sábado, 23 de julho de 2022

Camilo - Memórias de um Suicida - Camilo Castelo Branco / Léon Denis / Yvonne A. Pereira - Pt. 3 - A Cidade Universitária - Cap. 3 - Homem, Conhece-te a Ti Mesmo!



Camilo - Memórias de um Suicida - Camilo Castelo Branco / Léon Denis / Yvonne A. Pereira - Pt. 3 - A  Cidade Universitária - Cap. 3


Homem, Conhece-te a Ti Mesmo!


Outros cursos fazíamos, não menos importantes para a nossa reeducação, alternadamente com o da moral estatuída pelo insigne Mestre nazareno. Um deles prendia-se à Ciência Universal, cujos rudimentos nos deram, então, a conhecer — dois anos depois de iniciados no curso de Moral Cristã —, por estudos profundos, análises tão penosas quão sublimes! E nestas mesmas análises entrava a necessidade de estudarmos a nós próprios, aprendendo a nos conhecermos intimamente! Exames pessoais melindrosos eram efetuados com minúcias aterrorizantes para o nosso orgulho e para a nossa vaidade, paixões daninhas que nos haviam ajudado na queda para o abismo, ao mesmo tempo em que, sendo as aulas mistas, adquiríamos o duplo ensinamento de dissecar também o caráter, a consciência, a alma, enfim, de nossos pares, como de nossas irmãs de infortúnio, o que nos conferia valioso conhecimento da alma humana!

Era lente dessa cadeira magnífica o venerando educador Epaminondas de Vigo, Espírito cuja rigidez de costumes, virtudes inatacáveis e energia inquebrantável, infundiam-nos mais que respeito, verdadeira impressão de pavor! Em sua presença sentíamos, desnudados dos disfarces de quaisquer atenuantes inventadas pelos sofismas conciliatórios, o peso vergonhoso da inferioridade que nos assinalava, o opróbrio da incómoda situação de responsáveis por delitos degradantes, pois dominava as potencialidades da nossa mente a convicção de que não passávamos de rebeldes cuja insensatez obrigava obreiros abnegados do mundo espiritual a sacrifícios permanentes a fim de conseguirem elevar--nos das trevas em que nos precipitáramos. Ora, a vergonha que açoitava nossos Espíritos em presença de Epaminondas era um suplício, novo e inesperado, de natureza absolutamente moral, porém, superlativa, que se apresentava nesta segunda fase da nossa situação de suicidas em preparo de futuras realizações reparadoras.

O emérito educador auxiliava-nos a esfolhar a própria consciência, levando-a a desdobrar-se até as recordações remotas das sucessivas migrações terrenas que tivéramos no pretérito! Quando perscrutava nossa alma, devassando-a com o olhar cintilante de forças psíquicas quais baterias de irresistíveis energias, profundos abalos sacudiam os refolhos do nosso ser, ao passo que desejos aflitivos de fuga precipitada, que nos acobertasse de sua presença, como da nossa própria, alucinavam nossos sentidos! Enquanto Aníbal de Silas, com a ternura consolatória do Evangelho, acendia em nosso seio fachos beneficentes de confiança no porvir, clareando o âmbito de nossas vidas com as alvissareiras possibilidades de redenção, Epaminondas arrancava lágrimas de nossos corações, renovava angústias ao obrigar-nos a estudos no imenso livro da alma, arrastando-nos a estados de sofrimentos cuja intensidade e aterradora complexidade, absolutamente inconcebível à mente humana, faziam-nos atingir os limites da loucura! Por essa razão o temíamos, e era, dominados por um sentimento forte de pavor, a par de angústias irreprimíveis, que subíamos, diariamente, as escadarias da Academia para com ele aprendermos os primórdios da terrível disciplina exigida igualmente de antigos iniciados das Escolas de Filosofia e Ciências do Egito e da Índia: o reconhecimento da inferioridade pessoal para o método da elevação moral pela autoeducação!

No entanto, tais aulas eram tão necessárias ao nosso desenvolvimento psíquico quanto o eram as de Aníbal! Eram mesmo o seu prosseguimento, como passaremos a expor mais adiante.

Havia, porém, um terceiro curso, o qual se resumia no ensaio da aplicação, na vida prática, dos valores adquiridos durante os estudos e observações dos cursos anteriormente mencionados. Em vez, porém, de nos instruírem para uma "prática profissional", como se diria em linguagem terrena, esse terceiro aprendizado, orientado para a prática da observância das Leis da Providência, que, havia séculos, infringíamos, tinha por mentor o lente Souria-Omar e desenvolvia-se, geralmente, fora do santuário, isto é, do recinto da Escola, de preferência na crosta da Terra e nos domínios inferiores do nosso Instituto.

Aos domingos repousávamos. Ainda mais não éramos que indivíduos cujas faculdades espirituais pouco desenvolvidas e, ainda mais, abaladas pelo traumatismo vibratorial provocado pelo suicídio, não permitiam labores continuados, como víamos exercerem nossos devotados instrutores, que jamais se achavam ociosos. Descansávamos, portanto, divertíamo-nos mesmo, tomando parte em reuniões fraternas efetuadas pelas vigilantes ou visitando, em caravanas amistosas, outros Departamentos da Colônia, inferiores ao nosso, assim revendo velhos amigos e antigos mestres, como Teócrito, e, dessa forma, prestando solidariedade e conforto a irmãos mais desditosos do que nós, que se encontrassem, por sua vez, naquelas dependências conhecidas. Nem assim, como vemos, deixávamos totalmente de exercer atividades. Aprendíamos, ainda! Progredíamos em conhecimentos obtendo, nas citadas reuniões, noções de Arte Clássica Transcendental, de que eram dignos expoentes não apenas nossos mestres, como outros que caridosamente nos visitavam, e até nossas vigilantes, que ensaiavam com eles nova modalidade de servir a Deus e à Criação, isto é, utilizando-se do belo, empregando a beleza!... pois convém acentuar que nossos mestres, sendo cientistas, também se revelavam estetas, enamorados da suprema beleza que se origina do sempiterno artista!

Vejamos, não obstante, em que consistiam as tão importantes quanto apavorantes aulas do eminente preceptor Epaminondas de Vigo, o qual, como sabemos, fora mestre de iniciação em antigas Escolas de Doutrina Secreta, na índia como no Egito.

Em um dos encantadores palácios da Avenida Académica instalava--se a Escola de Ciências da Universidade do Burgo da Esperança.

Majestoso e severo em suas linhas arquitetônicas, ao lhe penetrarmos os umbrais acometia-nos a impressão de que ali se venerava Deus com todas as forças da razão, da lógica e do conhecimento! Sopros de indefiníveis convicções abalavam nossas potências anímicas, fornecendo-nos a intuição de nossa própria pequenez em face da sabedoria, ao passo que fortes emoções infundiam-nos singular respeito pelo desconhecido que ali depararíamos, levando-nos às raias do terror! Lembrávamos então de Aníbal. Sua recordação arrastava para nossas lembranças a imagem dulcíssima do Mestre de Nazaré, a quem em toda a Colônia denominavam o Mestre dos mestres, o magnífico Reitor da Espiritualidade! Sentíamo-nos, então, encorajados, certos de que estávamos sob sua dependência, efetivamente abrigados em seu redil, por Ele amados e por Ele mesmo protegidos.

Exatamente idêntico ao recinto do Santuário onde se ministrava a Ciência do Evangelho, o novo sacrário apresentava a diferença de ostentar o célebre preceito grego ornamentando em fulgurações adamantinas o cimo da tela indispensável, em todas as aulas, para a captação das vibrações do pensamento:

"Homem! Conhece-te a ti mesmo!" antecedendo a uma não menos célebre sentença cristã cuja profundidade e excelsitude ainda revolverá o mundo terrestre e suas sociedades, espécie de autorização do Verbo divino para os trabalhos que se desenvolveriam sob a invocação de suas Leis:

"Ninguém entrará no Reino de Deus se não renascer de novo."40N.E.: JOÃO, 3:3.

Tornava-se evidente que os educadores por que nos víamos dirigidos subordinavam seus métodos às normas estatuídas por Jesus de Nazaré, ao qual inequivocamente demonstravam venerar como orientador e chefe do movimento impetrado não apenas em nosso favor, como da Humanidade toda. Que se tratava de iniciados cristãos de alta classe moral não tínhamos, pois, nenhuma dúvida. E se eram filósofos, cientistas, pesquisadores, sociólogos, pedagogos eméritos, como mais tarde tivemos ocasião de verificar, também era fora de dúvida que era na sublime Escola de Moral e Fraternidade estabelecida pelo Cristo de Deus que extraíam modelos e métodos para exercerem, entre os homens encarnados e os Espíritos em trânsito, as elevadas aptidões que possuíam.

Intrigados com tudo quanto nos era dado observar, acometiam--nos, por vezes, vertigens, ao raciocinarmos sobre a realidade da vida que em além-túmulo deparávamos, quando julgáramos nada mais existir depois que o último bocado de argila ocultasse nosso corpo inerte das vistas humanas!

Pressentindo, porém, logo da primeira vez, acontecimentos importantes em torno de nós próprios, ouvimos que discreto e sugestivo tilintar de uma campainha advertia-nos, atraindo nossa atenção. Respeitoso silêncio dominou o recinto. Dir-se-ia que todos os pensamentos se entrelaçavam na conjugação fraterna de sentimentos homogéneos, enquanto ondas fluídicas harmoniosas de Mais Alto desciam em jorros de bênçãos iluminativas, protegendo, inspirando os sacrossantos trabalhos que se seguiriam.

Levantou-se Epaminondas de Vigo.

Pela primeira vez "ouvimos" sua voz!

Enérgica, positiva, intrépida, imperiosa, a palavra do novo mestre, daquele que afrontara outrora o suplício da fogueira por amor aos alevantados ideais da Verdade, estendeu-se pelo salão imenso, vibrando sob as abóbadas que nos abrigavam e como que se decalcando para sempre nos meandros de nossas almas, acordando-nos as faculdades para novas conquistas morais, mentais, intelectuais e espirituais!

Franzino, modesto, venerável com suas barbas longas, que traziam a imaculada brancura de luminosidades transcendentes, aquele ancião que nos fora apresentado dois anos antes, e em quem supuséramos a vacilação da decrepitude, agora surgia aos nossos olhos surpresos em atitudes varonis, qual gigante da oratória, expondo as bases de uma Doutrina Renovadora até então desconhecida para nós, e cujos fundamentos se assentavam na Ciência Universal!

Inicialmente explicou-nos que cumpria, com efeito, recebermos, em primeiro lugar, os ensinos morais expostos nos evangelhos do Redentor, a fim de que, ao encanto de suas palavras remissoras, adquiríssemos critério suficiente para, só então, atingirmos outros esclarecimentos que, ministrados à revelia da reeducação moral fornecida por aqueles, resultariam estéreis senão mesmo nulos, se se não tornassem, antes, prejudiciais! A moral divina do Cristo Jesus, porém, saneando, de algum modo, nossa mente e, portanto, nosso caráter, de muita vileza que nos congestionava as faculdades, havia, naqueles dois anos de aplicação incansável, predisposto nosso "eu" para, agora, receber o prosseguimento do curso que nos favoreceria habilitações para reerguimento moral decisivo! Que, por essa circunstância, somente agora nos fora dado entrar em contato com ele, Epaminondas.

Que faríamos sob sua direção um curso leve, rápido, por assim dizer preparatório, de Ciência Universal, denominada, em antigas idades — Doutrina Secreta —, e outrora apenas ministrada a mentalidades muito esclarecidas e muito fortes, aptas, portanto, pelas virtudes de que dessem provas, de penetrarem mistérios de ordem divina, que se conservam, invariavelmente, ocultos às inteligências vulgares, ociosas ou presunçosas. Que, nos tempos remotos, anteriores ao advento do Missionário celeste, os ensinos secretos só eram ministrados a indivíduos que, durante dez anos, pelo menos, dessem as mais rigorosas provas de sanidade moral e mental; que, em idêntico espaço de tempo, demonstrassem, de forma inequívoca, a própria reforma interior, isto é, o domínio das paixões, dos instintos, dos desejos em geral, das emoções, pela vontade iluminada com as santas aspirações do bem e os testemunhos das virtudes. Mas que, com a descida do Mestre complacente das esferas de luz às sombras da Terra e às regiões astrais inferiores do mesmo planeta, fora popularizado o ensino secreto, porquanto sua Doutrina, uma vez firmando-se no coração da criatura, habilitá-la-ia a voos longos no terreno científico-psíquico! Ainda porque a doutrina messiânica trouxe à Humanidade esclarecimentos outros, rejeitados pelos homens, onde expressava Ele os valores imortais da Ciência Psíquica! Que, desde então, decretos divinos haviam ordenado que se desse do ensino secreto a todas as criaturas terrenas como a Espíritos em trânsito nas regiões astrais inferiores que circundam o planeta, pois o Pai supremo, condoído das amarguras humanas, oriundas da ignorância, desejava fossem todos os seus filhos

iluminados pelo sol das Verdades eternas! Que lutas insanas começaram então os prepostos da luz a sustentar com os condutores das paixões inferiores, luta áspera e constante, que se estendia por quase dois mil anos, e que de todos os recursos já haviam lançado mão os obreiros do Messias a fim de instruírem os rebeldes com as Verdades celestes, que teimam em não aceitar! E que, por isso mesmo, novos decretos haviam descido de Mais Alto, para que o ensino fosse ministrado mais ostensivamente, com toda a eficiência possível, bem assim a maior clareza, não a um ou a dois de boa vontade, mas à Humanidade toda, como a todos os Espíritos errantes que desejassem aprender, fossem virtuosos ou pecadores, pois que urgia auxiliar a regeneração do género humano, já que estava iminente rigorosa seleção, por parte da Providência, entre os Espíritos e os homens pertencentes aos núcleos terrenos, porque o planeta sofreria em breve o seu parto de valores, expulsando para mundos inferiores os incorrigíveis desde há dois mil anos, para conservar em seu seio apenas os mansos e os pacíficos,4141 N.E.: MATEUS, 5:5 - "Bem-aventurados os que são brandos, porque possuirão a terra." os de boa vontade, para, então, estabelecer-se, não só no planeta como em seus continentes astrais, aquela era de progresso sonhada pelo Mestre da Galileia, presidida pelo socialismo fraterno estatuído nos áureos códigos da sua Doutrina! Que, por isso mesmo, iríamos também receber os rudimentos do ensino secreto, rudimentos, apenas, o bastante para nos fortalecermos para a eficácia da reparação que devíamos à Lei, pois éramos ainda muito frágeis, mentes traumatizadas pela violência do ato que exorbitara da Lei da Natureza, caracteres viciados pelo abuso de séculos e séculos submersos no demérito da materialidade!

Que o ensino seria concedido gradativamente, de acordo com nossas capacidades, sendo por essa razão que nos dividiam em turmas homogéneas. Que a Doutrina Secreta em sua plenitude só a conheciam o Senhor Jesus de Nazaré, que era uno com Deus Pai, e seus arcanjos, falange de auxiliares, como que ministros, que eram unos com Ele! Que, pois, começava esse ensino na Terra, em parcela diminuta para os homens imersos nas sombras do princípio, e ascendia em progressão sem limites até o infinito do seio divino! Por isso mesmo, era chamado ao citado conhecimento — Ciência Universal — e que nós outros, míseros suicidas, ínfimos cidadãos do Universo de Deus, párias das sociedades do astral, para quem se tornava necessário criar sempre colônias de abrigo, éramos convidados a partilhar da assembleia luminosa da Verdade, porquanto fora justamente a falta dos mesmos ensinamentos que nos levara, de queda em queda, até a calamitosa situação da queda máxima por meio do suicídio! E que ele, Epaminondas, em nome de Jesus nazareno, a quem deveríamos o ressurgimento de nossas almas para a redenção, e em nome de Maria, sua mãe, a quem devíamos o amparo recebido até o momento presente, concitava-nos ao rigor de um ensaio para severa iniciação, mais tarde, nos mistérios, pois, da nossa boa vontade, do nosso valor na aplicação do experimento presente, dependeriam os êxitos futuros.

Vibrante e fecunda até o deslumbramento, como bem poderá o leitor entrever, essa peça oratória arrebanhou nosso sincero interesse, sendo com legítima admiração que, intimamente, ovacionamos o catedrático apenas suspendera o exórdio magnífico. Exprimindo-se em português clássico, fulgurante para portugueses e brasileiros, e em espanhol sadio e puro para espanhóis, Epaminondas de Vigo fazia fulgir a palavra em inflexões suaves e melodiosas, ou vibrantes e fortes qual se um hino literário, que bem poderia parecer também musicado, se ele o tivesse desejado, nos deliciasse a audição e a sensibilidade. Encantados, eu, Belarmino, João e mais os amigos brasileiros Raul e Amadeu, que se haviam incluído em o nosso antigo grupo, mal chegáramos ao Burgo da Esperança, logo nos sentimos atraídos para o novo monitor, e ansiosos pelas lições que se seguiriam. E supúnhamos que idênticas impressões animavam os demais colegas, porque percebíamos sorrisos de satisfação e lídimo interesse esvoaçarem pela assistência.

Entretanto, o aprendizado científico seguiu curso normal, alternando-se com o que vínhamos antes recebendo e mais os conhecimentos práticos por intermédio das aulas do eminente Souria-Omar.

Assim foi que o respeitável ancião ministrou-nos o encantamento de presenciarmos o nascimento e progressão, lenta e esplendente, do próprio globo terrestre! O que superficialmente conhecíamos (permitam-me que assim me expresse ante a magnificência do que, então, me foi concedido apreciar) através dos códigos de Ciência terrestre, isto é, da Geologia, da Arqueologia, da Geografia, da Topografia, o ilustre instrutor levantou da dobagem dos milênios para nos ofertar como o presente descrito em cenas vivas, em atividades reais, como se houvéramos participado, com efeito, do nascimento e crescimento da generosa estância do sistema solar que um dia nos abrigaria, protegendo nossa ascensão para o Infinito, auxiliando-nos no aperfeiçoamento do germe divino que em nós outros, homens, como nela própria, também palpita! Tudo presenciamos: a centelha em ebulição, as trevas do caos, os aguaceiros e dilúvios aterrorizantes, os grandes cataclismos para a formação dos oceanos e rios, o maravilhoso advento dos continentes como o nascimento das montanhas majestosas, cadeias graníticas eternas como o próprio globo, tão conhecidas e amadas por aqueles que na Terra têm feito ciclo de progresso: os Alpes sobranceiros quais monarcas poderosos desafiando as idades, os Pirineus graciosos, o Himalaia e o Tibet venerandos, a Mantiqueira sombria e majestosa, todos, em épocas diversas, surgiram do berço diante de nossos olhos deslumbrados, arrancando lágrimas de nossas almas, que se prosternavam, tímidas ante tanta grandeza, tanta beleza e majestade! Mas, antes disso, em prosseguimento feérico de maravilhas, a luta dos elementos furiosos para o crescimento do pequeno continente do céu, o oceano conflagrado em convulsões pavorosas, sacudindo o seio nascente do mundo imerso em solidão, o cataclismo dos ventos e tempestades a que nada poderá fornecer ao homem ideia aproximada... assim como os primeiros sinais de movimento e vida no leito imenso das águas convulsas, a vegetação, fabulosa e tétrica, no gigantesco volume das proporções... os dinossauros monstruosos, os lagartos de forma e força inconcebíveis à delicadeza corporal do homem, os mastodontes, a Pré-História!

Era um livro tenebroso, imenso, magnífico, epopeia divina da Criação, desferindo alguns poucos acordes da sua imortal sinfonia através do infinito do tempo, da eternidade das coisas! E nesse livro soletrávamos o abecê da Iniciação, gradativamente, pacientemente, às vezes empolgados até o delírio; de outras, banhados em lágrimas até o temor, mas sempre ávidos e encantados, ansiosos por mais conhecimentos, lamentando mais do que nunca nossas diminutas forças de suicidas, que nem a terça parte nos permitia entrever do programa excelso ofertado pela Natureza!

Um desfile indescritível de períodos genesíacos patenteou-se à nossa observação, à análise elucidativa e sadia, durante o qual, diariamente, se radicava em nosso Espírito o respeito, a veneração por aquele Ser supremo e criador a quem havíamos negado, de quem descrêramos pela dobadoura dos séculos, mas a quem agora rendíamos graças, apavorados e ínfimos que nos sentíamos frente à sua grandeza, ao passo que também felicíssimos ao nos reconhecermos seus filhos, herdeiros da sua glória eterna!

Aqui, eram a flora e a fauna imensa na variedade das espécies; além, a geologia rica de atrações e encantos, povoando o seio do globo com a multiplicidade mirífica dos minerais; acolá, o infindável laboratório do planeta, o oceano com seus infusórios prodigiosos, seus infinitos depósitos de vida, de criação, de espécies, de riqueza incontestavelmente divina, e tudo à mão do homem, tudo criado para ele, mas que ele despreza conhecer, vivendo, como vive, engolfado nas trevas da animalidade através dos milênios, incapaz, por isso mesmo, de tomar posse desse paraíso que para ele mesmo o Senhor ideou e criou com toda a amabilidade do seu amor infinito de Pai, com toda a força da sua mente poderosa de supremo Criador!

...E assim surgiu, em lições sempre sequentes e habilmente parceladas, a idade do homem, a divisão das raças, a suprema glória do planeta abrigando, finalmente, a parcela divina que, um dia, deverá refletir a imagem e a semelhança do seu Criador!

Durante longos anos ininterruptos, diariamente soletramos esse livro assombroso cuja intensidade e magnificência comumente nos causavam vertigens levando-nos a adoecer e à necessidade de haurirmos novas energias mentais ao contato dos clínicos incumbidos de nossa vigilância, sendo o próprio Epaminondas um dos mais dedicados à causa do nosso restabelecimento... E hoje, às vésperas de nossa volta aos proscênios dessa mesma estância, que agora conhecemos desde o seu nascimento, apenas averiguamos que nada pudemos aprender ainda, que apenas soletramos as primeiras letras do plano material terreno!

De que forma, porém, poderiam Epaminondas e seus acólitos ministrar tais aulas, tornando visível no presente o que os milênios devoraram no pretérito?!... Como reedificar com tão real pujança, a ponto de apavorarmos, as idades primitivas do planeta, os períodos devastados pelo tempo?!...

É que vivemos todos em plena eternidade, somos cidadãos do infinito, e para a eternidade o que existe é o momento presente, sem ocasos, sem lapsos! Ela, a eternidade, vive dentro do presente, porque justamente é esta a sua particularidade!

Das ondas luminosas do éter invisível, ou seja, dos arquivos do infinito como dos sacrossantos depósitos da eternidade, extraía Epaminondas a matéria grandiosa para as aulas fornecidas. As imagens que se eternizaram, retidas nas ondas vibratórias do éter luminoso, a reprodução do que se passara na Terra desde a sua criação, guardada, fotografada, impressa nas vibrações da luz como a paisagem na fragilidade de uma bolha de sabão, eram selecionadas pelos magos da Ciência Transcendente, captadas e transportadas até nosso conhecimento por processos e aparelhamentos cuja sensibilidade e potência magnética já hoje o homem não ignora totalmente. Poderia Epaminondas, ao confabular com um igual, reportar-se ao passado dispensando aparelhamentos. Nós outros, no entanto, não os dispensaríamos, a menos que o abnegado monitor apoucasse ainda mais as próprias possibilidades a fim de tornar--se compreensivo, enquanto avolumasse as nossas, torturando-nos até o sacrifício, o que seria dispensável. O certo era que uma equipe de magos especialistas no serviço e artistas da palavra e da sugestão vasculhavam o éter com seus poderes de atração científico-transcendente, à procura do que convinha, e estampava-o na tela sensível por meio de sugestões poderosas, e tudo com perfeição tal que era como se a tudo quanto víamos houvéssemos realmente assistido! Processo vulgar no mundo invisível, essa forma de captação da imagem, dos acontecimentos, levará um dia o homem à mesma possibilidade, como ao conhecimento dos próprios planos do astral intermediário! Uma coisa única acelerará tal conquista da Ciência para a Humanidade: o domínio da moral nas suas sociedades, o império da honradez!

Não deixarei de citar o espetáculo sublime da marcha harmoniosa dos astros, proporcionado que nos foi ele durante o prolongamento dos mesmos estudos, agora, porém, obedecendo não mais aos processos circunscritos a um recinto acadêmico limitado, mas a excursões em pleno Espaço, viajando através do Infinito, como universitários em curso prático. Nossas forças, no entanto, muito limitadas, não nos permitiram a contemplação feérica dos mundos estelares no conjunto surpreendente da sua grandeza. Como estímulo, apenas, facultadas nos foram visões mais ou menos aproximadas dessa esplendente grandeza, por intermédio de aparelhamentos diferentes, apropriados para o descortino da Astronomia, de que recebíamos pálidos convites. Nossas observações e estudos, portanto, não ultrapassaram conhecimentos senão relativos aos nossos irmãos de sistema, permitindo-nos as mais belas aquisições a que nosso estado poderia aspirar, o que muito já nos encantava e satisfazia... Até que passamos ao estudo de nós mesmos, joias que somos, todos nós, as almas, do escrínio sideral, futuros ornamentos da corte universal em que se imprimiu o selo sagrado do pensamento supremo, e para quem tudo, tudo foi imaginado e criado pelo Pai amoroso que de coisa alguma necessita, que nada quer senão que nos amemos uns ao outros!

Explicou-nos o mestre, convincentemente, pelo decorrer do aprendizado, a tríplice natureza humana, provando praticamente sua tese com análises levadas a averiguações a respeito de nós mesmos e de outrem, o que surpresas, por vezes muito ríspidas para nossos preconceitos e orgulhos arraigados, nos traziam. Esse mesmo estudo entrevíramos no Departamento Hospitalar, onde o asilado abeberava rudimentos de sua própria qualidade de Espírito, sem, todavia, atingir os pormenores que em Cidade Esperança se desdobravam para nós.

Expôs ele a realidade das vidas sucessivas, suas leis, suas consequências benéficas, sua finalidade magistral, sublime, sua inalienável necessidade para a gloriosa evolução do ser! Apontou-nos a jornada espinhosa do Espírito nessa ascensão sublime para o Alto, submetido ao trabalho dos renascimentos e renovações em corpos carnais, dos estágios no Além, dos labores ininterruptos num e noutro plano! Não era, todavia, sem emoções por vezes muito chocantes que víamos rasgarem-se, por meio de tais estudos, os campos da vida espiritual, a qual só então começamos e compreender com a devida eficiência, pois suas realidades, não raro muito amargas, derribavam velhas convicções filosóficas, destruíam arraigados preconceitos religiosos acomodatícios, modificavam conceitos científicos que as tradições e também o orgulho cego do fanatismo materialista haviam ensinado a conservar e homenagear!

A fim de bem conhecermos certas particularidades da personalidade humana partíamos, então, com nossos mestres, em caravanas de estudos práticos. Souria-Omar era o catedrático dessa nova modalidade, fazendo-se acompanhar de adjuntos lúcidos e igualmente versados. Visitávamos os Departamentos Hospitalares, observando, quais acadêmicos de Medicina, a constituição dos corpos astrais dos nossos irmãos ali detidos, coadjuvados por Teócrito, que tudo nos facilitava, fraternalmente assistidos por nossos amigos Roberto e Carlos de Canalejas. Descíamos à Terra, periodicamente, visitando-a durante anos consecutivos, em estágios de algumas horas, pelos hospitais e casas de saúde, estudando o fenômeno dos desprendimentos, sempre assistidos por eminentes individualidades da pátria espiritual, assim como pelas casas particulares e até prisões, à espera de sentenciados à pena capital, pois devíamos enriquecer a mente com análises acerca de todas as modalidades do fenômeno da separação de um Espírito do seu temporário invólucro carnal, desde o feto, expulso ou não, voluntariamente, do órgão gerador materno, até o condenado pela justiça dos homens à morte no patíbulo! Cada caráter, cada personalidade ou gênero de enfermidade, como a natureza do desprendimento, nova aquisição de esclarecimentos, por estudos minuciosos e sublimes! Era bem certo que jamais assistimos a qualquer cena de assassínio, ou catástrofe. Chegávamos sempre após o drama, a tempo de colhermos a necessária elucidação. Frequentemente era-nos imposto o doloroso dever de acompanharmos o desligamento penoso, envolto em trabalhos de repercussões aterradoras, muros adentro de um campo santo! Então, era ali que Souria-Omar discorria suas aulas magistrais, catedrático genial, digno de ser ouvido por discípulos prosternados e reverentes! E, sob o farfalhar das galhadas onde mimosos passarinhos pipilavam à noite, enternecidos a sonharem com a alvorada, ou à sombra augusta dos ciprestes folhudos e majestosos, pela calada da noite bordada de estrelas, como aos resplendores do astro rei, eis que recebíamos as anotações do antigo mestre de Alexandria, com ele aprendendo magnífico da alma que se despoja da armadura que a enclausurava, para retornar à liberdade dos páramos espirituais!

Não nos poderíamos, no entanto, muitas vezes, furtar a vivas impressões de sofrimento, durante tão augustos espetáculos! O aprendizado implicava a contemplação de muitas desgraças alheias, dores superlativas, intraduzíveis angústias, misérias e desesperações diante das quais corriam nossas lágrimas, arfava doloridamente nosso seio, compungiam-se nossos corações. Mas era também preciso aprender, com esses espetáculos, o domínio das emoções, impor serenidade às forças mentais como ao sentimento, tratando, antes, de refletir, a fim de aplicar esforços no sentido de auxiliar e remediar situações, sem perder tempo precioso com lamentações estéreis e lágrimas improdutivas. Semelhantes impressões atingiram o seu clímax quando nos vimos obrigados à observação dos desprendimentos prematuros ocasionados por suicídio! Então, a loucura que nos atacara outrora subia das profundidades anímicas para onde haviam sido relegadas e irrompiam a contragosto nosso, afligindo-nos com o espectro de um pretérito que se transmutava em presente! O tono abominável de nossas passadas raivas avolumava-se na febre de reminiscências malvadas, desorientando-nos, fazendo-nos resvalar para a alucinação coletiva! Era quando toda a energia, toda a caridade e sábia assistência de nossos guardiães entravam em ação, impondo silêncio às nossas emoções, repelindo veementemente nossas truanices alucinatórias, chicoteando, ao contato benévolo de suas terapêuticas fluídicas, as excitações mentais provenientes das recordações, até que o presente se impusesse!

Voltamos, destarte, ao Vale Sinistro, integrando as caravanas de socorro, fiéis ao aprendizado sublime, e, ali, chorando sobre nossa mesma desgraça, tivemos ocasião de assistir irmãos nossos imersos na mesma situação de calamidade que tão bem conhecíamos, examinando-os, com nossos mestres, a vermos se estariam em condições de alçarem até o Departamento da Colónia, que lhes caberia. Piedosamente falávamos-lhes, encorajando-os, consolando-os. Mas não éramos compreendidos, passávamos anonimamente... E foi assim que soubemos ter sido nós, outrora, também benevolamente assistidos por outrem, sem que nossas precárias condições o suspeitassem...

De todos os conhecimentos que gradativamente adquiríamos, cumpria-nos apresentar pontos construídos por nós próprios, criar exemplos em teses que muito honrariam os institutos terrenos, caso quisessem adotar os mesmos ensinos para esclarecimento e moralização de seus alunos; extrair análises, tudo o que viesse provar nosso aproveitamento na iniciação do psiquismo. Forneciam-nos para tanto álbuns belíssimos, cadernos e livros lucilantes quais flocos de estrelas, e até aparelhos melindrosos, aos quais nos ensinavam acionar, para que também aprendêssemos a projetar para outrem as exemplificações que criávamos, ou mesmo as análises extraídas dos exemplos fornecidos pelos mestres durante as aulas práticas na Terra ou em outra localidade de nossa Colônia. Daí a criação de minhas novelas e a ansiedade de ditar obras aos médiuns, pois, durante as aulas práticas existia permissão para fazê-lo, sempre que um e outro trabalho por nós composto conseguisse aprovação dos maiorais; daí nosso sacrifício de tentarmos, durante cerca de trinta anos, escrever algo, que a um só tempo testemunhasse a Deus nosso reconhecimento pelo muito que sua misericórdia nos permitia e o desejo de relatar aos nossos irmãos de infortúnio, encarcerados nas dores terrenas, o que o Além lhes reservava. Para tal cometimento não haveria necessidade de sermos escritores, porque o aprendizado com nossos mentores nos educava o sentimento, equilibrando-nos o raciocínio de molde a conseguirmos servir à Verdade que nos rodeava!

Muita aplicação e devotamento exigiam esses estudos transcendentes, porquanto eram vastíssimos os campos de observação, como grandiosos os motivos diariamente deparados.

Convém enumerar as palpitantes matérias estudadas e auscultadas por nós outros até onde nos permitiram as forças mentais que possuíamos:

- Gênese planetária ou Cosmogonia - Pré-História

- A evolução do ser

- Imortalidade da alma

- A tríplice natureza humana

- As faculdades da alma

- A lei das vidas sucessivas em corpos carnais terrenos, ou reencarnação

- Medicina Psíquica

- Magnetismo - Noções de magnetismo transcendental

- Moral Cristã

- Psicologia - Civilizações terrenas

Alternados com as aulas de Evangelho, tais estudos apresentavam correlação íntima com aquelas, o que nos impelia a melhor compreender e venerar a sublime personalidade de Jesus nazareno, ao qual passamos a distinguir, tal como faziam nossos instrutores, como o chefe supremo da Iniciação, pois, com efeito, em todos os compêndios que consultávamos, buscando elucidação na Ciência, deparávamos lições, claros ensinamentos, atos e exemplos daquele grande Mestre, como padrão máximo de sabedoria e verdade, modelos irresistíveis, bússolas que nos convidavam a seguir para atingirmos a finalidade sem os desvios oriundos do engodo e das falsas interpretações.

Como por mais de uma vez já esclarecemos, nossos estudos eram enriquecidos com a prática e a exemplificação. Esse pormenor, porém, que implicava até mesmo realizações que testemunharíamos futuramente, durante a renovação imprescindível de um corpo carnal, nem sempre fornecia satisfações ao nosso coração. Ao contrário, frequentemente ocasionava grandes angústias, arrancando de nosso seio lágrimas pungentíssimas e mesmo momentos tenebrosos de desesperos que nos abatiam, levando-nos a enfermar. Situações críticas, vexames se avolumavam sobre nós, como veremos, sem que a tão desagradáveis resultados nos pudéssemos eximir, porque tudo era sequência da bagagem moral inferior que conosco transportáramos para o além-túmulo.

Logo no primeiro dia de aula, terminada que foi a fulgurante peça oratória, expusera o venerando Epaminondas de Vigo, lançando uma advertência que nunca mais se apagaria do nosso senso íntimo:

- Nenhuma tentativa para o reerguimento moral será eficiente se continuarmos presos à ignorância de nós mesmos! Será indispensável, primeiramente, averiguarmos quem somos, donde viemos e para onde iremos, a fim de que nos convençamos do valor da nossa própria personalidade e à sua elevação moral nos dediquemos, devotando a nós próprios toda a consideração e o máximo apreço. Até aqui, meus caros discípulos (ao contrário de Aníbal, que nos mimoseava com o terno tratamento de irmão, Epaminondas só nos permitia a cerimónia de um trato disciplinar), tendes caminhado cegamente, pelas etapas das migrações na Terra e estágios no astral, movimentando-vos em círculo vicioso, sem conhecimentos nem virtudes que vos induzissem a progresso satisfatório. Engolfados nos desejos impuros da matéria, passivos aos impulsos cegos das mais danosas paixões ou embrutecidos na ganga obscura dos instintos, tendes ignorado, propositadamente, graças à má vontade, ou absorvidos por criminosa indiferença, que ao nosso ser o Todo-Poderoso enalteceu com essências que lhe são próprias, as quais nos é dever cultivar sob as bênçãos do progresso, até que floresçam e frutifiquem na plenitude da vitória para que fomos, por isso mesmo, destinados!...

Disse-o e, indicando um dos penitentes que se achavam mais próximos, nas arquibancadas, fê-lo penetrar o círculo em que se estabelecia a sua cátedra e agrupavam-se, concentrados e mudos, os adjuntos.
Determinou o acaso, ou a própria clarividência do lente, que a escolha atingisse nosso companheiro de grupo, Amadeu Ferrari, um brasileiro de origem romana, natural do interior do Estado de São Paulo, o qual, segundo passamos a conhecer nessa mesma hora, suicidara-se aos 37 anos, julgando possível escapar à vergonha da prisão, devido a certos feitos imprudentes, bem como à ameaça de um câncer que começara a intumescer-lhe a região glótica. Pô-lo à sua frente e interrogou, demonstrando autoridade:

— O vosso nome, caro discípulo?...

Súbito mal-estar dominou a assistência, advertindo-a de algo muito grave que a atingira. Quiséramos fugir, furtando-nos à responsabilidade terrível da aprendizagem que se nos afigurou, repentinamente, grandiosa demais e por demais delicada para a ela nos devotarmos para sempre! Tivemos a intuição de que se iriam passar coisas irremediáveis, que marcariam era nova em nossos destinos, e tivemos medo! Epaminondas de Vigo apareceu-nos então qual juiz inflexível que nos julgaria, arrastando-nos até onde depararíamos o tribunal temível de nossa própria consciência, e profundo terror nos inspirou sua presença venerável, enquanto a figura jovial e terna de Aníbal de Silas, com suas exposições alvissareiras sobre a Boa Nova, que tão bem nos haviam consolado, desenhou-se à nossa imaginação, produzindo funda saudade do seu verbo manso que carinhosamente rememorava os feitos sublimes do meigo Nazareno. Mas o ancião advertiu-nos, em aparte precioso e enérgico, surpreendendo-nos com o conhecimento, que demonstrou, das impressões em nossa mente suscitadas:

— Lembrai-vos de que o Senhor Jesus de Nazaré, a quem invocais neste momento, é o grande Mestre que nos inspira, e que, sob seus auspícios, é que vos ministramos os ensinos sagrados que engrandecerão os vossos Espíritos para a conquista dos méritos futuros, pois é Ele o chefe supremo de nossa Escola e distribuidor de nossa Ciência!...

Voltou-se para o paciente em expectativa e repetiu:

— Vosso nome, pois?!...

— Amadeu Ferrari...

— Onde residíeis antes de ingressardes nestes sítios?...

— Na cidade de XXX... no Brasil...

— Por que procurastes abandonar vosso destino, cuja finalidade deve ser a unidade com Jesus, nosso redentor, confiando-o à ilusão de um suicídio?!... Não sabíeis que praticáveis um crime contra Deus Pai, porque contra vós próprio, visto que é certo que todos trazemos centelhas do Criador em nós?... Julgáveis, porventura, poder aniquilar os elementos de Vida existentes em vós, essa Vida que justamente é eterna porque a recebestes do Eterno Criador?...

Visivelmente contrafeito, esquivou-se Amadeu através do sofisma, único recurso que lhe ocorreu na melindrosa situação:

— Felizmente, senhor, foi apenas um pesadelo... uma alucinação... Eu não me pude matar, embora o desejasse, pois que estou vivo!... Vivo! Vivo! Louvado seja Deus, estou vivo!...

Mas, senhor de uma serenidade desconcertante, que a nós outros irritaria se não estivéssemos sinceramente dispostos a nos deixarmos conduzir, insistiu o sábio ancião:

— Reitero a interrogação, Amadeu Ferrari: por que desejastes desaparecer da presença de vós mesmo como de vossos semelhantes, quando o poema do Universo cantava ao vosso redor o sacrossanto dever dos compromissos, como a excelsa beleza da existência humana, que deve habilitar a alma para o reinado da imortalidade?

— Senhor... É que... eu desanimei... eu... sim... Mas responderei aqui, em presença de toda essa assistência?... Estarei, pois, novamente defrontando um tribunal?...

— Existe, sim, um tribunal e todos vós o defrontais: é a vossa consciência, que inicia o despertar da longa letargia que há séculos a mantém chumbada às mais deploráveis inconsequências! E imprescindível é que eu, autorizado pelos poderes máximos do meu e vosso Redentor, vos oriente a fim de que, examinando-a, aprendais a vos despojardes do orgulho que vos tem cegado desde muitos séculos, impedindo que reconheçais a vós próprios e, portanto, a soberania das Leis que regem os destinos da Humanidade!

— Senhor, a miséria, a enfermidade, o desânimo, foram a causa... Cometi uma falta grave, frente a tão dolorosas circunstâncias... Não tive outro recurso a não ser o que fiz... A prisão... a doença...

— E esse ato — suicídio — lavou a nódoa de que vos havíeis contaminado antes?... Considerai-vos inculpado, honesto, honrado após o mesmo ato?...

— Oh! não! Não pude fugir à responsabilidade dos atos que pratiquei! Sinto-me desonrado por ter lançado mão de quantias que me foram confiadas... muito embora o fizesse tentando recuperar a saúde, pois a ameaça tenebrosa de um câncer desorientava-me, justamente quando estava prestes a realizar um consórcio cuja expectativa era a minha razão de ser... A quantia era avultada... eu era bancário... A prisão ou a morte... O câncer, o roubo, pois era roubo... O ideal de amor desmoronado! Preferi o suicídio!... Sei que foram grandes crimes... Mas sinto-me ainda confuso, apesar de muito já me ter esclarecido, ultimamente... Por que, oh! por que fui colocado em tão desgraçadas circunstâncias?... A confusão turbilhona em minha mente... Intuições pavorosas segredam-me um passado do qual tenho pavor... 0 Jesus de Nazaré! Misericórdia!... Eu tremo e vacilo... Não compreendo bem...

— Pois ireis compreender, Amadeu Ferrari! É imprescindível que o compreendais!

Acenou para dois adjuntos que aguardavam suas ordens. Fizeram sentar o penitente diante da tela espelhenta, colocando-lhe, em seguida, um diadema idêntico ao usado pelo mestre para as dissertações.

Pairava pelo ambiente sincera emoção religiosa. Sentíamos que um grandioso, sacrossanto mistério desvendar-se-ia, naquele instante, ao nosso entendimento, e contritos e temerosos aguardávamos, enquanto benéficas influências envolviam o momento sagrado que vivíamos.
Epaminondas voltou-se para a assembleia de discípulos e conclamou:

— Ficai atentos! A história desse vosso irmão é também a vossa história! Suas quedas mais não representam que as quedas da própria Humanidade em lutas diárias com as próprias paixões! Pela mesma razão não deveis comentar o que ireis presenciar, antes observai a lição que vos será fornecida como exemplo, do qual extraireis a necessária moral para aplicá-la em vós mesmos... pois será útil lembrar que sois todos almas decaídas a quem a iniciação em princípios de moral elevada e redentora trata de conduzir aos pórticos do dever!

Postou-se de braços alçados para o Infinito, em atitude de prece e concentração fervorosa. Acercaram-se os adjuntos, como a auxiliarem mentalmente seus intuitos. Poderosa corrente fluídica estabeleceu-se, envolvendo em ondas fortes a assembleia de pecadores, que se deixava estar atenta e respeitosa. Até que, de súbito, ordem singular ressoou em tom enérgico, que não admitiria tergiversação!

Epaminondas de Vigo impunha a Amadeu Ferrari a volta ao pretérito, isto é, minucioso exame de consciência passando em revista os feitos de suas passadas migrações terrenas, a fim de que compreendesse em toda a sua plenitude a razão das circunstâncias dolorosas em que se vira colocado, circunstâncias às quais não se resignara e que, para solvê-las, comprometera-se ainda mais com um ato de desonestidade e suicídio!

Em sentido retrospectivo, passando do suicídio para o início da existência, eis que fomos depará-lo em bem diferentes condições! Era bem verdade, pois, que residiam, em uma encarnação anterior, os motivos daquela pobreza que desafiara todos os esforços para se remediar, uma vez que Amadeu fora obstinado no trabalho e na força de vontade; daquele câncer que o torturava com garras invencíveis, corroendo-lhe a língua e a garganta lentamente; daquele repúdio de amor que absorveu suas últimas forças, incompatibilizando-o definitivamente com o desejo de viver!

A cortina do presente descerrou-se... O primeiro véu da consciência foi suspenso a fim de que, no proscénio de uma outra existência terrena, drama imenso fosse revelado, drama que não atingiu apenas a uma ou duas personalidades, mas a uma coletividade, implicando mesmo uma raça heroica e sofredora!

Amadeu Ferrari apareceu-nos descrito por sua própria mente no ano de 1840, como traficante de escravos negros de Angola para o Brasil... Era, então, de nacionalidade portuguesa, e daí nossa afinidade com ele. Em viagens reiteradas, enriquecia no comércio abominável, não se poupando trabalhos graças à torpe ambição de retornar milionário à metrópole, infligindo martírios incontáveis aos míseros que arrecadava em sua livre pátria para escravizar a outros tantos ignóbeis comparsas das mesmas desvairadas ambições! Na truculência de instintos desumanos, cevava-se no mau trato aos negros, ordenando chicoteá-los pela mais insignificante falta ou mesmo por nenhuma, infligindo-lhes castigos cuja fereza bradava aos Céus, tais como a fome e a sede, a tortura e a separação das famílias, pois que vendia, aqui, os filhos, acolá a mãe, mais além, o pai... os quais nunca mais, nunca mais se encontrariam a não ser mais tarde, no além-túmulo, morrendo muitos destes desgraçados atacados pela nostalgia e pelas saudades dos seres amados! Certa vez, na fazenda que lhe era própria, aviltara jovem escrava negra, mal saída da infância. E porque o desventurado pai da desgraçada, velho escravo de 60 anos, num momento de suprema desesperação, louco de dor, diante do cadáver da filha que procurara na morte encobrir a vergonha de que se sentia possuída, bradasse seu vil procedimento, acusando-o pelo suicídio da moça, mandou que ferozes capatazes queimassem a língua do velho escravo a ferro em brasa, até vê-lo cair exânime, nas convulsões da agonia...

Ora, ao passo que nos elucidávamos na majestosa lição, o paciente reconhecia-se tal como era: portador de paixões inferiores, múltiplos defeitos, vultosos deméritos, e debatia-se violentamente, presa de convulsões indescritíveis, acovardado frente ao flagício que lhe infligia a consciência, desorientada na tortura dos remorsos.

— Apiedai-vos de mim, Senhor! — bradava em expressões de dor e arrependimento, repetindo em presença da numerosa assembleia a súplica veemente que dera causa à existência expiatória que, afinal, interrompera criminosamente, enredado que se deixara permanecer em complexos desconcertantes. — Desgraçado e miserável que sou! Deixai que eu volte ainda uma vez à qualidade humana e veja minha própria língua, assim como a boca e a garganta desaparecerem sob a trituração de qualquer malefício, reduzidas ao ponto a que reduzi as do desventurado escravo Felício... Dai-me a miséria, Senhor! Que eu sofra o suplício da fome, da sede, e que nem mesmo possa falar a fim de me queixar! Que de mim todos se afastem com asco, deixando-me expungir sozinho esta nódoa infamante que me amesquinha diante de mim próprio!...

O nobre orientador, porém, impôs silêncio ao pecador, balsamizando--o com fluidos apaziguadores. Em seguida, exclamou como respondendo: — É bem certo, é inevitável o vosso retorno às reencarnações expiatórias, Amadeu Ferrari! uma vez que é esse o ensejo abendiçoado para a remissão dos culpados! Outra vez a pobreza, o câncer, o perjúrio... agravados, agora, com os indefiníveis males acumulados pelo suicídio... uma vez que vos não quisestes submeter devidamente... Mas é imprescindível não conserveis ilusões: mais de uma encarnação expiatória será necessária para cobrir as agravantes das ações que recordamos...

Entrementes, a lição continuava a desenrolar-se, vindo seu arremate estarrecer-nos porventura ainda mais:

Assim foi que, morto o velho escravo, dobraram-se os anos... O grande senhor esquecera-o, como aos demais, absorvido nos baloiços da boa sorte... Voltara à Europa, feliz, tendo enriquecido à custa do "trabalho honesto", bem-visto e considerado pelos muitos haveres que levara da terra de Santa Cruz...

Mas... um dia dobraram a finados por ele: exéquias solenes, cânticos pungentes, grande luto, lágrimas doridas e muitas flores... porque o vil metal adquirido na iniquidade tudo isso pôde comprar!

Agora, eis que se apresenta o além-túmulo! É o momento sagrado da realidade, do cumprimento integral da Justiça incorruptível! Vimo--lo a debater-se, perdido em pleno sertão africano, atacado por hedionda falange de fantasmas negros sedentos de vingança, os quais vinham pedir-lhe contas dos desgraçados compatriotas por ele escravizados e perdidos para sempre, longe das plagas nativas! Eram os pais que haviam perdido os filhos, por ele arrecadados para longe... Eram as mães destituídas de filhos pequeninos, os quais ele vendera a outrem, qual mercadoria miserável! Eram as filhas ultrajadas e sacrificadas longe dos pais, os filhos que conheceram, por afagos maternais, o látego inclemente do senhor a quem serviam! E todos lhe pediam contas dos martírios que sofreram! Aprisionaram seu Espírito no seio das florestas tenebrosas e martirizaram-no por sua vez! Aterraram-no com a reprodução, que sua presença fornecia, das maldades que contra todos praticara! O silêncio das matas, só interrompido por motivos de pavor; as trevas inalteráveis, o rugir das feras, as acusações perenes do remorso, a raiva e o bramido dos fantasmas alterando-se com todos os demais pavores, acabaram por enlouquecê-lo. Então, deixaram-no entregue a si mesmo, em pleno desamparo, cativo de si próprio, das torpezas que semeara contra indefesos irmãos seus, como ele filhos do mesmo Criador e Pai, portadores da mesma essência imortal! A fome, a sede, mil necessidades imperiosas se juntaram a fim de supliciá-lo ainda mais, aferrado à animalidade dos instintos e apetites inferiores, como se conservava ainda... Vagou desesperadamente, presa das mais absurdas alucinações, flagelado pela mente, que só se alimentara do mal! A cada súplica que tentava proferir, o choro dos escravos que morriam de saudades, separados dos seus entes caros, era a lúgubre resposta! Se um brado de misericórdia lhe escamava na incerteza da demência, acudia-o o estalar do chicote sobre o lombo nu dos negros cativos da fazenda; sobre o busto profanado das desgraçadas cativas que lhe amamentavam os filhos, criando-os com amor enquanto os delas próprias eram relegados à fome e aos maus-tratos! A um soluço de remorso, o lamento de agonia de alguém que sucumbia atrelado ao pelourinho da mansão... oh! o grito supremo daqueles que, ingênuos, sofredores, desgraçados, se atiravam aos açudes, às correntezas dos rios, impelidos pelo terror ao trato que recebiam!...

Afastava-se então em loucas correrias por meio das brenhas selvagens, presa da mais atordoante demência espiritual! Mas, para qualquer lado que se virasse, nas galhadas seculares de arvoredos majestosos, como sobre pântanos lodosos, no espinhoso chão que palmilhava como no cipoal traiçoeiro, encontrava suas vítimas a chorarem, agonizantes, desesperadas...

Até que, certa noite em que se sentia exausto, em pleno terror, e depois de muitos anos... em certa alameda que repentinamente se abriu à sua frente, eis que viu o escravo Felício caminhando ao seu encontro, conduzindo uma tocha feérica, que aclarava os caminhos trevosos, permitindo-lhe orientar-se... Felício vinha lentamente, sereno, grave, não mais torturado pelo ferro em brasa, porém, compassivo, estendendo-lhe a destra, no intuito de erguê-lo:

— Vem daí, "Nhonhô", levante-se... Vamos embora...

Ele acompanhou Felício... E pelo prosseguimento do intenso drama verificamos que o velho escravo perdoara ao algoz, intercedera por ele junto à divina Complacência... e partira, a conseguir libertá-lo das garras dos que não lhe haviam perdoado...

Não obstante, tudo isso era por nós outros apreciado intensamente, como se fôramos os próprios que tão dramáticas cenas viveram, graças ao privilégio, que o homem desconhece, das profundas capacidades inerentes ao Espírito alheado da carne, capacidades que o levam a sofrer, sentir, compreender, impressionar-se, comover-se, alegrar-se etc., a grau superlativo, o qual fulminaria a criatura encarnada, se fora esta suscetível de tentar experimentá-lo. Enquanto o drama se estendia, o mestre emitia conceitos, levantando a psicologia das personagens apresentadas, assim lecionando com sabedoria a tese magnífica à luz da Ciência Sagrada em que nos iniciávamos! E acrescentou, severo, como arrematando a série de pequenos discursos que o passado espiritual de Amadeu provocara, vibrante, no diapasão enérgico que tão bem traduzia o caráter inquebrantável que afrontara o suplício do fogo por amor à Verdade:

— As sociedades brasileiras, meus caros discípulos, sofrem hoje e sofrerão ainda, por espaço de tempo que estará ao seu alcance o dilatar ou reprimir, as consequências das iniquidades que em pleno domínio da Era Cristã permitiram fossem cometidas em seu seio. Refiro-me, como bem percebeis, à escravização de seres humanos, tratados por elas com maior rigor do que o eram os próprios animais inferiores, para a extração de posses e haveres que lhes facultassem o gozo e o império das paixões! Se não foi crime individual, e sim coletivo, será a coletividade que expiará e reparará o grande opróbrio, o grande martírio infligido a uma raça carecedora do amparo fraternal da civilização cristã, a fim de que, por sua vez, também se gloriasse às alvíssaras da educação fornecida por intermédio da Boa Nova do Reino de Deus! Sob os céus assinalados pelo símbolo augusto da Iniciação como do Cristianismo — a cruz —, ressoam ainda, ecoando aflitivamente na Espiritualidade, os brados angustiosos de milhares de corações torturados que durante o dobar dos decénios se compungiram ante a infâmia de que eram vítimas! Não deixaram de repercutir ainda nas ondas delicadas do éter, onde se assentam as esferas de proteção às sociedades humanas, os rumores trágicos dos látegos sanhudos dos capatazes diabólicos, a vergastarem homens e mulheres indefesos, cujas lágrimas, recolhidas uma a uma pela incorruptível justiça do Todo- Poderoso, foram, por lei, espalhadas, em seguida, sobre essa mesma coletividade criminosa, para que, por sua vez, as sorvesse em pelejas posteriores, a se purificarem do acervo de maldades e infâmias praticadas! Por isso, eis a grande pátria sul-americana debatendo--se contra problemas complexos, suas sociedades em pelejas dolorosas consigo próprias, vitimadas por um acúmulo de agravos que as desorientam, ocupando postos mais bem bafejados aqueles que ontem se viram oprimidos, e vergados sob aflições coletivas, relegados à indiferença das classes favorecidas, os orgulhosos e imprevidentes do passado, os quais a tempo não se abeberaram dos exemplos do celeste Enviado, renegando a cordura da fraternidade para com os seus semelhantes, a cautela de semearem amor a fim de colherem misericórdia no dia do supremo juízo! E assim prosseguirão até que a voz celeste dos missionários do Senhor as oriente para finalidade apaziguadora, no trabalho sublime da reconciliação individual por amor do Cristo de Deus!

Ó vós, discípulos que presenciais os dramas — antigo e moderno — vividos por Amadeu Ferrari! Ó vós que presenciastes seu passado como o presente, rematado por um suicídio contraproducente, do qual há de dar igualmente contas ao Senhor das vidas e das coisas! Sabei que entre os escravos que, sob os céus do cruzeiro sublime, choraram, vergados sob o trabalho excessivo, famintos, rotos, doentes, tristes, saudosos, desesperados frente à opressão, à fadiga, à maldade, nem todos traziam os característicos íntimos da inferioridade, como bastas vezes foi comprovado por testemunhas idôneas; nem todos apresentavam caracteres primitivos! Grandes falanges de romanos ilustres, do império dos Césares; de patrícios orgulhosos, de guerreiros altivos, autoridades das hostes de Diocleciano, como de Adriano e Maxêncio, dolorosamente arrependidas das monstruosas séries de arbitrariedades cometidas em nome da força e do poder contra pacíficos adeptos do Cordeiro imaculado, pediram reencarnações na África infeliz e desolada, a fim de testemunharem novos propósitos ao contato de expiações decisivas, fustigando, assim, o desmedido orgulho que a raça poderosa dos romanos adquirira com as mentirosas glórias do extermínio da dignidade e dos direitos alheios! Suplicaram, ainda e sempre corajosos e fortes, novas conquistas! Mas, agora, nas pelejas contra si próprios, no combate ao orgulho daninho que os perdera! Suplicaram disfarce carnal qual armadura redentora, em envoltórios negros, onde peadas fossem suas possibilidades de reação, e arvorada em suas consciências a branca bandeira da paz, flâmula augusta concedida pela reparação do mal! E os escravizadores de tantos povos e tantas gerações dignas! Os desumanos senhores do mundo terráqueo, que gargalhavam enquanto gemiam os oprimidos! Que faziam seus regalos sobre o martírio e o sangue inocente dos cristãos, expungiram sob o cativeiro africano a mancha que lhes enodoava o Espírito!

"Daí, meus discípulos queridos, a doce, mesmo sublime resignação dessa raça africana digna, por todos os motivos, da nossa admiração e do nosso respeito, a passividade heroica que nem sempre se estribou na ignorância e na incapacidade oriunda de um estado inferior, mas também no desejo ardente e sublime da própria reabilitação espiritual! E sabei ainda que o escravo Felício, que acabais de contemplar como símbolo entre todos, redimido de uma série de culpas calamitosas, como tantos outros, quando existiu e exerceu autoridade sob as ordens de Adriano, voltou a Roma em Espírito, terminado que foi seu compromisso entre a raça africana, e retornou à sua antiga falange de itálicos e..."

Um murmúrio irreprimível de surpresa desconcertante sacudia a assistência de pecadores, estarrecida enquanto Amadeu Ferrari caía de joelhos, deixando escapar um grito cujo tono não distinguiríamos se de surpresa também, se de horror, de alegria, vergonha ou de outro qualquer sentimento indefinível, só experimentado por entidades em suas deploráveis condições, enquanto choro violento o sacudia em agitações indescritíveis:

Abrira-se uma porta lateral silenciosamente, a um sinal de Epaminondas, e Felício aparecera sereno, grave, encaminhando-se para seu antigo senhor de outras vidas... Estarrecido, Amadeu contemplava--o de olhos pávidos, já agora senhor de todo o seu passado de Espírito... Mas, lentamente, imperceptivelmente, transformara-se Felício sob o poder da vontade, que opera facilmente sobre a configuração do envoltório astral, e deixava-se ver agora, na atual qualidade de Rômulo Ferrari, o genitor de Amadeu!

É que, retornando às falanges que lhe eram próprias, Felício ali reencarnara a fim de prosseguir na peregrinação para a redenção completa, sob os auspícios daquele meigo Nazareno a quem perseguira ao tempo de Adriano, na pessoa de seus adeptos! Recebera então nova fase de progresso sob a acolhida de outro nome; transportara-se, jovem ainda, para a terra de Santa Cruz, levado por indefinível sentimento de atração, ali constituindo família e piedosamente consentindo em servir de genitor para o antigo algoz...

Agora, seria bem certo que continuaria auxiliando-o a expurgar da consciência uma nova infração: a do suicídio!

Quando, pensativos e silenciosos, deixamos o recinto do Santuário, onde tão sublime mistério nos fora desvendado com a primeira lição, repercutia nos refolhos de nossa alma esta profunda, inenarrável impressão:

— Oh Deus de Misericórdia! Sede bendito por nos terdes concedido a Lei da Reencarnação!...


Camilo










ÁUDIO:

Yvonne do Amaral Pereira - Memórias de um Suicida
Paz e Amor

Radionovela




Memórias de um Suicida é um romance psicografado pela médium espírita brasileira Yvonne do Amaral Pereira, cuja autoria é atribuída ao espírito do romancista português Camilo Castelo Branco. O livro foi originalmente publicado pela Federação Espírita Brasileira em 1954, doze anos após sua conclusão, alegadamente pela obra não se enquadrar no perfil então habitual de romances espíritas. O tema gira em torno da história "post mortem" do personagem Camilo Cândido Botelho, que se suicida após ter ficado cego, vendo-se surpreendido pela sobrevivência de sua alma. Sentindo as dores do projétil que lhe atingiu o ouvido direito e o cérebro, acorda em meio aos odores fétidos da decomposição de seu próprio corpo, ouvindo vozes de imensa multidão à qual a pouco se viu atraído, até que são todos compulsoriamente conduzidos a um local inóspito, trevoso e sombrio, por eles chamado de "vale dos suicidas", em triste alusão à condição de todos os ali presentes.

Após mais de dez anos de incessante sofrimento, agravado pelo fato da crença de que aquela situação fosse fruto de um castigo e que lá era o inferno e como tal, seria eterno, Camilo, exaurido de suas forças físicas e em estado de extrema miserabilidade mental, é socorrido pelos servos de Maria e levado ao Hospital Maria de Nazaré, localizado nas zonas umbralinas de dada cidade espiritual.

Neste local a trama se desenvolve, com a revelação das histórias daqueles que passaram a ser seus companheiros de infortúnio, seus sofrimentos que motivaram o ato extremo, seus planos de reencarnação reparatória e, por fim, a causa da cegueira de Camilo e seu plano de soerguimento por meio da reencarnação.

O livro pretende demover o leitor da ideia do suicídio. O sofrimento do suicida não se encerra na sua morte. Se arrasta por anos a fio, quiçá séculos e não termina senão com uma reencarnação repleta de sofrimentos causais e dolorosa limitação física.

Foi lançada, com autorização da Federação Espírita Brasileira, em 2013, a obra em forma de radionovela, por iniciativa do Diretor-Presidente da Legião da Boa Vontade, José de Paiva Netto.

Superprodução radiofônica, adaptada do livro de mesmo nome psicografado pela médium Yvonne do Amaral Pereira, exibida na Rede Boa Vontade de Comunicação. A direção é da consagrada atriz Arlete Montenegro e reúne os melhores atores e dubladores do Brasil. Em entrevista à Super Rede Boa Vontade de Rádio, Arlete reforçou a importância de valorizar a vida, tema proposto pela radionovela. "É maravilhosa a história e verdadeira. Um dia ela vai proporcionar muito alívio para muita gente que está pensando ou já pensou em suicídio, porque a pessoa descobre que não existe morte e que o suicídio é o pior erro que ele pode cometer, é um erro contra o próprio Pai que nos criou, e está destruindo o que ele ganhou, que é a vida. É maravilhoso o público se inteirar, tomar consciência dessa realidade. A gente sabe de pessoa que ao ouvirem a novela desistem de se suicidar. Então, é um trabalho magnífico esse que a novela proporciona para a humanidade".

Sucesso na década de 1960, as radionovelas revolucionaram o rádio brasileiro, sendo palco para grandes artistas mostrarem seus talentos. Sobre a importância de continuar produzindo esse tipo de conteúdo para o ouvinte, a atriz enfatizou: "A única pessoa que tem coragem de gravar novelas é o Paiva Netto. É uma pena porque todos deviam fazer, todas as emissoras. É uma maravilhoso o trabalho que ele faz. E a gente fazer parte disso (nossa!), é uma honra; é onde a gente realiza o nosso verdadeiro trabalho de ator, que é transformar as pessoas".


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