Dr. Alphonse de Grand Boulogne - Revista Espírita - Allan Kardec - Jornal de estudos psicológicos - Ano III - Agosto, 1860
Concordância espírita e cristã
A carta seguinte foi dirigida à Sociedade de Estudos Espíritas pelo Dr. de Grand-Boulogne, antigo vice-cônsul da França.
Sr. Presidente,
Desejando vivamente fazer parte da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, mas forçado a deixar a França brevemente, venho solicitar a honra de ser aceito como membro correspondente. Tenho a vantagem de vos conhecer pessoalmente e não necessito dizer-vos com que interesse e simpatia acompanho os trabalhos da Sociedade. Li vossas obras, bem como a do Barão de Guldenstubbe e, consequentemente, conheço os pontos fundamentais do Espiritismo, cujos princípios adoto sinceramente, tais quais vos são ensinados. Como protesto aqui a minha firme vontade de viver e morrer cristão, esta declaração me leva a vos fazer minha profissão de fé, e talvez vejais com que interesse minha fé religiosa acolhe muito naturalmente os princípios do Espiritismo. Eis como, em minha opinião, as duas coisas se aliam:
1. ─ Deus: criador de todas as coisas.
2. ─ Objetivo e fim de todos os seres criados: concorrer para a harmonia universal.
3. ─ No Universo criado, três reinos principais: o material ou inerte; o orgânico ou vital; o intelectual e moral.
4. ─ Todo ser criado está submetido a leis.
5. ─ Os seres compreendidos nos dois primeiros reinos obedecem submissamente, e por eles a harmonia jamais é perturbada.
6. ─ Como os dois primeiros, o terceiro reino está submetido a leis, mas goza do singular privilégio de poder subtrair-se a elas e possui a terrível faculdade de desobedecer a Deus: é o que constitui o livre-arbítrio. O homem pertence simultaneamente aos três reinos: é um Espírito encarnado.
7. ─ As leis que regem o mundo moral estão formuladas no Decálogo, mas se resumem neste admirável preceito de Jesus: Amai a Deus sobre todas as coisas e ao vosso próximo como a vós mesmos.
8. ─ Toda derrogação da lei constitui uma perturbação na harmonia universal. Ora, Deus não permite que tal perturbação persista e a ordem deve ser inevitavelmente restabelecida.
9. ─ Existe uma lei destinada à reparação da desordem no mundo moral, e essa lei está inteira nesta palavra: expiação.
10. ─ A expiação efetua-se: 1.º ─ pelo arrependimento e os atos de virtude; 2.º ─ pelo arrependimento e as provas; 3.º ─ pela prece e as provas do justo, unidas ao arrependimento do culpado.
11. ─ A prece e as provas do justo, embora concorram da maneira mais eficaz para a harmonia universal, são insuficientes para a expiação absoluta da falta. Deus exige o arrependimento do pecador, mas com esse arrependimento, a prece do justo e sua penitência em favor do culpado bastam à eterna justiça, e o crime é perdoado.
12. ─ A vida e a morte de Jesus põem em evidência esta adorável verdade.
13. ─ Sem livre-arbítrio não há pecado, mas também não há virtude.
14. ─ Que é a virtude? A coragem no bem.
15. ─ O que há de mais belo no mundo não é, como disse um filósofo, o espetáculo de uma grande alma lutando com a adversidade; é o esforço perpétuo de uma alma progredindo no bem e elevando-se de virtude em virtude até o Criador.
16. ─ Qual a mais bela de todas as virtudes? A Caridade.
17. ─ Que é a caridade? É o atributo especial da alma que, em suas ardentes aspirações para o bem, se esquece de si mesma e se consome em esforços pela felicidade do próximo.
18. ─ O saber está muito abaixo da caridade; ele nos eleva na hierarquia espírita, mas não contribui para o restabelecimento da ordem perturbada pelo mau.
O saber nada expia, nada resgata, em nada influi sobre a justiça de Deus. A caridade, ao contrário, expia e apazigua. O saber é uma qualidade; a caridade, uma virtude.
19. ─ Ao encarnar os Espíritos, qual foi o desígnio de Deus? Criar, para uma parte do mundo espiritual, uma situação sem a qual não existiria nenhuma das grandes virtudes que nos enchem de respeito e de admiração. Com efeito, sem o sofrimento não há caridade; sem o perigo não há coragem; sem a desgraça não há devotamento; sem a perseguição não há estoicismo; sem a cólera não há paciência, etc. Ora, sem a corporeidade, com o desaparecimento desses males, desapareceriam essas virtudes.
Para o homem um pouco desprendido dos laços da matéria, neste conjunto de bem e de mal há uma harmonia, uma grandeza de ordem mais elevada que a harmonia e a grandeza do mundo exclusivamente material.
Isto responde em poucas palavras às objeções baseadas na incompatibilidade do mal com a bondade e a justiça de Deus.
Seriam necessários volumes para desenvolver convenientemente essas diversas proposições. Mas o objetivo desta comunicação não é oferecer à Sociedade uma tese filosófica e religiosa. Eu quis apenas formular algumas verdades cristãs em harmonia com a Doutrina Espírita. Do meu ponto de vista, essas verdades são a base fundamental da religião e, longe de enfraquecer-se, elas se fortificam com as revelações espíritas. Também não hesito em formular uma censura; é que os ministros do culto, enceguecidos pela demonofobia, se recusem a esclarecer-se e condenem sem exame. Se os cristãos abrissem os ouvidos às revelações dos espíritos, tudo quanto, no ensino religioso, perturba os nossos corações ou revolta a nossa razão, desvanecer-se-ia de repente. Sem se modificar em sua essência, a religião alargaria o círculo de seus dogmas e os lampejos da verdade nova consolariam e iluminariam as almas. Se, como diz o Pe. Ventura, é certo que as doutrinas filosóficas ou religiosas acabam invencivelmente por se traduzirem nos atos ordinários da vida, é bem evidente que uma nação iniciada no Espiritismo tornar-se-ia a mais admirável e a mais feliz das nações.
Dir-se-á que uma Sociedade realmente cristã seria perfeitamente feliz. Concordo. Mas o ensino religioso tanto se faz pelo terror quanto pelo amor, e os homens, dominados por suas paixões, querendo a todo preço libertar-se dos dogmas que os ameaçam, serão sempre tão numerosos que o grupo dos cristãos firmes constituirá sempre pequena minoria. Os cristãos são numerosos, mas os verdadeiros cristãos são raros.
Não acontece assim com o ensino espírita. Embora sua moral se confunda com a do Cristianismo e pronuncie, como esse, palavras cominatórias, ele tem ricos tesouros de consolação. Ele é, ao mesmo tempo, tão lógico e tão prático; lança uma luz tão viva sobre o nosso destino; afasta tão bem as obscuridades que perturbam a razão e as perplexidades que atormentam os corações, que na verdade parece impossível que um espírita sincero negligencie um só dia trabalhar o seu progresso e, assim, não concorra para restabelecer a harmonia perturbada pelo desbordamento das paixões egoísticas e cúpidas.
Pode-se pois afirmar que propagando as verdades que temos a felicidade de conhecer, trabalhamos pela Humanidade e nossa obra será abençoada por Deus. Para que um povo seja feliz, é necessário que o número dos que querem o bem, que praticam a lei da caridade, supere o dos que querem o mal e só praticam o egoísmo.
Creio em minha alma e tenho consciência de que o Espiritismo, apoiado no Cristianismo, é chamado a operar esta revolução.
Penetrado de tais sentimentos e querendo, na medida de minhas forças, contribuir para a felicidade de meus semelhantes, ao mesmo tempo que busco tornar-me melhor, peço, Sr. presidente, para fazer parte de vossa Sociedade.
Aceitai, etc.
De Grand-Boulogne, doutor em Medicina,
Antigo vice-cônsul da França.
OBSERVAÇÃO: Esta carta dispensa comentários e cada um apreciará o alto alcance dos princípios nela formulados de maneira ao mesmo tempo tão profunda, tão simples e tão clara. São esses os princípios do verdadeiro Espiritismo; esses que certos homens ousam pôr em ridículo, pois pretendem o privilégio da razão e do bom-senso, por não saberem se têm alma e não fazerem diferença entre o seu futuro e o de uma máquina. Apenas uma observação acrescentaremos: é que o Espiritismo bem compreendido é a salvaguarda das ideias verdadeiramente religiosas que se extinguem; que contribuindo para o melhoramento dos indivíduos, ele trará, pela força das coisas, o melhoramento das massas, e que não está longe o tempo de os homens compreenderem que nesta doutrina encontrarão o mais fecundo elemento da ordem, do bem-estar e da prosperidade dos povos. E isto por uma razão muito simples: é que ela mata o materialismo, que desenvolve e alimenta o egoísmo, fonte perpétua de lutas sociais, e lhe dá uma razão de ser. Uma Sociedade cujos membros fossem todos guiados pelo amor ao próximo; que inscrevesse a caridade no alto de todos os seus códigos, seria feliz, e em breve veria apagarem-se os ódios e as discórdias. O Espiritismo pode realizar este prodígio e o fará, a despeito dos que ainda o agridem, porque os agressores passarão, mas o Espiritismo permanecerá.
Allan Kardec
Dr. Alphonse de Grand Boulogne
Autor da "Carta de um católico sobre o Espiritismo", ele era doutor em medicina, cavaleiro da legião de honra, antigo secretário da Sociedade Acadêmica de Medicina de Marselha, antigo vice-cônsul da França em Cuba e médium correspondente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas em Havana, tendo sido mencionado apenas como Dr. Grand a partir da 2ª edição de O Livro dos Médiuns (Primeira parte - Noções preliminares > Capítulo IV - Dos sistemas). Mas na 1ª edição de 1861 aparece como Dr. Grand Boulogne. Na R.E. aparece como Dr. Grand e Dr. De Grand Boulogne.
Fonte: Kardecpedia
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