Miramez - Livro Francisco de Assis - João Nunes Maia - Cap. 15
Cristo Fala
Shaolin meditava sobre as águas e observava os peixes que se servem d mar como casa, moradia essa que lhes assegura a vida. Sentia as lufadas do vento a brincar com as ondas. Demorou-se tanto ali, que não ouviu o chamado para repasto da tarde. Já surgiam as estrelas no majestoso infinito, estampando para o olhos humanos uma projeção nunca igualada pelos homens, de beleza e de esperança. Fixou o olhar tristonho no firmamento, e sentiu saudades, sem saber de quê e de quem, e o seu coração torturado por lembranças confusas, parecia querer parar e ali conversou com a Majestade Divina, em um tom de humildade que somente o Amor mais puro sabe e entende:
- Grande Força Universal que nos governa a todos! Estou me sentindo como folha seca ao vento, que o destino sopra, sem que eu saiba o que quero e para onde vou. Sei que sustentas todos os Teus filhos, onde quer que estejam, mas sei também que formulaste leis para nos guiar, educar e defender. Eu Te peço para me ensinar com mais eficiência essas leis, para que eu possa respeitá-las, respeitando igualmente a Ti.
Sinto-me, Senhor Jesus, agraciado pela visão deste momento, em que os céus me fascinam e criam em mim algo de esperança, predispondo-me ao Amor, a Ti e ao próximo, que por vezes intento destruir. Esse impulso deve ser a ignorância que ainda vibra em meu ser. Ajuda-me a libertar-me das influências maléficas que me mandam destruir, que me agridem para eu agredir, que me maltratam para eu maltratar...
Disseste, Jesus, muitas vezes, aos Teus discípulos, que eles seriam reconhecidos por muito se amarem, que o Amor não destrói, não maltrata, não agride, não rouba, não mente, não é dado ao ódio, não vinga, não alimenta o egoísmo; o Amor é pura Caridade. Então, Jesus, a Igreja que traz o Teu nome, e em Teu nome faz guerras, não Te obedece, desobedecendo às regras do Teu Evangelho de luz, que tenho n'alma escrito, e posso declamar a qualquer momento. Peço-te, Mestre dos mestres, guiar-me nos caminhos, abençoar-me para que eu não deixe de fazer o que é certo para mim. Porém, acima do que estou pedindo, faça-se a Tua vontade e não a deste Teu servo, que Te pede com humildade: concede-me um lugar no Teu rebanho, para que eu possa melhorar! E abençoa igualmente a todos os dirigentes inconscientes deste movimento trevoso das Cruzadas, para que eles possam mudar de opinião, principalmente no que tange a essas crianças, que sei, serão todas sacrificadas por hábeis guerreiros e ladrões sem sentimentos. Tira esse cálice dos destinos destes jovens, aliviando seus infortúnios. Caso não seja da Tua vontade, dá-lhes força para resistirem ao que deve ser feito, e que não pode ser mudado. Abençoa as estrelas, o mar, os peixes, o vento, a Terra. nAbençoa Senhor, os homens. Amém.
Shaolin recostou-se capim que lhe servia de cama. Sem sono, sentiu que sua mente buscava outras paragens.
Notou que estava como que saindo de uma casca, ou se despindo de pesada roupagem, parecendo-lhe estar perdendo os sentidos, o que não ocorreu.
Assustou-se com o fenómeno, e era homem de nada temer, mormente quanto a fatos inerentes ao Espírito, pois tinha consciência de que ninguém morre e que apenas muda de residência. Confiou em Deus, e se entregou àquela força que talvez o estivesse testando.
Sentindo as mais estranhas sensações, saiu, consciente, do corpo físico, e viu a sua roupa de carne estirada ao chão. Andou livremente no ambiente, olhos em redor e pensou em Deus. Buscou o Cristo, e uma alegria invadiu o seu ser ao ouvir uma voz que conhecia muito, lhe falando com brandura:
"Shaolin!... Sê bem-vindo, meu filho! Estás em outro plano de vida, sem que a tua consciência mude de dimensão, porque estás consciente do teu estado. O teu corpo de carne está em descanso, mas o Espírito é sempre movimento, e continua a agir e a viver neste plano espiritual".
Nisto, Shaolin começou a ver perfeitamente o seu guia, que sempre o acompanhava. Quis ajoelhar-se com reverência, mas ele não o permitiu, fazendo-o levantar-se, abraçando-o com ternura e dizendo:
- Não percas tempo em reverências com aquele que é simplesmente o teu irmão. Somos iguais na pauta da vida, e estamos juntos em busca da Unidade de que tanto precisamos. Vamos confiar em Deus e em Cristo, e um no outro, para compreender melhor o próximo e amá-lo com mais interesse. A vida, Shaolin, é muito boa, dependendo apenas de entendermos suas leis e vivê-las a cada passo. Não precisamos temer os acontecimentos indesejáveis de que o mundo está cheio, porque cada criatura vive no mundo que criou para si mesmo. Nós refazemos os nossos próprios destinos, com a inteligência aprimorada, e o coração pulsando no Amor. Não temas o que surgir em teu caminho. Se porventura vier o mal à tua procura, é porque ainda existe o mal dentro de ti, e a ti compete extirpá-lo, para que ele tome outro caminho. Rejeita-o quando se aproximar de ti, e segue por outros rumos, onde perceberes afinidade. Sei que estás querendo perguntar-me se deves ir, para onde te comprometeste moralmente; e eu te digo que a guerra somente atrai quem tem guerra por dentro.
Liberta-te de vez dos sentimentos de corrigir os outros, dos sentimentos de opressão, de mando, de egoísmo, de prepotência, de ódio e de inveja. Renuncia as coisas que não te fazem falta, para uma vida simples, e o ambiente de guerra sairá das tuas cogitações espirituais, pois perderás o interesse de defenderes os outros pela violência, o que nunca conseguirás. Cada criatura tem, e carrega consigo, os seus próprios meios de defesa de elevação espiritual. Essas cruzadas, como os tribunais do Santo Ofício, montadas por agentes das trevas, são para os próprios trevosos. Se saíres do mundo deles, claro que eles não o alcançarão? Não é dito no Evangelho que "Conhecereis a verdade e ela vos libertará"?
O como fazer para que não vás aonde pretendias, não é preciso que ensine. Desliga-te, mental e sentimentalmente, que a natureza tem leis apropriadas para te defender e tirar destas linhas de combate, para ti improfícuas. Deus sabe me do que nós como nos defender das forças contrárias ao Bem que já conquista - Quem sente a guerra, está pedindo guerra, quem sente o mal, está pedindo o mal quem sente o ódio, está pedindo o ódio... Faz o contrário, que encontrarás o inverso do que viceja no mundo, por ignorância. Sei que tens forças para tal, e deves com hoje mesmo, buscando a paz, o amor, e o aperfeiçoamento, sentindo-os, para que possa viver tudo o que a vida nos mostra como sendo a realidade. E foi o Cristo quem no revelou a mais pura conduta, que nos levará à verdadeira felicidade...
Eu te ajudo sempre!... Mas se não te ajudares, não fizeres a tua parte embrenhar-te-ás nas sombras, juntando-te aos companheiros que alimentam os mesmos sentimentos, e sofrerás as consequências até compreenderes a Verdade, mesmo que tenhas toda a nossa proteção, porque a libertação é um conjunto de coisas divinas que se dividem para que cada um faça a sua parte. Esta é a lei, esta é a vida.
O guia espiritual de Shaolin, parecendo uma estrela que desceu das alturas, iluminava todo o ambiente em policromia indescritível. Por mais que se esforçasse para não fazê-lo, Shaolin chorava emocionado, e respondeu ao seu amigo espiritual:
- Eu te agradeço, senhor, por tudo o que me deste nesta hora; que Deus te compense sempre e sempre. Nada tenho para te ofertar em troca, por não estar em condições de doar qualquer coisa aos Anjos!
Pegou suas mãos, beijando-as com gratidão. Regressou ao corpo com toda a consciência do ocorrido. Permaneceu quieto, relembrando a conversa que teve com o guia espiritual, e falou baixinho:
"Meus Deus!... Que beleza; quanta alegria existe, mesmo no mundo material... Tudo depende de nós e da compreensão das criaturas; existe aqui de tudo para que possamos viver felizes, dependendo somente de certas mudanças..."
Seu coração irradiava alegria espiritual e triunfante, ele dormiu serenamente, confiando que recebemos aquilo a que realmente fizemos jus.
No dia seguinte, Shaolin amanheceu restabelecido, e analisando a si mesmo, sobre o que poderia e deveria ser mudado na sua vida. Os acontecimentos exteriores ficariam entregues a Deus, que tinha condições de resolvê-los com justiça Daquele dia em diante, iria sim, entrar na guerra, na pior das guerras, naquela declarou a si mesmo, contra as suas próprias inferioridades. Sentia que era a mais difícil das lutas até então encarada por ele. Sabia também que estava começando, mas jamais saberia o dia em que terminaria. Fosse como fosse, começou!...
Havia sido colocado um sino na embarcação, para anunciar a partida, o do dia e chamar para as refeições. Um fanático dos mais afoitos declarou aos gritos:
- Este sino vai anunciar com orgulho, nossa religião e o dia da vitória, que não será nossa, mas de Deus.
E repetiu as palavras do grande pontífice que fundou as Cruzadas no Concilio de Clermont, Urbano II:
"Deus o quer".
A multidão inconsciente, no impulso da inferioridade, levantava bandeiras, desejando a conquista do Santo Sepulcro. As mães, tocadas pelos sentimentos de amor aos seus filhos, apenas choravam, com o pressentimento de que não iriam vê-los mais. Shaolin não tinha de quem se despedir e o navio partiu. Ele apenas olhava para os céus, pedindo a Deus que fizesse a Sua vontade, que tudo estava certo na pauta dos acontecimentos. Uma frota de embarcações partiu de Veneza, pronta para o combate, e Shaolin, edificado no Bem, dentro da sua embarcação esqueceu a guerra e entregou as mãos ao trabalho que lhe competia fazer.
Miramez
Pág. 201 a 205
Fonte: Francisco de Assis-pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário