Hammed - Livro Os Prazeres da Alma - Francisco do Espírito Santo Neto - Pág. 58/62
Naturalidade
Infelizmente, a maioria de nós porta-se como um barco desgovernado, à mercê dos vendavais e dos rochedos, por não ter a âncora necessária quando os ventos sopram e as ondas se avolumam.
Não acreditamos estar nas mãos de Deus. Sentimo-nos isolados, fora do contexto universal. Não acreditamos que cada coisa permanece em seu devido lugar e que tudo tem um fim providencial. Não possuímos uma visão detalhada da sequência do desenvolvimento da vida sobre a Terra; vemos o mundo desconectado do todo, porque nossa percepção interior está desmembrada da Inteligência Cósmica.
No Universo, não há nada que esteja desvinculado da sabedoria das leis divinas ou naturais. Tudo que existe está de acordo com a Ordem Celestial, e cada um de nós faz parte de um plano específico de Deus.
Em tudo existe uma relação de coerência, uma conexão ou união; são texturas de uma única rede universal. Os fios dessa rede astral são tecidos e revigorados pela energia divina, que está em nós e em todos os lugares. Somos ainda impotentes para perceber todas as linhas invisíveis que tecem a nossa existência.
A ilusão de que vivemos separados afasta-nos da cosmovisão e nos transforma nos principais adversários da vitalidade do planeta. A separação e a fragmentação de tudo e de todos são crenças distorcidas que se disseminaram como "verdades" no seio da humanidade. Todos somos filhos da "Alma do Universo"; fazemos parte de um maravilhoso entrelaçamento divino.
Observemos a expressão acima − "tudo se liga"; ela nos dá exatamente a ideia do Uno que se revela − o Ser, nos seres; o Invisível, no visível; o Criador, nas criaturas.
Ninguém hoje ignora que o homem é um mamífero, nem que possui um parentesco milenar com a denominada "criação animal". Até um século atrás, seria uma imperdoável heresia incluir os seres humanos na teoria da evolução das espécies.
As semelhanças entre o homem e outros mamíferos tornam-se cada vez mais evidentes à medida que a ciência os estuda e os compara com diferentes espécies. A maioria dos intelectuais reconhece hoje que somos o resultado de uma secular cadeia evolutiva que também deu origem aos demais seres vivos − animais e vegetais.
Se bem que, na atualidade, muitas pessoas ainda creiam que a Terra foi criada em seis dias e que toda a flora e toda a fauna foram feitas por Deus, em benefício físico, entretenimento e deleite espiritual da espécie humana.
No mar, podemos reconhecer a imensa "pirâmide da vida", o fio místico ou o elemento misterioso que nos envolve amorosamente com tudo. Não estamos sozinhos! Debaixo da agitada e constante movimentação do oceano reina em suas profundezas uma serena tranquilidade. É possível dirigir-nos para lá, de forma silenciosa, usando nossa vontade e nosso pensamento, a fim de restabelecermos nosso "elo perdido" ou buscarmos a nossa tão almejada paz interior. Por meio desse constante exercício de reflexão ou meditação, abandonamos a turbulenta superfície do mundo exterior e reencontramos a "ligação" com a Natureza.
Os escritos místicos de todas as eras sempre nos alertaram de que a humanidade fracassaria se não compreendesse essa realidade − somos unos, somos todos irmãos. Todos nós somos águas da mesma Fonte, mas corremos momentaneamente em leitos diferentes.
De todas as criaturas da Natureza, o ser humano é o único que se questiona ininterruptamente sobre a própria identidade. De fato, pertence à humanidade − gerada há milênios na noite dos tempos − a destinação de reconhecer a si mesma, emergindo gradativamente da inconsciência em que se encontra para a elaboração da própria consciência. Dessa forma, o grandioso destino do homem é desvendar pouco a pouco a perfeição dos ciclos naturais dos quais ele faz parte, desenvolvendo seus dons intransferíveis e tornando-se cada vez mais consciente de que não está desligado da destinação de seus semelhantes. Todas as existências são interligadas, tendo como desígnio o progresso e o bem de todos nós.
Por que será que habitualmente analisamos a conduta ética dos homens só pelo aspecto teológico e descartamos a fundamentação científica apoiada na natureza?
Heráclito de Éfeso, um sábio filósofo grego, nos deixou uma máxima plena de significação: "Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo lugar". Assim considerando, diríamos que realmente não tocaremos duas vezes no mesmo rio não só por causa da dinâmica do curso das águas, mas também porque o veremos de forma diferente. Não somos hoje o que fomos ontem e nem seremos amanhã o que somos agora; transformamo-nos dinamicamente ao longo de etapas ou fases de aprimoramento espiritual.
A Natureza não faz nada em série. Toda pessoa possui uma tendência inata de ser ela mesma. O progresso da alma pode, em termos, ser comparado com o crescimento físico.
Quando observamos o corpo de uma criança, sabemos que tudo quanto ela precisa é do tempo certo para atingir seu completo desenvolvimento físico -emocional. Igualmente, quando encontramos outro ser humano numa fase qualquer de seu ciclo evolutivo, precisamos respeitar a sua naturalidade, uma vez que cada criatura está estagiando num determinado grau de aperfeiçoamento interior. Reportando-se à marcha do progresso, assim se manifestaram as Entidades Benevolentes: "O homem se desenvolve, ele mesmo, naturalmente. Mas nem todos progridem ao mesmo tempo e da mesma forma; é então que os mais avançados ajudam o progresso dos outros, pelo contato social."(1)
Confundimos constantemente dois conceitos fundamentais da biologia − o natural e o normal. A definição de não natural, de natural, de normal, de anormal, de paranormal sofre significativas alterações através do tempo em cada povo ou nação. Se tomarmos por normal o indivíduo que esteja completamente isento de traumas, desajustamento emocional ou dificuldades íntimas, certamente não encontraremos criaturas normais.
Na verdade, o "normal" não existe, e quanto antes percebermos isso mais desfrutaremos e participaremos do mundo da naturalidade. Aliás, é importante lembrarmos que a mentalidade humana, ao longo do tempo, utiliza sua capacidade de reflexão: reestuda condutas, reelabora valores e altera conceitos, antes tidos como absolutos, para relativos. Lembremo-nos do que os Semeadores da Boa Nova responderam a Kardec: "O homem se desenvolve, ele mesmo, naturalmente”. Não é necessário forçar a capacidade evolutiva do ser humano.
Durante séculos, o homem despende um imenso esforço na busca de alguma solução definitiva para entender a diferença comportamental das criaturas humanas, seja numa cadeia de cromossomos, numa pesquisa psicológica, numa análise de hipotálamo, seja num versículo da Bíblia.
Por que será que habitualmente analisamos a conduta ética dos homens só pelo aspecto teológico e descartamos a fundamentação científica apoiada na Natureza? Nota-se que quase sempre os argumentos teológicos se tornam difíceis à compreensão quando nos colocamos em países ou continentes cujos habitantes têm culturas e tradições diferentes das nossas e seguem outros sistemas filosóficos e religiosos.
Se examinássemos as populações do planeta com uma visão empática através dos princípios da Natureza − vê-las do ponto de vista delas mesmas −, com certeza entenderíamos melhor a diversidade das tendências, dos costumes sociais, dos atos e atitudes humanas. Não só nas religiões, mas igualmente na Natureza − a criação divina em ação −, deveríamos procurar as respostas para entender a desigualdade comportamental dos indivíduos.
Toda "noção de mundo" é provisória. Quando congelamos a concepção de algo ou de alguém, distorcemos a realidade. Nada é estático. A evolução é dinâmica.
O mundo atual busca uniformizar as pessoas sem perceber que a própria Natureza é contra a padronização, pois ela mesma procura preservar a harmonia da criação, mantendo as diversidades entre os seres vivos.
Somos também Natureza; todos temos características particulares. Embora existam em nós inúmeras habilidades comuns, a peculiaridade é um selo divino impresso na alma imortal. Querer ser igual a todos é uma forma muito estranha e contraditória de viver. Não podemos traduzir o interno pelo que vemos no externo.
Trazemos na intimidade uma singularidade só nossa. Todos somos diferentes, e o sucesso de uma vida plena é nos expressarmos diante do mundo usando nossa originalidade.
A Inteligência Cósmica nos dotou, desde a criação, de dons e talentos necessários para darmos ao Universo a nossa cota de participação.
A maior tarefa que nos cabe na Terra é aceitarmos naturalmente a atual condição evolutiva e nos realizarmos manifestando a nossa verdadeira individualidade de filhos de Deus em processo de crescimento, designados a cumprir os planos divinos que Ele arquitetou para cada um de nós.
Hammed
(1) "Tudo é transição na Natureza, pelo fato mesmo de que nada é semelhante e que, todavia, tudo se liga. As plantas não pensam e, por conseguinte, não têm vontade. A ostra que se abre e todos os zoófitos não pensam: não têm senão um instinto cego e natural."
Certas plantas, tais como a sensitiva e a dionéia, por exemplo, têm movimentos que acusam uma grande sensibilidade e, em certos casos, uma espécie de vontade, como a última, cujos lóbulos apanham a mosca que vem pousar sobre ela para sugá-la, e à qual parece armar uma armadilha para em seguida matá-la.
Essas plantas são dotadas da faculdade de pensar? Elas têm uma vontade e formam uma classe intermediaria entre a natureza vegetal e a natureza animal? São uma transição de uma para outra?
"Tudo é transição na Natureza, pelo fato mesmo de que nada é semelhante e que, todavia, tudo se liga. As plantas não pensam e, por conseguinte, não têm vontade. A ostra que se abre e todos os zoófitos não pensam: não têm senão um instinto cego e natural."
Nota - O organismo humano nos oferece exemplos de movimentos análogos sem a participação da vontade, como nas funções digestivas e circulatórias. O piloro se contrai ao contato de certos corpos para lhes negar passagem. Deve ser como na sensitiva, na qual os movimentos não implicam, de modo algum, na necessidade de uma percepção e ainda menos de uma vontade.
(1) O Livro dos Espíritos. Questão 779 − O homem possui em si a força de progredir ou o progresso não é senão o produto de um ensinamento?
"O homem se desenvolve, ele mesmo, naturalmente. Mas nem todos progridem ao mesmo tempo e da mesma forma; é então que os mais avançados ajudam o progresso dos outros, pelo contato social”.
Fonte: Os Prazeres da Alma-pdf
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