Falibilidade
A diferença entre ter religiosidade e ser religioso é que o religioso acredita unicamente nas experiências que os outros disseram que tiveram com Deus, enquanto que aquele que cultiva a religiosidade desenvolve sua própria experiência com o Criador.
O Espiritismo nos encoraja a uma interiorização em busca da iluminação íntima. Doutrina que nos inspira não somente a recorrer à sabedoria das criaturas iluminadas que vivem em nossa época ou que viveram antes de nós, mas também que nos ensina a tomar posse da força espiritual que há em nosso interior.
Ora, se procuramos desenvolver nosso potencial de religiosidade – encontrar Deus em nós-, somos convidados a sair das nossas zonas de conforto e nos permitir ser flexíveis à mudança, que é o ponto de partida para atingirmos níveis de consciência cada vez mais amplos e elevados.
Entretanto, toda mudança gera desafios, que ora aliviam e alegram, ora frustram e entristecem. Mudar é um processo que a Providência Divina utiliza para garantir a evolução. “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei.”[1] Nesta sentença, a palavra-chave é “mudança”.
No entanto, somente mudamos ou nos renovamos quando tomamos conhecimento de nossos potenciais sufocados, isto é, quando constatamos que desconhecemos vários aspectos da vida externa e/ou interna. O médium que é ciente da imensidade das coisas que desconhece é sempre receptivo à renovação.
Aceitamos mudar quando notamos nossa falta de habilidade em tratar a nós mesmos e a aos outros; quando admitimos ter uma tendência a subestimar ou superestimar tudo; quando percebemos o quanto nossa consciência é fechada; e quando reconhecemos nossa impotência e falibilidade diante da existência.
Allan Kardec registrou de seus instrutores e informantes espirituais, nas questões 115 (“Entre os Espíritos, alguns foram criados bons e outros maus?) e 120 (“Todos os Espíritos passam pela fieira do mal para alcançar o bem?”), respectivamente, de “O Livro dos Espíritos”, as seguintes orientações: “Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, quer dizer; sem ciência” e “Não pela fieira do mal, mas pela da ignorância”.
A grande maioria das criaturas encarnadas na Terra são almas que ignoram suas potencialidades divinas; não são más por natureza, mas estão conhecendo e/ou aprendendo através das vidas sucessivas; portanto, ainda não sabem agir de forma adequada ou julgar as coisas corretamente. Desconhecem sua perfectibilidade – qualidade daqueles que são suscetíveis de atingir a perfeição.
Por isso, desacertos fazem parte de nosso processo evolutivo, pois ninguém neste mundo consegue aprender e crescer sem equivocar-ser.
Experiências felizes ou infelizes são passos valiosos na nossa existência, desde que percebamos o quanto elas nos têm a ensinar ou mostrar.
Todos temos o direito de escolher o que vamos fazer com as lições que a vida nos oferece. Mas, sem dúvida, se recusarmos o desafio de compreendê-las e assimilá-las, essas mesmas lições voltarão revestidas em novas embalagens.
Só não erra jamais quem nunca fez ou nada tentou. O que se julga perfeito não está aberto para a mudança ou aprendizagem, porquanto a verdadeira sabedoria exibe a humildade de aceitarmos o que não conhecemos. A casa mental daquele que se julga “infalível” pode ser comparada a um espaço que já está completamente ocupado; nada nela pode ser acrescentado. Aliás, apenas quando retiramos o velho ou o desnecessário é que criamos um espaço vazio para o necessário ou o novo.
Para promovermos mudanças não necessitamos procurar novas paragens, e sim possuir novos olhos.
Jesus Cristo entendia perfeitamente o âmago das criaturas, o que o levou a afirmar: “Todo aquele que meu Pai me der virá a mim, e quem vem a mim eu não o rejeitarei(...)”[2]
O Mestre nunca desprezou quem quer que fosse; sempre acolhia, entendia, valorizava, consolava e encorajava a todos. Jamais puniu as atitudes equivocadas das criaturas, antes as compreendia por saber da fragilidade e falibilidade dos seres humanos. Via os erros como uma forma de aprendizagem, de retificação e de possibilidade de futura transformação interior. Não os entendia como objetos de condenação, naturais de fase evolutiva pela qual a humanidade estava passando.
Os médiuns que vêm às reuniões de estudo “(...) com uma tola presunção de infalibilidade (...)” são resistentes aos ritmos sublimes da renovação ou da mudança. Em verdade, nutrem um senso inflado de valores imaginários e uma postura excessivamente melindrada, por se julgarem possuidores de uma opinião sempre certa. São eminentemente refratários a tudo que é novo.
Na realidade, quem se permite mudar pode ficar inicialmente, numa situação desconfortável, visto que poderá ficar exposto a algo com que não contava ou que não havia percebido. O que acontece é que, quando alteramos o nosso “satus quo”- estado em que nos achávamos anteriormente em relação a certa questão, conceito ou ponto de vista -, modificamos nossa antiga maneira de interpretar, entender, expressar e dar sentido e importância às coisas. A partir disso, nossas zonas de estabilidade ficam temporariamente ameaçadas; nosso jeito anterior de ser e ver não funciona mais. Tudo isso acarreta uma batalha interna que gera desconfiança, medo e insegurança, até que nos reestruturemos novamente.
O cárcere da inteligência é um dos maiores entraves para “os médiuns de efeitos intelectuais”.[3]
A propensão à infalibilidade, o rigor contra as mudanças e as amarras de auto-suficiência infectam a casa mental dos sensitivos, obstruindo-lhes a arte de pensar e discernir. Do mesmo modo, dificulta uma efetiva ligação com o Plano Superior. Lembremo-nos de que na “escola da vida” somos eternos aprendizes.
A fraqueza, gerada pelo orgulho, em não confessar que erramos ou que não sabemos leva-nos a cometer muitos desatinos, tanto nas atividades mediúnicas como em todas áreas do relacionamento humano. É imatura e espiritualmente ingênua a criatura que pensa que nunca tem nada a aprender com as experiências alheias.
[1] Frase inscrita no dólmen construído sobre o túmulo de Allan Kardec (cemitério de Père-Lachadise, em Paris).
[2] João, 6:37
[3] O Livro dos Médiuns – 2.ª parte – cap. XVI, item 187.
Fonte: A Imensidão dos Sentidos -pdf
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