe ponderava as palavras em silêncio, prosseguiu nos conselhos:

— Não desesperes. O coração tem mil caminhos para a felicidade, quando procuramos aceitar a vontade de Deus. E por tudo que temos de sagrado, não demonstres rancor à escolhida de teu primo. Precisas compreender que a resolução de Cirilo é respeitável, e que Madalena é também minha filha pelos laços divinos do espírito. Naturalmente que em seu noivado estarão nesta casa, quando se verificarem as solenidades do próximo consórcio de tua irmã, e eu espero, Susana, que a educação recebida no lar te confira comedimento às atitudes. Há ocasiões em que precisamos esmagar os sentimentos cultivados com excessivo carinho, na precipitação das expectativas injustas.

A jovem desejava apresentar furiosas objeções, desacatar o pai muito amigo, pela primeira vez; continha-se, todavia, com esforço imenso, mordendo os lábios em fúria e dando a impressão de que soluçava de dor infinita, sem qualquer outro sentimento menos digno. Sinceramente condoído daquelas lágrimas, Jaques considerou:

— Avalio tua mágoa e, contudo, seria falta grave aplaudir-te. Procura afagar outros sonhos, renova os pensamentos. Acredito que tuas inclinações não podem obedecer senão a caprichos procedentes da infância.

— Meu pai, não mais poderei ser feliz — disse no auge da desesperação.

— Só os criminosos podem assim falar — acrescentou o genitor sempre melífluo.

— Não tenho forças para assistir às núpcias de Cirilo — continuava Susana, enxugando as lágrimas.

O velho professor contemplou-a compungidamente e redarguiu depois de um minuto de meditação:

— Fortalece tua vontade enfraquecida. Após o casamento de Carolina poderás espairecer na Irlanda por alguns meses. Retemperarás as energias na paisagem da tua infância e acredito que a providência ser-te-á imensamente benéfica ao coração. A época será imprópria para a viagem, mas eu permito que satisfaças semelhante desejo. Encontraremos embarcação e companhia adequada. Por hoje, minha filha, recolhe-te à paz da noite e não chores mais. Tua desesperação não é justa e deves rogar a Deus te conceda a cura da enfermidade espiritual que te atormenta a alma inquieta.

Susana quis revidar asperamente, declarar que semelhantes afirmativas a humilhavam em excesso, mas dissimulou a cólera, calou-se e obedeceu em silêncio.

Quando a viu retirar-se, o pai carinhoso levou a destra ao peito, tentando aliviar o sofrimento íntimo, em face da angustiosa revelação da filha; e demandou a alcova silenciosa, sem conseguir explicar o triste pressentimento que lhe travava o coração.

No dia seguinte Cirilo regressou a Paris, transbordando esperanças. Se o tio bem lhe orientara o espírito quanto ao que lhe competia fazer, ele melhor executou seus conselhos. Depois de dividir com Madalena o júbilo que o empolgava, dirigiu cerimoniosa carta a D. Inácio Vilamil e esposa, expondo as suas pretensões.

A nova produziu grande sensação na vivenda de Santo Honorato. Os pais de Madalena não esperavam semelhante surpresa. Cuidadosamente, sondaram o espírito da filha, verificando-lhe a aquiescência e a resolução, no cometimento que condizia com a sua felicidade futura. Entretanto, havia alguma coisa a considerar e que representava amargo aborrecimento para os velhos fidalgos. Era o implícito compromisso familiar com Antero de Oviedo. D. Margarida e D. Inácio sentiam, sinceramente, o fato de serem compelidos a apresentar ao sobrinho uma negativa inesperada e demolidora de todos os seus sonhos de rapaz. Ambos o consideravam qual outro filho adotivo. No entanto, não seria possível contrariar as inclinações de Madalena, que nunca lhes causara o menor pesar. Altamente preocupados, os bondosos velhos esperaram a primeira oportunidade para conversarem a sós com o sobrinho, o que se verificou dois dias após o recebimento da carta de Cirilo. Madalena ausentara-se e essa circunstância dava ensejo a entendimentos desejáveis e justos.

D. Inácio, nessa noite, tratou o rapaz com maior compreensão, não sabendo como abordar o assunto. D. Margarida, muito carinhosa, observando que o marido titubeava e vacilava, fixou os olhos serenos no sobrinho e falou:

— Meu filho, hoje temos uma notícia a dar-te: — Madalena foi pedida em casamento por D. Cirilo Davenport.

Antero fez-se pálido e respondeu rudemente:

— Coisa estranhável, na verdade, porque espero minha prima desde a infância.

— No entanto — continuou D. Margarida com voz pausada — Madalena está de acordo e não podemos nem devemos contrariá-la.

Antero levantou-se, passeou nervosamente pela sala e observou exaltado:

— É uma ingratidão! Onde está meu tio que não lhe faz sentir a sua autoridade, capaz de varrer do seu caminho esse irlandês audacioso, sem títulos e sem dinheiro?

Nominalmente citado, D. Inácio respondeu.

— Madalena nunca me deu o mais leve aborrecimento e a autoridade apenas se exerce com aqueles que a desrespeitam.

— Esse casamento, porém, é um absurdo — exclamou Antero fora de si.

— Quem poderá decifrar os mistérios do coração, meu filho? — atalhou D. Margarida afetuosamente.

E a discussão acendeu-se. A custo o rapaz sentou-se ao lado da velha tia, atendendo-lhe aos apelos carinhosos. Mas tanto manifestou seus pensamentos de inconformação e de ironia, que D. Inácio foi dominado por violenta irritação. Ouvindo certas palavras ásperas do tio, o rapaz retrucou com acrimônia:

— Não posso conferir tamanho direito às suas opiniões. Afinal de contas, o senhor tem débitos bem pesados para comigo, antes de considerar qualquer privilégio ao irlandês miserável que me anula as esperanças.

D. Inácio Vilamil esboçou um gesto de justa indignação e revidou:

— Sei que te devo dinheiro, mas não desconheces que nos deves os cuidados da educação. Supões, acaso, que te criaste em nossa casa a poder de brisas e votos brilhantes? Se reclamas aquilo que te devo em escudos, como te poderia pagar com as coisas privativas do coração de minha filha?

O rapaz recebeu a reprimenda ríspida, mal se contendo para não agredir o velho tutor, que lhe falava e gesticulava grandemente irritado.

A boa senhora, todavia, interveio amorosa, e como o sobrinho chorasse de raiva, tomou-lhe as mãos com muito carinho e procurou consolá-lo:

— Não te encolerizes, Antero! És nosso filho pelo coração, antes de tudo! Considera, pois, que Madalena é tua irmã. Poderias estimá-la, tão somente a título de esposa? Recorda que não podemos dispensar tua afetuosa companhia… Quem nos há confortado o coração, em tempos tão duros de provação e de esperanças desfeitas? Não guardes rancor, modifica os sentimentos a respeito de tua irmã. Há de surgir, por certo, em teu caminho, um matrimônio feliz. És moço, ativo, trabalhador. Não te faltará uma noiva carinhosa, que encha o teu caminho de luzes novas. Tudo será uma questão de tempo e boa vontade…

O rapaz, apesar da paixão doentia que lhe enchia o cérebro de odiosas preocupações, amava singularmente a velha tia — a única alma que lhe havia proporcionado na orfandade carinhos e afagos maternais. Ouvindo-a, desabafou. Não podia saber se chorava de amargura ou de despeito, mas, fosse como fosse, aquele pranto convulsivo aliviava-lhe o coração.

D. Inácio lançou ao sobrinho um olhar de ironia e, depois de um gesto de enfado, abandonou a sala, enquanto D. Margarida continuava, olhos também marejados de pranto:

— Desanuvia o espírito, meu filho! Insisto para que continues junto de nós. Pediremos a D. Cirilo resida nesta casa, após o consórcio e, quando te resolvas a organizar tua casa, permanecerás, igualmente, em nossa companhia, até que me feches os olhos para sempre. Se Deus me der vida, Antero, consagrarei minha velhice aos teus filhinhos, que serão meus netos pelo coração. Acostuma-te, pois, a encarar Madalena de outro modo. Não odeies D. Cirilo, a quem seus sonhos de moça elegeram noivo amado, neste mundo. Não será melhor que se unam e vivam junto de mim, como irmãos carinhosos e dedicados? Além do mais, é indispensável consideres, em tudo, a execução dos desígnios santos de Deus. Naturalmente que a tua felicidade não será esquecida pelo Céu. Rogarei ao Altíssimo te conceda uma esposa devotada e afetuosa, a fim de que, mais tarde, possa eu acariciar os teus filhinhos, em cada dia.

Ante aquelas manifestações carinhosas, Antero pareceu lavar o coração, expulsando para longe do espírito as mágoas mais fortes; contudo, no recesso do ser guardava rancor indefinível e profundo, que lhe arruinaria a existência. Sentia-se sem forças para alijar a figura da prima do quadro das idealizações mas íntimas. Conformar-se-ia com o inevitável, mas não renunciaria aos seus desejos. D. Margarida repetia os conceitos carinhosos que lhe caíam n’alma como anestésicos suaves, mas, à medida que enxugava os olhos, ele recolhia, no âmago do espírito, propósitos de vingança, como venenos sutis. Depois de largos minutos de meditação, tinha os olhos fixos, como alucinado por ideia terrível. Permaneceria, sim, junto da velha tia, cuja afeição o preparara na vida com infinita ternura; mas, sentia-se inclinado a disputar Madalena até ao fim de seus dias. Recordava, rancorosamente, as observações frias e ásperas do tio, e refletiu que D. Inácio lhe pagaria as objeções, a seu ver, audaciosas e ingratas. Não lhe cobraria os débitos contraídos com ele próprio, mas o velho fidalgo tinha outros credores, cujos títulos ele endossara, confiadamente. Buscaria, desse modo, retirar as garantias dadas, logo que julgasse a medida oportuna. Quanto ao atrevido Davenport, esse teria de experimentar, cedo ou tarde, o peso de sua vindita cruel. O tortuoso caminho do mundo estava cheio de surpresas. Conservar-se-ia ao lado da prima, qual sentinela, sem repouso. O afeto que lhe votava, a seu ver, não admitia condenáveis substituições. Continuaria amando-a por toda a vida. Não podia pensar noutra mulher que lhe tomasse o lugar no coração. Quem adivinharia o futuro? Madalena poderia não casar e, se o fizesse, era possível que sobreviesse o desencanto conjugal, ou que enviuvasse algum dia. Se tal acontecesse, estaria, pois, a seu lado, a fim de lhe atender ao primeiro sinal.

Após o incidente doméstico, dissimulou com habilidade o odioso rancor que lhe anuviava o espírito, pareceu resignado com a marcha dos acontecimentos.

Cirilo e Madalena estavam longe de pensar nas maquinações sombrias do primo, que lhes presenciava o romance de amor, entre sorrisos indefiníveis e complacentes.

E as semanas corriam formosas e calmas, enfeitadas de projetos deliciosos para o porvir.

Susana, por sua vez, em virtude da influência paterna, ocultou o ódio mortal que lhe intoxicava o coração e, nas festividades com que foi solenizado o casamento de Carolina, na pacata cidade de Blois, procurou reaproximar-se de Madalena, com hipocrisia surpreendente. No baile, exibira preciosa fantasia, tranquilizando o velho Jaques pelo ruidoso prazer e acolhimento carinhoso que dispensava aos noivos, vindos de Paris.

Tudo, afinal, parecia concorrer para a felicidade dos jovens, que não cabiam em si de contentamento e esperança.

Longa carta dos pais de Cirilo dava conta de seu assentimento ao matrimônio, em vista das afetuosas observações de Jaques. Endereçavam ao filho e a futura nora votos de felicidade e paz e lamentavam a impossibilidade de uma excursão à França, para abraçá-los pelo auspicioso acontecimento. Madalena sentiu-se mais tranquila após essa carta, desvanecendo os derradeiros resquícios de inquietação.

O jovem Davenport, plenamente identificado com os futuros sogros, sem maior experiência do mundo, concordou, satisfeito, com a solicitação para morarem todos juntos. D. Inácio Vilamil foi o primeiro a tanger o assunto, alegando a moléstia da esposa e o seu demasiado apego à filha. A jovem sempre constituíra o amparo de sua casa e o conforto de seus dias. Filha única, Madalena resumia para os genitores amorosos o ponto central de seus interesses afetivos. D. Margarida andava sempre enferma, e quanto a ele, de há muito não se sentia menos abatido. A ausência da filha sepultaria o ambiente doméstico em tristeza irreparável. Consentindo em casá-la, não desejavam pensar no seu afastamento, e sim na aquisição de mais um filho, que seria o genro, a dilatar-lhes o patrimônio de santas esperanças. Não somente os aspectos espirituais foram lembrados. Semelhante decisão pouparia aos cônjuges a laboriosa montagem de uma casa com todos os requisitos da vida comum. D. Inácio ponderou as mínimas conveniências de fundo econômico, imprimindo às palavras a força poderosa de suas convicções íntimas. Cirilo ouviu-lhe os pareceres com atenção, acedendo, comovido, aos seus pedidos e, compreendendo as dificuldades de ordem material, procurou aplanar todos os obstáculos defrontados pela família da noiva.

E foi assim que, numa atmosfera de profunda simplicidade e simpatia, realizaram-se as núpcias de Madalena com o rapaz irlandês, no modesto templo consagrado à memória de Santa Genoveva, em Paris. 

Carolina e o esposo, que passaram a residir em remoto vilarejo do norte, não se abalançaram a viajar com o frio intenso, e Susana, depois de ligeiras providências na capital francesa, partira, dias antes, para a Irlanda, em companhia de uma família amiga, de Alençon; mas o generoso Jaques tomara um carro em Blois, a fim de assistir à cerimônia modesta trazendo carinhosas lembranças do seu velho parque para os noivos queridos.

Com exceção de três amigas dedicadas da jovem, inclusive Colete e Cecília, a solenidade foi apenas acompanhada pelo tio de Blois, pelos pais da noiva e por Antero de Oviedo, que dissimulava dificilmente o ódio que lhe corroia a alma ardente.

Cirilo e Madalena, porém, naquele instante, ignoravam que houvesse perversidade na Terra e não queriam saber de homenagens mundanas. Unidos no seu imenso amor, perante o altar dedicado à padroeira de Paris, foi com sublime enlevo que receberam a bênção do sacerdote, em nome de Deus. Contemplaram-se reciprocamente, em seus votos de imperecível aliança, como se estivessem atravessando, naquela hora, as portas brilhantes do Paraíso, e, entre os amplexos afetuosos que os cercaram em doce vibração de carinho, o jovem par, fremente de alegria, acreditou haver encontrado o ninho da felicidade perpétua.


Emmanuel




[1] Luís XIV
[2] Henriqueta Anna, da Inglaterra.  †  — Nota de Emmanuel.
[3] Filipe de Orléans, irmão de Luís XIV  †  — Nota de Emmanuel.
[4] Não nos referimos à Abadia de Santa Genoveva,  †  que se localizava, antigamente, ao sul de Paris. — Nota de Emmanuel.


Fonte: Bíblia do Caminho † Testamento Xavieriano



ÁUDIO:

Rádio Novela Espírita da obra "Renúncia" (Emmanuel / Chico Xavier)
Minissérie de Tony de França





Retratando o período conturbado que envolveu a instalação do Santo Ofício, a reforma protestante, as perseguições, a Companhia de Jesus. Neste romance, Emmanuel descreve a existência de Alcíone, Espírito que passa por uma encarnação de renúncias e dedicação a todos que a cercam, demonstrando heroísmo e lealdade, na frívola Paris do reinado de Luís XIV.

Apresenta o sacrifício de amor desse abnegado Espírito que volta à luta terrestre para estar com aquele ser por quem havia intercedido no plano Espiritual, propondo-se ajudá-lo nas provas, expiações e reparações da nova existência na Terra.

O grande amor do passado, os acertos e desacertos desse grupo que reencarna em conjunto para novas conquistas espirituais e a dedicação amorosa da doce Alcíone servem de moldura para o desenrolar ágil e envolvente dessa trama, marcada, também, por sentimentos violentos.


Adaptação: Tony de França


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