Hammed - Livro Os Prazeres da Alma - Francisco do Espírito Santo Neto - Pág. 38
Autoconhecimento
O autoconhecimento é a capacidade inata que nos permite perceber, de forma gradativa, tudo que necessitamos transformar. Ao mesmo tempo, amplia a consciência sobre nossos potenciais adormecidos, a fim de que possamos vir a ser aquilo que somos em essência.
O autoconhecimento nos dá a habilidade de saber como e onde agem nossos pontos frágeis e até a quem atribuímos nossas emoções e sentimentos, facilitando-nos compreender melhor os que nos rodeiam. Caminhar no processo do autoconhecimento significa desenvolver gradativamente o respeito aos nossos semelhantes, impedindo que façamos projeções triviais e levianas de nossas deficiências nos outros.
Apenas quando tivermos um considerável conhecimento de nós mesmos é que poderemos ajudar efetivamente alguém. Se desconhecemos nosso mundo interior, como poderemos transmitir segurança e determinação ou dar força aos outros? O autoconhecimento requer constante autorreflexão.
Muitos relacionamentos não dão certo porque as pessoas não olham para dentro de si mesmas, não percebendo, assim, seus pontos vulneráveis e suas limitações. Quando atenuamos ou amenizamos as críticas a nosso respeito e a respeito dos outros, estamos assimilando de forma verdadeira as lições que o autoconhecimento nos proporciona. Não são os grandes conflitos que tornam nossas relações (de negócios, de amizade, de família, conjugais) malsucedidas, e sim um conjunto de "insignificantes diferenças", reunidas através de longo período de tempo. Cobranças, indelicadezas, petulância, insensibilidade, autoritarismo, desinteresse, impaciência, desrespeito - essas pequenas faltas no dia-a-dia podem destruir até mesmo as mais antigas e afetuosas convivências. Embora não possamos perceber de forma clara e direta, lançamos na vida interpessoal pensamentos e emoções inaceitáveis. Eles formam nosso lado escuro - aquela área do inconsciente que governa e, ao mesmo tempo, dita as normas tanto nos confrontos desagradáveis como nos ímpetos de deboches e gracejos em nossos inúmeros relacionamentos.
Descobrimos o quanto nosso "eu oculto" está em plena atividade quando rimos exageradamente de uma pessoa que escorrega na rua, ou que se equivoca diante de uma palavra, ou mesmo quando ela sofre algum tipo de comparação sarcástica com ponto "censurado" do seu corpo.
Nossa "área sombria" é uma região inexplorada e indomada que atua de forma imperceptível em nossas ações e atitudes. Geralmente, é essa "área" que participa de nossas "supostas brincadeiras" e influência com precisão o tipo de palavras engraçadas e picantes que deveremos usar nas piadas chulas, nas expressões maliciosas e zombeteiras.
A mensagem subliminar desse nosso "mundo oculto" aparece quando nos horrorizamos com o comportamento sexual das pessoas, recriminando e discriminando cruelmente raças, credos e grupos de "minoria".
Os demônios, na Idade Média, e igualmente as bruxas e hereges simbolizaram brutais projeções de nosso desconhecido "lado escuro". Suplícios e fogueiras, guilhotina e ferro em brasa são marcas que assinalaram a história da humanidade com os ferretes da nossa crueldade inconsciente. É surpreendente como nossas tendências desconhecidas sempre arrumam uma forma de se "dourarem" de princípios filosóficos, redentores ou salvacionistas. O desconhecimento de nossa vida interior profunda nos conduz ao vale da incompreensão de nossos sentimentos para com nós mesmos e para com os outros.
"(...) os Espíritos foram criados simples e ignorantes (...) Se não houvesse montanhas, o homem não poderia compreender que se pode subir e descer, e se não houvesse rochedos, ele não compreenderia que há corpos duros. É preciso que o Espírito adquira experiência e, para isso, é preciso que ele conheça o bem e o mal (...)." (1)
Projetamos nossa sombra quando "pegamos alguém para Judas"(2); quando denegrimos e julgamos a sexualidade alheia sem nos dar conta dos próprios conflitos sexuais. Ela não somente se manifesta em um indivíduo, mas pode exprimir-se em um corpo social inteiro: nas perseguições raciais (nazismo, apartheid, Ku Klux Klan e outras tantas) e nas chamadas "guerras santas" ou "religiosas". Em outras circunstâncias, na repugnância e no ódio visivelmente explícitos e sem controle revelados por meio de palavras e gestos violentos; na aversão ou irritabilidade diante de certas reportagens publicadas pelos veículos de divulgação; nas atitudes de cinismo e nas mais corriqueiras situações e acontecimentos da vida social; e também nas projeções satíricas ou maliciosas em presença de pessoas consideradas "diferentes". Já é tempo de não mais apontarmos o "cisco" no olho alheio.
Lembremo-nos de Jesus Cristo, o Notável Terapeuta de nossas almas, ao analisar os conflitos que atormentavam os seres humanos por não admitirem os diversos aspectos da própria sombra: "Assume logo uma atitude conciliadora com o teu adversário, enquanto estás com ele no caminho, para não acontecer que o adversário te entregue ao juiz e o juiz ao oficial de justiça e, assim, sejas lançado na prisão."(3)
Nossos piores inimigos ou adversários estão dentro de nós, não fora. É imprescindível nos reconciliarmos com os opositores íntimos, ou seja, enxergarmos com bastante nitidez nosso "lado escuro", para atingirmos paz e tranquilidade de espírito.
Não somos necessariamente aquilo que parecemos ser. O autoconhecimento é a capacidade inata que nos permite perceber, de forma gradativa, tudo que necessitamos transformar. Ao mesmo tempo, amplia a consciência sobre nossos potenciais adormecidos, a fim de que possamos vir a ser aquilo que somos em essência.
Aqueles que não conhecem a si mesmos dificilmente terão um bom relacionamento com os outros. O ser humano deve afastar de sua vida hábitos e crenças que o tornam inconsciente da própria vida íntima. Só tememos o que desconhecemos. O autoconhecimento requer um constante exercício, no reino do pensamento reflexivo, sobre as sensações externas e internas. Viver uma vida sem reflexão é como escutar uma música sem melodia.
Examinando o Novo Testamento com os olhos da psicologia, chegamos à conclusão de que Jesus Cristo foi uma criatura extraordinária e fascinante, um psicoterapeuta por excelência, além de significativamente moderno. As palavras, os atos e a vida do Mestre possuem, sob muitos aspectos, um significado oculto que é desvendado por todos aqueles que possuem "olhos de ver e ouvidos de ouvir".
Narra-nos o apóstolo Mateus: "(...) ele dirigiu-se a eles, caminhando sobre o mar. Os discípulos, porém, vendo que caminhava sobre o mar, ficaram atemorizados e diziam: É um fantasma! E gritaram de medo. Mas Jesus lhes disse logo: Tende confiança, sou eu, não tenhais medo. Pedro, interpelando-o, disse: Senhor, se és tu, manda que eu vá ao teu encontro sobre as águas. E Jesus respondeu: Vem." (4)
A água é a imagem da dinâmica da vida, das energias e dos conteúdos desconhecidos da alma, das motivações secretas e ignoradas. Ela é o simbolismo da "sombra"(5), da vida inconsciente, ou "além-mar" de nossa existência de Espíritos imortais. A água representa tudo aquilo que está contido imperceptivelmente na alma, e que o homem se esforça para trazer à superfície porque pressente que poderá alimentá-lo e sustentá-lo seguramente.
O Mestre pairava sobre as águas, ou seja, dominava o lado escuro da natureza humana. Ele entendia o medo e a insegurança em que viviam os homens - efeitos da sombra pessoal e coletiva - e os motivos da desunião ou segregação da maioria das pessoas e dos grupos sociais.
Renegamos ou não percebemos de forma lúcida essa área oculta e profundamente influente que existe em nossa intimidade. Por essa razão, projetamos nossa sombra "lá fora", nas qualidades ou nas atitudes desagradáveis dos outros. Quando sentimos grande admiração por uma criatura, ou quando reagimos intensamente contra alguém, isso talvez seja a manifestação de nossa sombra.
A negação da sombra faz com que abominemos as deficiências alheias, evitando vê-las em nós. Também atribuímos aos outros nossos potenciais não desenvolvidos, fazendo deles heróis ou gurus - nutrimos enigmáticas alianças ou paixões desmedidas. A sombra surge sempre em nosso cotidiano; por exemplo, quando lançamos nossas emoções ocultas, nossa fragilidade, nossa insegurança e nossos medos em algo ou alguém.
"Diabo" - do grego diábolos e do latim diabolus - significa literalmente "o que separa", "o que desune". A "separação" é que nos impede de ver a unidade que há em nós e a unidade de todos nós, porquanto dificulta a percepção dos diferentes aspectos evolutivos em nossa intimidade. Ao aceitarmos nossos "opostos" (autoritarismo-subserviência, bajulação-desprezo, futilidade-desleixo, artimanha-credulidade, possessividade-insensibilidade), aprendemos o ponto de equilíbrio das polaridades - é admitindo os lados que chegamos ao meio-termo.
Ao aceitarmos a "unidade" ou o "caminho do meio", começamos a dar fim à nossa rivalidade com nós mesmos e com os outros. Ficamos a favor de nossa realidade, ao invés de hostilizá-la.
Nossa visão de mundo ainda depende dos lados positivo e negativo; da nossa ambivalência de seres humanos em evolução; em outras palavras, da coexistência de atitudes, tendências e sentimentos opostos inerentes à condição humana.
A qualidade mediadora para unir os opostos e que nos leva ao equilíbrio se chama amor. O amor une as pessoas e, ao mesmo tempo, as interliga com as outras criaturas. Não podemos projetar nossas atitudes rudes, sombrias, insuportáveis e complicadas sobre entidades exteriores, como os "demônios". A característica básica daqueles que acreditam em seres criados especificamente para o mal é buscar constantemente um "bode expiatório" para tudo na vida. As criaturas que assim creem precisam, no fundo, negar seu lado fraco ou impulsos inaceitáveis, culpando o mundo pelo desequilíbrio que elas não vêem em si mesmas. São consideradas caçadoras crônicas de bodes expiatórios e quase sempre escapam de suas responsabilidades, atos e consequências com uma projeção do tipo: "O diabo ou os maus espíritos me levaram a fazer ou falar isso."
O Espiritismo ensina que o desequilíbrio reside na intimidade de cada um de nós. Quando temos a coragem de ouvir os "demônios" interiores - que simbolizam alguns aspectos de nossa sombra, isto é, aquelas tendências em nós que mais tememos e das quais fugimos -, atingimos com mais facilidade a automelhoria. "Se houvesse demônios, eles seriam obra de Deus, e Deus seria justo e bom se houvesse criado seres devotados eternamente ao mal e infelizes? Se há demônios, eles habitam em teu mundo inferior e em outros semelhantes. São esses homens hipócritas que fazem de um Deus justo um Deus mau e vingativo (...)"(6).
"(...) ele dirigiu-se a eles, caminhando sobre o mar. Os discípulos, porém, vendo que caminhava sobre o mar, ficaram atemorizados (...)." O Mestre de Nazaré nos convida a andar sobre as águas, a não sentir medo de olhar para dentro de nós mesmos e de sondar as nossas profundezas. A sombra parece ser um "espectro horrível" que nos habita o íntimo; no entanto, ao trazermos nosso lado escuro à luz da consciência, veremos que se trata apenas de nós mesmos, "viajores do Universo", carentes de aprendizagem e conhecimento acerca da Inteligência Divina que se manifesta dentro e fora de nós.
Hammed
(1) Questão 634
Por que o mal está na natureza das coisas? Eu falo do mal moral. Deus não poderia criar a Humanidade em melhores condições?
"Já te dissemos: os Espíritos foram criados simples e ignorantes (115). Deus deixa ao homem a escolha do caminho; tanto pior para ele, se toma o mau: sua peregrinação será mais longa. Se não houvesse montanhas, o homem não poderia compreender que se pode subir e descer, e se não houvesse rochedos, ele não compreenderia que há corpos duros. É preciso que o Espírito adquira experiência e, para isso, é preciso que ele conheça o bem e o mal. Por isso, há a união do Espírito e do corpo (119)."
(2) Expressão alusiva ao apóstolo Judas Iscariotes, aquele que traiu Jesus e que caiu na antipatia do povo. Até hoje, infelizmente, esse episódio é lembrado e o boneco que o representa é malhado e queimado no Sábado de Aleluia, em praça pública.
(3) Mateus, 5:25
(4) Mateus, 14:25 a 29
(5) Nota da Editora Ver a definição de sombra no capítulo "Afetividade" (pág.57).
(6) Questão 131
Há demónios, no sentido que se dá a esta palavra?
"Se houvesse demónios, eles seriam obra de Deus, e Deus seria justo e bom se houvesse criado seres devotados eternamente ao mal e infelizes?
Se há demónios, eles habitam em teu mundo inferior e em outros semelhantes. São esses homens hipócritas que fazem de um Deus justo um Deus mau e vingativo, e creem lhe serem agradáveis pelas abominações que cometem em seu nome. " Nota - A palavra demónio não implica a ideia de Espírito mau senão na sua significação moderna, porque a palavra grega daimon, da qual se origina, significa génio, inteligência e se emprega para designar os seres incorpóreos, bons ou maus, sem distinção. (...)
Fonte: Os Prazeres da Alma-pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário