Lavater - Revista Espírita - Jornal de estudos psicológicos - Allan Kardec, Ano XI, Março de 1868
Correspondência inédita de Lavater com a imperatriz Maria da Rússia - 2ª carta
As necessidades experimentadas pelo espírito humano, durante seu exílio no corpo material, continuam as mesmas logo depois que o deixou. Sua felicidade consistirá na possibilidade de poder satisfazer suas necessidades espirituais; sua danação, na impossibilidade de poder satisfazer seus apetites carnais, num mundo menos material.
As necessidades não satisfeitas constituem a danação; sua satisfação constitui a felicidade suprema.
Eu gostaria de dizer a cada homem: “Analisa a natureza de tuas necessidades; dá-lhes o seu verdadeiro nome; pergunta-te a ti mesmo: são admissíveis num mundo menos material? Podem elas aí encontrar sua satisfação?” E se verdadeiramente aí puderem ser satisfeitas, serão daquelas que um Espírito intelectual e imortal poderia honestamente confessar e desejar a sua satisfação, sem sentir uma profunda vergonha ante outros seres intelectuais e imortais como ele?
A necessidade que sente a alma de satisfazer às aspirações espirituais de outras almas imortais; de lhes proporcionar os puros prazeres da vida; de inspirar-lhes a certeza da continuação de sua existência após a morte; de cooperar assim no grande plano da sabedoria e do amor supremos; o progresso adquirido por essa nobre atividade, tão digna do homem, assim como o desejo desinteressado do bem, dão às almas humanas a aptidão e, portanto, o direito de serem recebidas nos grupos e nos círculos de Espíritos mais elevados, mais puros, mais santos.
Mui venerada Imperatriz, quando temos a íntima persuasão de que a necessidade mais natural, e entretanto muito rara, que possa nascer numa alma imortal: a de Deus, a necessidade de dele se aproximar cada vez mais, sob todos os aspectos, e de se assemelhar ao Pai invisível de todas as criaturas, torna-se predominante em nós, oh! então não devemos experimentar o menor receio concernente o nosso estado futuro, quando a morte nos tiver desembaraçado de nosso corpo, esse muro espesso que nos ocultava Deus. Esse corpo material que nos separava dele é abatido, e o véu que nos ocultava a vista do mais santo dos santos é rasgado. O Ser adorável que amávamos acima de tudo, com todas as suas graças resplandecentes, terá então livre entrada em nossa alma dele faminta e o recebendo com alegria e amor.
Logo que o amor sem limites por Deus tiver predominado em nossa alma, por força dos esforços que tiver feito para dele se aproximar e a ele se parecer em seu amor vivificante da Humanidade, e por todos os meios que tinha em seu poder, essa alma, desembaraçada de seu corpo, passando necessariamente por muitos degraus para se aperfeiçoar sempre mais, subirá com uma facilidade e uma rapidez espantosas para o objeto de sua mais profunda veneração e de seu amor ilimitado, para a fonte inesgotável e a única suficiente para a satisfação de todas as suas necessidades, de todas as suas aspirações.
Nenhum olho fraco, doente ou velado, está em condições de olhar o Sol de frente; do mesmo modo, nenhum Espírito não depurado, ainda envolto no nevoeiro material de uma vida exclusivamente material, mesmo no momento de sua separação do corpo, não estaria em estado de suportar a vista do mais puro sol dos Espíritos, na sua claridade resplandecente, seu símbolo, seu foco, de onde emanam essas ondas de luz que penetram até mesmo os seres finitos com o sentimento de sua infinitude.
Quem melhor que vós, senhora, sabe que os bons não são atraídos senão pelos bons! Que só as almas elevadas sabem gozar da presença de outras almas de escol! Todo homem que conhece a vida e os homens, aquele que muitas vezes foi obrigado a encontrar-se na companhia desses zombadores desonestos, efeminados, faltos de caráter, sempre apressados em realçar e fazer valer a palavra mais insignificante, a menor alusão daqueles cujo favor disputam, ou então desses hipócritas que procuram astuciosamente penetrar as ideias alheias, para em seguida interpretá-las num sentido absolutamente contrário, aquele, digo eu, deve saber quanto essas almas vis e escravas de súbito se embaraçam a uma simples palavra pronunciada com firmeza e dignidade. Quanto apenas um olhar severo os confunde, fazendo-os sentir profundamente que os conhecem e que os julgam por seu justo valor! Como então se lhes torna penoso suportar a presença de um homem honesto! Nenhuma alma velhaca e hipócrita é feliz ao contato de uma alma proba e enérgica que a penetra. Cada alma impura, tendo deixado o seu corpo, deve, segundo sua natureza íntima, como impulsionada por uma força oculta e invencível, fugir da presença de todo ser puro e luminoso, para lhe ocultar, tanto quanto possível, a vista de suas numerosas imperfeições que ela não está em condições de ocultar a si própria, nem aos outros.
Mesmo que não tivesse sido escrito: Ninguém, sem ser depurado, poderá ver o Senhor, isto estaria perfeitamente na ordem das coisas. Uma alma impura se acha numa impossibilidade absoluta de entrar em qualquer tipo de relação com uma alma pura, bem como de sentir por ela a menor simpatia. Uma alma assustada pela luz não pode, por isto mesmo, ser atraída para a fonte da luz. A claridade privada de toda obscuridade deve queimá-la como um fogo devorador.
E quais são as almas, senhora, que chamamos impuras? Penso que são aquelas nas quais o desejo de se depurar, de se corrigir, de se aperfeiçoar, jamais predominou. Penso que são aquelas que não estão submetidas ao princípio elevado do desinteresse em todas as coisas; aquelas que se escolheram a si mesmas para centro único de todos os seus desejos e de todas as suas ideias; aquelas que se olham como o objetivo de tudo o que está fora delas; que não buscam senão o meio de satisfazer suas paixões e seus sentidos; aquelas, enfim, nas quais reinam o egoísmo, o orgulho, o amor-próprio e o interesse pessoal; que querem servir a dois senhores que se contradizem, e isto simultaneamente.
Semelhantes almas, penso eu, devem achar-se após a separação de seus corpos, no miserável estado de uma horrível contemplação de si mesmas; ou então, o que dá no mesmo, do desprezo profundo que sentem por si próprias, e serem arrastadas por uma força irresistível para a horrorosa companhia de outras almas egoístas, condenando-se elas próprias incessantemente.
É o egoísmo que produz a impureza da alma e a faz sofrer. Ele é combatido em todas as almas humanas por alguma coisa que lhe é contrária, algo de puro, de divino: o sentimento moral. Sem esse sentimento, o homem não é capaz de nenhum prazer moral, de nenhuma estima, de nenhum desprezo por si mesmo, e não compreende o Céu, nem o inferno. Esta luz divina lhe torna insuportável toda obscuridade que descobre em si, e é a razão pela qual as almas delicadas, aquelas que possuem o senso moral, sofrem mais cruelmente quando o egoísmo delas se apropria e subjuga esse sentimento.
Da concordância e da harmonia que subsistem no homem, entre ele próprio e sua lei interior, dependem sua pureza, sua aptidão para receber a luz, sua felicidade, seu céu, seu Deus. Seu Deus lhe aparece na sua semelhança consigo mesmo. Àquele que sabe amar, Deus aparece como o supremo amor, sob mil formas amantes. Seu grau de felicidade e sua aptidão para tornar os outros felizes são proporcionais ao princípio do amor que nele reina. Aquele que ama com desinteresse fica em harmonia incessante com a fonte de todo amor e com todos os que aí bebem o amor.
Procuremos conservar em nós o amor em toda a sua pureza, senhora, e seremos sempre arrastados por ele para junto das almas mais amantes. Purifiquemo-nos todos os dias, cada vez mais, das manchas do egoísmo, e então, ainda que tivermos de deixar este mundo hoje ou amanhã, devolvendo à terra o nosso envoltório mortal, nossa alma tomará o seu voo com a rapidez do relâmpago na direção do modelo de todos aqueles que amam, e reunir-se-á a eles com uma felicidade inexprimível.
Nenhum de nós pode saber em que se tornará a sua alma após a morte do corpo, contudo, estou plenamente persuadido que o amor depurado deve necessariamente dar ao nosso Espírito liberto do corpo, uma liberdade sem limites, uma existência cêntupla, um gozo contínuo de Deus, e um poder ilimitado para tornar felizes todos os que estão aptos a gozar a felicidade suprema.
Oh! Como é incomparável a liberdade moral do Espírito despojado de seu corpo! Com que rapidez a alma do ser amante, cercada de uma luz resplandecente, efetua a sua ascensão! Como a ciência infinita, como a força de se comunicar aos outros se tomam o seu apanágio! Que luz jorra dela mesma! Que vida anima todos os átomos de que é formada! Ondas de gozos se lançam de todos os lados ao seu encontro, para satisfazer suas necessidades mais puras e mais elevadas! Inumeráveis legiões de seres amantes lhe estendem os braços! Vozes harmoniosas se fazem ouvir nesses coros numerosos e radiantes de alegria e lhe dizem: “Espírito de nosso Espírito! Coração de nosso coração! Amor haurido na fonte de todo amor! Alma amante, tu nos pertences a nós todos, e nós somos todas tuas! Cada um de nós é teu e tu pertences a cada um de nós. Deus é amor e Deus é nosso. Estamos todos cheios de Deus e o amor encontra sua felicidade na felicidade de todos.”
Desejo ardentemente, mui venerada imperatriz, que vós, vosso nobre e generoso esposo, o imperador, tão dedicados um e outro para o bem, e eu convosco, possamos jamais não nos tornarmos estranhos ao amor que é Deus e homem ao mesmo tempo; que nos seja concedido nos prepararmos para os gozos do amor, por nossas ações, nossas preces e nossos sofrimentos, aproximando-nos daquele que se deixou pregar na cruz do Gólgota.
Zurique, 18 de agosto de 1798,
Jean-Gaspar Lavater
Já se pode ver em que ordem de ideias Lavater escrevia à imperatriz Maria, e até que ponto possuía ele a intuição dos princípios do Espiritismo moderno. Julgaremos melhor ainda pelo complemento dessa correspondência notável. Enquanto esperamos as reflexões com que a acompanharemos, julgamos conveniente, desde já, destacarmos um fato importante: é que para manter uma correspondência sobre semelhante assunto com a imperatriz, era preciso que esta partilhasse dessas ideias, e várias circunstâncias não permitem duvidar que o mesmo se passava com o czar, seu esposo. Era a pedido dela, ou melhor, a pedido de ambos, que Lavater escrevia, e o tom das cartas prova que ele se dirigia a pessoas convictas. Como se vê, as crenças espíritas, nas altas esferas, não datam de hoje. Aliás, pode-se ver, na Revista de abril de 1866, o relato de uma aparição tangível de Pedro o Grande a esse mesmo Paulo I.
As cartas de Lavater, lidas na Sociedade de Paris, determinaram uma conversação a propósito. Sem dúvida atraído pelo pensamento que na ocasião lhe era dirigido, Paulo I manifestou-se espontaneamente e sem evocação, por intermédio de um dos médiuns, ao qual ditou a seguinte comunicação:
(Sociedade de Paris, 7 de fevereiro de 1868 - Médium: Sr. Leymarie)
O poder é coisa pesada, e os aborrecimentos que deixa impressionam dolorosamente a nossa alma! Os desgostos são contínuos; há que conformar-se aos hábitos, às velhas instituições, ao preconceito, e Deus sabe quanta resistência é necessária para se opor a todos os apetites que vêm bater no trono, como ondas tumultuosas. Assim, que felicidade quando, deixando um instante essa túnica de Nessus chamada realeza, a gente pode encerrar-se num lugar pacífico, onde se pode repousar em paz, longe do ruído e do tumulto das ambições!
Minha querida Maria gostava da calma. Natureza sólida, suave, resignada, amorosa, ela teria preferido o esquecimento das grandezas para se votar completamente à caridade, para estudar as altas questões filosóficas que eram a mola propulsora de suas faculdades. Como ela, eu gostava desses recreios intelectuais; eles eram um bálsamo para as minhas feridas de soberano, uma força nova para me guiar no dédalo da política europeia.
Lavater, esse grande coração, esse grande Espírito, esse irmão predestinado, nos iniciava na sublime doutrina. Suas cartas, que hoje possuís, eram por nós esperadas com ansiedade febril. Tudo o que elas encerram era a miragem dos nossos ideais pessoais. Nós líamos essas cartas queridas com uma alegria infantil, felizes por depor a nossa coroa, a sua gravidade, a sua etiqueta, para discutir os direitos da alma, sua emancipação e seu curso divino para o eterno.
Todas essas questões, hoje causticantes, nós as aceitamos há setenta anos. Elas faziam parte de nossa vida, de nosso repouso. Muitos dos efeitos estranhos, aparições, ruídos, tinham fortalecido a nossa opinião a esse respeito. A imperatriz Maria via e ouvia os Espíritos; por eles ela tinha tomado conhecimento dos acontecimentos passados a grandes distâncias. Um príncipe Lopoukine, morto em Kiew, a centenas de léguas, tinha vindo nos anunciar sua morte, os incidentes que tinham precedido a sua partida, a expressão de suas últimas vontades. A imperatriz tinha escrito, ditado pelo Espírito de Lopoukine, e apenas vinte dias depois sabia-se na corte todos os detalhes que possuíamos. Eles foram para nós uma brilhante confirmação, e também a prova que Lavater e nós éramos iniciados às grandes verdades.
Hoje conhecemos melhor, por vós, a doutrina cuja base alargastes. Viremos pedir-vos alguns instantes e vos agradecemos antecipadamente, se tiverdes a bondade de escutar Maria da Rússia e este que teve o favor de tê-la por companheira. (Paulo I)
Allan Kardec
Fonte: Kardecpedia
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