terça-feira, 31 de agosto de 2021

Joanna de Ângelis - Livro Conflitos Existenciais - Divaldo P. Franco - Cap. 3 - Raiva - Pág. 25 - Raiva e primarismo




Joanna de Ângelis - Livro Conflitos Existenciais - Divaldo P. Franco - Cap. 3 - Raiva - Pág. 25


Raiva e primarismo


A raiva é um sentimento que se exterioriza toda vez que o ego sente-se ferido, liberando esse abominável adversário que destrói a paz no indivíduo. Instala-se inesperadamente, em face de qualquer conflito expresso ou oculto, desferindo golpes violentos de injúria e de agressividade.

Inerente a todos os animais, no ser humano, porque portador de vontade e discernimento, é responsável por transtornos que conseguem obscurecer lhe a razão e perturbar lhe o equilíbrio, produzindo danos emocionais de pequeno ou grande alcance, a depender da extensão e da profundidade de que se reveste.

Quando existe a primazia dos instintos agressivos, na contextura do ser, este, diante de qualquer ocorrência desagradável, real ou imaginária, rebolca-se na situação danosa, em agitação inconsequente, cujos resultados são sempre la­mentáveis, quando não funestos.

Predominando nele o instinto de arbitrária domi­nação, em falsa postura de superioridade, percebendo a fragilidade dessa conduta e a impossibilidade de impor-se, porque não considerado quanto gostaria, recorre ao me­canismo psicológico da raiva para exteriorizar a violência ancestral que lhe dorme no íntimo.

A semelhança de um incêndio que pode começar numa fagulha e trazer prejuízos incalculáveis pela sua ex­tensão, a raiva também pode ser ateada por uma simples insinuação de pequena monta, transformando-se em vul­cão de cólera destruidora, que avassala.

Há indivíduos especialmente dotados da facilidade de enraivecer-se, que alternam essa emoção com a psicastenia - palavra cunhada por C. G. Jung, como uma fraque­za psíquica responsável por um estado de astenia psíquica constitucional, com forte tendência para a depressão, o medo, a incapacidade de suportar desafios e dificuldades mentais...

A raiva produz uma elevada descarga de adrenalina e cortisol no sistema circulatório, alcançando o sistema nervoso central, que se agita, produzindo ansiedade e manten­do o sangue na parte superior do corpo, no que resultam diversos prejuízos para as organizações física, emocional e psíquica. Repetindo-se com frequência, produz o endurecimen­to das artérias e predispõe a vários distúrbios orgânicos... 

De alguma forma, a raiva é um mecanismo de defesa do instinto de conservação da vida, que se opõe a qual­quer ocorrência que interpreta como agressão, reagindo, de imediato, quando deveria agir de maneira racional. Porque tolda a faculdade de discernir, irrompe, desastrosa, assinalando a sua passagem por desconforto, cansaço e amolentamento das forças, logo cessa o seu furor...

O animal selvagem, quando perseguido ou esfaimado ataca, para logo acalmar-se, conseguido o seu objetivo.

O ser humano, além dessa conduta, agride antes, por medo de ser agredido, aumentando a gravidade de qual­quer ato sob a coerção do pânico que se lhe instala de mo­mento, ante situações que considera perigosas, evitando racionalizar a atitude, antes parecendo comprazer-se nela, sustentando a sua superioridade sobre o outro, aquele a quem atribui o perigo que lhe ronda.

O seu processo de evolução do pensamento e da consciência, porque estacionado nos remanescentes do período egocêntrico, ora transformado em egoico, estimula esse comportamento inoportuno e prejudicial, cujos efei­tos danosos logo serão sentidos em toda a sua extensão.

O círculo da raiva é vicioso, porque o indivíduo adapta-se a essa injunção, passando a gerar um compor­tamento agressivo, quando não vivenciando uma postura contínua de mau humor.

Essa raiva inditosa é resultado de pequenas frustra­ções e contínuas castrações psicológicas, muitas vezes ini­ciada na constelação familiar, quando pais rigorosos e im­prudentes, violentos e injustos, assumem postura coercitiva em relação aos filhos, impondo-se-lhes, sem a possibilidade de diálogos esclarecedores. Lentamente vão-se acumulando esses estados de amargura pela falta de oportunidade de defesa ou de justificação, que se convertem em revolta surda, explodindo, indevidamente, quando já se faz uma carga muito pesada na conduta.

Por natural necessidade de afirmação da personalida­de, a criança é teimosa, especialmente por falta de discerni­mento, por necessidade de adquirir experiências, gerando atrito com os pais e familiares mais velhos, que nem sem­pre estão dispostos a conversar com esclarecimentos ou sa­bem como equacionar esses conflitos do desenvolvimento intelectual e emocional do educando.

Exigem silêncio, respeito, não permitindo as discus­sões francas e próprias para os esclarecimentos que se tor­nam necessários ao entendimento das situações existenciais e das possibilidades de ação, no que é ou não concernente a cada um cumprir. Também ocorre quando são genitores descuidados que não se interessam pelos problemas da prole, causando-lhe um fundo ressentimento, a princípio inconsciente, para desbordar em raiva acumulada.

Outras vezes, como resultado da timidez, o indiví­duo refugia-se na raiva, e porque não a pode expressar, foge para transtornos profundos que o maceram.

A falta de conhecimento das próprias debilidades emocionais faz que não disponha de equilíbrio para enfrentamentos, competições, discussões, derrapando facil­mente no comportamento infeliz da raiva.

Acidentes automobilísticos, em grande número, são resultado da raiva mal contida de condutores que não se conformam quando outrem deseja ultrapassá-los na rodo­via, nas ruas e avenidas, embora estivessem viajando em marcha reduzida. Sentindo-se subestimado pelo outro -raciocínio muito pessoal e sem fundamento — em vez de cederem a passagem, quando observam que o outro veículo se lhes emparelha, aceleram e avançam ambos, raivosos, até o surgimento de um terceiro em sentido oposto, obedecendo, porém, as regras, no que se transforma em tragédia. Bastasse um pouco de bom-tom, de serenidade, para cooperarem um com o outro, e tudo seria resolvido sem qualquer dano.

Durante os desportos, na política, na religião, na arte, participando ou acompanhando-os, não admitem es­ses aficionados a vitória do outro, a quem consideram adversário, quando é somente competidor, enraivecendo-se e dando lugar a situações graves, muitas vezes redundando em crimes absurdos.

A raiva é choque violento que abala profundamente o ser humano, deixando rastros de desalento e de infelicidade.

Ela está habitualmente presente nos debates domés­ticos, quando os parceiros não admitem ser admoestados ou convidados à reflexão por atitudes incompatíveis com a própria afetividade ou decorrentes de situações que sur­gem, necessárias para os esclarecimentos que facultem a melhora de conduta.

Em vez da análise tranquila do fenômeno, a tirania do ego exalta-o, o instinto de predominância do mais forte ressuma e a pessoa acredita que está sendo diminuída, cri­ticada, passando a reagir antes de ouvir, a defender-se antes da acusação, partindo para a agressão desnecessária, de que sempre arrepende-se depois. 


Joanna de Ângelis








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