segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Hammed - Livro Os Prazeres da Alma - Francisco do Espírito Santo Neto - Coragem




Hammed - Livro Os Prazeres da Alma - Francisco do Espírito Santo Neto


Coragem


A palavra coragem vem da raiz latina cor, cordis, que significa coração (sede ou centro da alma, da inteligência e da sensibilidade). Portanto, ser corajoso significa agir utilizando um potencial que vem de dentro — a voz do coração.

Coragem não é arrogância ardilosa, determinação astuta ou agressividade. Ela é, na realidade, a certeza íntima que se demonstra na moderação dos atos e atitudes, na firmeza de carácter e no desempenho perseverante de uma atividade.

É necessário coragem para assumir as consequências de nossas ações e desacertos; para suportar a vontade de retrucar de acordo com as ofensas recebidas; para sentir e fazer as coisas que acreditamos serem certas para nós, ainda que o medo da rejeição e da discriminação nos ameace; para aprender a dizer "não", impedindo que passemos a vida inteira sendo usados ou explorados; para ver as coisas pelo lado bom, esperando sempre uma solução favorável; para não aceitar responsabilidades que não são nossas, mas de amigos ou parentes imprudentes que se omitem em executá-las.

A criatura realmente corajosa sabe que viver é correr riscos, é enfrentar o desconhecido. Ela solta o passado e deixa o futuro vir a ser. O futuro é uma semente de possibilidades, o passado ficou para trás; devemos deixá-lo passar. O presente nada mais é do que um deslocamento em direção ao futuro. A todo instante o presente está se tornando futuro e o passado indo embora.

Todos nós estamos constantemente enfrentando coisas ignoradas, desconhecidas. Correr riscos indica a probabilidade de insucesso em função de ocorrências que, muitas vezes, escapam de nossas mãos, pois não dependem exclusivamente de nosso empenho ou vontade.

"O uso dos bens da terra é um direito para todos os homens (...) Esse direito é a consequência da necessidade de viver (...)"(1)

Ao utilizarmos os "bens da terra" nos sentiremos temerosos e vacilantes diante dos riscos da vida, mas esses perigos são muito valiosos para que possamos amadurecer. Lembremo-nos de que errar faz parte do crescimento, pois é uma "consequência da necessidade de viver". Sempre que tomamos consciência de nossos erros, chegamos mais perto da verdade. Trata-se de uma busca ou descoberta pessoal; ninguém pode fazê-la por nós.

Os "bens da terra", aqui citados pelos Espíritos Amigos, também são os "bens éticos" - conjunto de princípios ou valores universais de uma sociedade referentes à vida, à dignidade das pessoas e ao aprimoramento de uma coletividade.

Ao lançarmos mão dos "bens éticos", podemos, de início, não saber usá-los convenientemente, mas necessitamos de coragem, autonomia e firmeza de espírito para vivenciá-los, e não buscar de modo desesperado o consenso ou aprovação das pessoas. É impossível passar pela vida sem incorrer em grandes doses de desaprovação. É o ônus que pagamos pelo facto de vivermos numa sociedade onde a diversidade de opiniões é uma das características mais marcantes das criaturas.

Os grandes missionários da história nos ensinam que não se pode agradar a todos e que precisamos ser livres das opiniões alheias.

Usar a própria alma como guia e não precisar do consentimento exterior é utilização correta da verdadeira coragem - postura psicológica que nos plenifica, em qualquer nível, nas pretendidas realizações pessoais.

Não poderemos ser autênticos se não formos corajosos. Não poderemos ser originais se não lançarmos mão do destemor. Não poderemos amar se não corrermos riscos.

Não poderemos pesquisar ou perceber a realidade se não fizermos uso da ousadia. A coragem é uma qualidade interior que vem em primeiro lugar; tudo o mais acontece sucessivamente.

Um olhar cuidadoso na vida de Jesus irá revelar a criatura extremamente corajosa, que pregou a tenacidade diante de situações emocional ou moralmente difíceis e que não teve medo de enfrentar a desaprovação. No entanto, muitos dos seus seguidores distorceram seus ensinos, transformando-os no catecismo da culpa, do temor e da submissão.

O Mestre de Nazaré sempre se conduziu com base em sua consciência pessoal, em sua integração com a Divindade e nas leis naturais, e não porque alguém ditou a maneira que ele deveria pensar ou se comportar.

O Cristo de Deus era dirigido por razões interiores que, literalmente, nada tinham a ver com o facto de que alguém possa ter gostado ou não do que Ele tivesse dito ou feito. Sempre considerou os mandamentos de Moisés, porém sabia que tudo que é escrito e traduzido ao pé da letra, bem como tudo que é relatado de forma oral, quer dizer, passado de geração a geração, se reveste através dos séculos de uma atmosfera simbólica ou mítica.

"Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento (...)."(2) A atitude de "dar cumprimento", aqui proclamada, estava recoberta de nobreza corajosa para a execução, realização e desenvolvimento de algo propício para a atualização do aperfeiçoamento moral da humanidade.

Jesus não receava correr riscos, porque seus valores não eram locais; em outras palavras, não eram analisados sob a luz de um enfoque particular e geográfico. O Mestre via a si mesmo como pertencente à vida universal; transcendia as fronteiras tradicionalistas - família, raça, cidade, estado ou país. Aliás, a coragem dos renovadores é geralmente rotulada, pela mediocridade ou incompreensão da humanidade, de rebeldia, desobediência e perturbação dos valores preestabelecidos ou convencionais.

Coragem é uma importante capacidade da alma, porque dá consistência às demais, enaltecendo-as. Ela faz surgir a autoconfiança e concretiza efetivamente nossas aspirações e anseios. Muitos dons e talentos, no entanto, são comprometidos por falta de coragem.

A Espiritualidade Superior não nos quer submissos à vontade de outrem, nem inabilitados para tomar decisões, mas quer que nos apropriemos de nossos valores inatos, demonstrando determinação e firmeza diante da vida, porque isso teria como resultado natural o conforto físico, psíquico e espiritual.

O Mundo Maior nos incentiva a utilizar as próprias potencialidades a fim de que possamos descobrir a força e a coragem que existem em nossa intimidade. Ele nos convoca, principalmente, para trazer à tona a luz existente dentro de nós, e não para nos entregarmos a refúgios externos.

Nenhum fato ou acontecimento está além de nossa aptidão ou capacidade de lidar com eles. A vida nunca nos apresenta um problema sem que tenhamos a possibilidade de resolvê-lo.

A autoconfiança deve ser ensinada no berço, e a necessidade de aprovação não deveria ser confundida com a busca de afeto ou amor. Para estimular a autoconfiança e a coragem de tomar decisões num adulto, seria necessário que, desde cedo, as crianças não fossem educadas com grande dose de controle ou aprovação. Contudo, se uma criança cresce sentindo que não pode, em nenhuma circunstância, decidir e que, em nome dos "bons modos", ela precisa a todo momento pedir autorização dos pais para agir, são plantadas nela as "sementes neuróticas" de insegurança, medo e falta de confiança.

A busca de aprovação aqui mencionada não tem nada a ver com a atitude saudável dos pais de orientar e educar os filhos, e sim com a postura destrutiva de impor aos menores a necessidade de submeterem tudo à opinião e consentimento dos adultos.

Precisar da permissão de uma pessoa já causa frustração e infortúnio, mas o problema se agrava quando a necessidade do consentimento se torna genérica. Quem se comporta dessa maneira está condenado a encontrar uma grande dose de abatimento e desânimo diante da vida. Além disso, o indivíduo incorpora uma autoimagem dissimulada ou irreal, erradicando de sua existência a possibilidade de realização pessoal.

A necessidade de autorização tem como gênese a seguinte estratégia psicológica: "de imediato nunca confie em si próprio; antes de qualquer coisa, confira suas idéias e pensamentos com os outros".

O conjunto de conhecimentos e valores da nossa cultura tradicional é do tipo que reforça nos indivíduos uma postura interna de busca de aprovação como um padrão de comportamento normal. A autonomia e a independência não são estimuladas; ao contrário, é consolidado o convencional.

A autorreflexão ou a atitude de mantermos um constante intercâmbio com a "voz da alma", nos daria suficiente liberdade, segurança e coragem para nos guiar por nós mesmos. É bom lembrar que nos podem forçar a "ser escravos", mas não nos podem obrigar a "ser livres".

A mensagem do Poder Universal é sempre aquela que impulsiona o desenvolvimento de nossas potencialidades ou dons naturais Despertar é saber que o único modo pelo qual podemos conhecer genuinamente qualquer coisa é examinando-a  ou percebendo-a pessoalmente, isto é, usando as leis divinas que estão em nossa intimidade. "Não se poderá dizer: Ei-lo aqui! Ei-lo ali!, pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós."(3) 

Por isso, os Benfeitores Espirituais afirmam que: "A sociedade poderia ser regida somente pelas leis naturais, sem o concurso das leis humanas (...) se os homens as compreendessem bem, e seriam suficientes se houvesse vontade de as praticar (...)."(4)

As instituições que estruturam a nossa sociedade estabelecem na maioria dos indivíduos um modo de pensar em que impera como norma a concordância ou uniformidade de opiniões, sentimentos, idéias, crenças e pensamentos, sendo que essa postura psicológica age de forma implícita e silenciosa e, quase inconsciente, no cerne das coletividades.

Quanto mais elogio, aplauso e bajulação nos são necessários, mais estaremos nas mãos alheias. Se porventura, um dia, dermos qualquer passo na direção da independência, da autoaprovação ou da coragem de decidir, esse caminhar não será bem visto por aqueles que nos controlam. Essas novas e saudáveis atitudes serão tachadas de egoístas, frias, desprezíveis, ingratas, num esforço para manter-nos na dependência de todos aqueles que, durante anos, nos conservaram sob o seu domínio e poder.

Quando deixamos os outros conduzirem nosso jeito de sentir, pensar e agir, damos-lhes o consentimento de nos usar ou manipular como e quando quiserem.

Nosso valor reside neles, e se eles se recusarem a nos dar sua apreciação positiva, nos sentiremos um "nada", ou seja, emocional ou moralmente sem valor.

Estas palavras de Paulo constituem a síntese perfeita de um ser humano extraordinário que agia corajosamente perante a sociedade de sua época: "(...) falamos não para agradar aos homens, mas, sim, a Deus, que perscruta o nosso coração."(5)


Hammed




(1) Questão 711 
O uso dos bens da terra é um direito para todos os homens?
"Esse direito é a consequência da necessidade de viver.
Deus não pode ter imposto um dever sem haver dado os meios de o satisfazer."

(2) Mateus, 5:17 

(3) Lucas, 17:21

(4) Questão 794
A sociedade poderia ser regida somente pelas leis naturais, sem o concurso das leis humanas?
"Ela o poderia se os homens as compreendessem bem, e seriam suficientes se houvesse vontade de as praticar. Mas a sociedade tem suas exigências, e precisa de leis particulares."

(5) Paulo – I Tessalonicenses, 2:4.





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