sexta-feira, 31 de maio de 2024

Emmanuel - Livro Há Dois Mil Anos… - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 7 - As pregações do Tiberíade



Emmanuel - Livro Há Dois Mil Anos… - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 7


As pregações do Tiberíade


Alguns dias haviam decorrido sobre os fatos que acabamos de narrar.

Em Cafarnaum, não somente o cenário, mas também os atores, guardavam a mesma fisionomia.

Compelido pela atitude irrevogável e enérgica do senador, Sulpício Tarquínius regressara a Jerusalém,  obedecendo às ordens de Pilatos que, por sua vez, recebera a notificação de Públio Lêntulus, referente à dispensa do lictor.

Não devemos esquecer que Públio permanecia na Palestina com poderes amplos, na qualidade de emissário de César e do Senado, a quem todas as autoridades da província, inclusive o governador, eram obrigados a acatar com especial atenção e máximo respeito.

O procurador da Judeia não se esquecera, portanto, de substituir Sulpício, do melhor modo possível, buscando conhecer, com interesse, os motivos do seu afastamento, assunto que o senador solucionou com o mais largo espírito de superioridade, do ponto de vista político. Pilatos coadjuvou, com a melhor boa vontade, o serviço de pesquisa, quanto ao paradeiro do pequeno Márcus, movimentando funcionários de sua inteira confiança, e vindo pessoalmente a Cafarnaum, a fim de conhecer na sua intimidade as diligências efetuadas.

O senador recebeu-lhe a visita com as mais altas mostras de consideração e aceitou-lhe a cooperação, sinceramente confortado, em vista de os acontecimentos desmentirem, perante o seu foro íntimo, as caluniosas acusações de que era vítima a esposa.

Sua vida doméstica, porém, sofrera as mais profundas alterações. Não sabia mais viver aquelas horas de colóquio feliz com a esposa, da qual o separava um véu de dúvidas amargas e infinitas. Várias vezes tentou, improficuamente, readquirir a antiga confiança e a sua espontaneidade afetiva.

Rugas de pesar vincaram-lhe então o semblante, ordinariamente altivo e orgulhoso, esfumando-lhe os traços fisionômicos num nevoeiro de preocupações angustiosas.

Todos os seus íntimos, inclusive a esposa, atribuíam ao desaparecimento do filhinho tão singular metamorfose.

Nas horas habituais das refeições, notava-se-lhe o esforço para desanuviar a fisionomia. Dirigia-se, então, à mulher ou respondia as suas perguntas carinhosas com monossílabos apressados, acentuando as palavras com laconismo incompreensível.

Sofrendo amargamente com aquela situação, Lívia apresentava-se cada vez mais abatida, tentando em vão decifrar o motivo de tantas provações e infortúnios.

Muitas vezes procurou sondar o espírito de Públio, de modo a levar-lhe um pouco de carinho e consolação, mas ele evitava as expansões afetuosas, com pretextos decisivos. Quase que lhe aparecia tão somente no triclínio e, feita a refeição costumeira, retirava-se, abruptamente, para o grande salão do arquivo, onde passava todas as suas horas de inquietadoras meditações.

De Márcus, nenhuma notícia havia, que lhe proporcionasse a mais ligeira sombra de esperança.

Por uma formosa manhã da Galileia, vamos encontrar Lívia em palestra íntima com a serva dedicada e amiga fiel, a quem replica nestes termos, depois de carinhosamente inquirida, acerca do seu estado de saúde:

— Sinto-me bem mal, minha boa Ana!… À noite, o coração bate-me descompassadamente e, hora-a-hora, vejo crescer-me no íntimo dolorosa impressão de amargura. Não poderia, bem definir meu estado, ainda que o quisesse… O desaparecimento do pequeno enche-me a alma de lúgubres presságios, multiplicando o peso das minhas aflições maternas quando não posso vislumbrar, nem de leve, a causa de tamanhos padecimentos…

E agora é, sobretudo, o estado de Públio o que mais me acabrunha. Ele foi sempre um homem puro, leal e generoso; mas, de algum tempo a esta parte, noto-lhe singulares diferenças no temperamento, agravando-se-lhe os sintomas doentios com maior intensidade, após o incompreensível desaparecimento do nosso filhinho.

A mim se me figura que ele vem sofrendo os mais fortes distúrbios sentimentais, com sérios prejuízos para a saúde…

— Bem vejo, senhora, quanto sofreis! — aventou a serva carinhosa. — Sei que sou uma criatura humilde e sem nenhum valor, mas pedirei a Deus que vos proteja incessantemente, restabelecendo a paz do vosso coração.

— Criatura humilde e sem valor? — diz a pobre senhora, buscando demonstrar-lhe o grau de sua estima sincera. — Não digas isso, mesmo porque não sou dessas almas que aferem o valor de cada um pelas posições que desfruta ou pelas honras que recebe.

Filha única de pais que me legaram considerável fortuna, cidadã romana, com as prerrogativas de mulher de um senador, vês quanto sofro nos trabalhos amargos deste mundo.

Os títulos que o berço me outorgou não conseguiram eliminar as provações que o destino também me trouxe, com a mocidade e a fortuna fácil.

Reconhece, pois, que, sendo eu patrícia e tu uma serva, não possuímos um coração diverso, mas sim o melhor sentimento de fraternidade, que nos abre a porta de uma compreensão carinhosa, a valer por asilo suave nos dias tristes da vida.

De mim para comigo, sempre supus, contrariamente à educação recebida, que todas as criaturas são irmãs, filhas de uma origem comum, sem conseguir atinar com as linhas divisórias entre aqueles que possuem muitos haveres e muitos títulos e os que nada possuem neste mundo além do coração, onde costumo localizar os valores de cada um, nesta vida.

— Senhora — exclamou a serva, tocada da mais grata surpresa —, vossas palavras me comovem, não somente por partirem dos vossos lábios, dos quais me habituei a ouvir-vos sempre com carinho e veneração, mas também porque o profeta de Nazaret nos tem dito a mesma coisa em suas prédicas.

— Jesus?!… — perguntou Lívia, de olhos brilhantes, como se aquela referência lhe lembrasse uma fonte de consolação, da qual se houvesse momentaneamente esquecido.

— Sim, minha senhora, e por falar nele, porque não buscardes um pouco de conforto nas suas divinas palavras? Juro-vos que as suas expressões, sábias e amorosas, vos consolariam no meio de todos os pesares, proporcionando-vos sensação de vida nova!… Se quisésseis, eu poderia conduzir-vos a casa de Simão, discretamente, a fim de receberdes o benefício de suas lições carinhosas. Receberíeis, assim, a alegria da sua bênção, sem vos expordes às críticas alheias, nutrindo o vosso coração dos seus luminosos ensinamentos.

Lívia pensou intensamente naquele alvitre, que se lhe figurava providência salvadora, respondendo, por fim:

— Os sofrimentos da vida muitas vezes me têm dilacerado o coração, renovando os meus raciocínios acerca dos princípios que me foram ensinados desde o berço, e é por isso que, acolhendo a tua ideia, acho de meu dever procurar a Jesus publicamente, como o fazem outras mulheres destes lugares.

Era minha intenção procurá-lo antes do nosso regresso a Roma, para lhe manifestar meu reconhecimento pela cura de Flávia, fato que me deixou profundamente impressionada, mas que não nos foi possível comentar, em razão da atitude hostil de meu marido; agora, novamente desamparada, no estuar das minhas dores, recorrerei ao profeta por obter um lenitivo ao coração opresso e torturado.

Mulher de um homem que, por força da sua carreira política, ocupa agora o mais alto cargo nesta província, irei a Jesus como criatura deserdada da sorte, em busca de amparo e consolação.

— Senhora, e vosso esposo? — perguntou Ana, antevendo as consequências daquela atitude.

— Procurarei cientificá-lo da minha resolução; mas, se Públio esquivar-se, ainda uma vez, à minha presença para um entendimento mais íntimo, irei mesmo sem ouvi-lo, com respeito ao assunto. Vestirei os trajes humildes desta região de criaturas simples, irei a Cafarnaum, hospedando-me com os teus parentes, nas horas necessárias, e, no momento das práticas, quero ouvir a palavra do Messias, de coração contrito e alma compadecida pelos infortúnios dos meus semelhantes…

Sinto-me profundamente insulada nestes últimos dias e tenho necessidade de conforto espiritual para o meu coração combalido nas provas ásperas.

— Senhora, Deus abençoe os vossos bons propósitos. Em Cafarnaum, os meus parentes são muito pobres e muito humildes, mas vossa figura está ali no santuário da gratidão de todos, bastando uma palavra vossa para que se ponham à vossa disposição, como escravos.

— Para mim não existe fortuna que se iguale a essa, da paz e do sentimento.

Não procurarei o profeta para solicitar-lhe atenções especiais, porque basta a sua caridade, no caso de minha filha, hoje sadia e forte, graças à sua piedade de justo, mas tão somente para buscar conforto ao meu coração dilacerado.

Pressinto que, em lhe ouvindo as exortações carinhosas e amigas, alcançarei energias novas para enfrentar as provações mais amargas e rudes.

Sei que ele me conhecerá nos trajes pobres da Galileia; todavia, na sua intuição divinatória, compreenderá que, dentro do peito da romana, pulsa um coração amargurado e infeliz.

As duas combinaram, então, ir juntas a cidade, na tarde do primeiro sábado.

Embalde, procurou Lívia uma oportunidade para solicitar a ambicionada permissão do marido, a favor da sua pretensão. Inúmeras vezes buscou, improficuamente, sondar o espírito de Públio, cuja frieza lhe afugentava a coragem para a necessária consulta.

Ela, porém, havia resolvido procurar o Mestre, de qualquer maneira. Abandonada numa região em que somente o marido podia compreende-la integralmente, dentro da sua esfera de educação, e rudemente provada nas fibras mais sensíveis da sua alma feminina, de esposa e mãe, a pobre senhora assim deliberou com pleno assentimento da sua consciência honesta e pura.

Talhou uma roupa nova, de conformidade com os usos galileus, de maneira a não se fazer notada na multidão comum nas prédicas do lago, e, cientificando a Comênio da necessidade que tinha de sair naquele dia, a fim de que o marido fosse avisado à hora do jantar, dirigiu-se, na data previamente determinada, pelos caminhos que já conhecemos, em companhia da serva de confiança.

Na residência humilde de pescadores, onde se abrigavam os familiares de Ana, Lívia sentiu-se envolvida em radiosas vibrações de serenidade, amiga e doce. Era como se o seu coração desalentado encontrasse uma claridade nova naquele ambiente de pobreza, de humildade e ternura.

A figura patriarcal do velho Simeão, de Samaria, porém, destacava-se a seus olhos entre todos os que a receberam com as mais elevadas demonstrações de carinhosa bondade. Do seu olhar profundo e das cãs veneráveis emanavam as doces irradiações da maravilhosa simplicidade do antigo povo hebreu, e a sua palavra, ungida de fé, sabia tocar os corações nas cordas mais sensíveis, quando narrava as ações prodigiosas do Messias de Nazaret.

Lívia, acolhida por todos com simpatia franca, parecia devassar um mundo novo, até então desconhecido na sua existência. Confortava-lhe, sobremaneira, a expressão de sinceridade e candura, daquela vida simples e humilde, sem atavios nem artifícios sociais, mas também sem preconceitos nem fingimentos perniciosos.

À tardinha, confundida com os pobres e os doentes que iam receber as bênçãos do Senhor, vamos encontrá-la de coração aliviado e sereno, esperando o momento ditoso de ouvir do Mestre uma palavra de amor e consolação.

O crepúsculo de um dia claro e quente emprestava um reflexo de luz dourada a todas as coisas e a todos os contornos suaves da paisagem. Encrespavam-se as águas mansas do Tiberíade ao sopro carinhoso dos favônios da tarde, que se impregnavam do perfume das flores e das árvores. Brisas frescas eliminavam o calor ambiente, espalhando sensações agradáveis de vida livre, no seio robusto e farto da Natureza.

Afinal, todos os olhares se dirigiam para um ponto escuro que se desenhava no espelho cristalino das águas, muito ao longe, no horizonte.

Era a barca de Simão, que trazia o Mestre para as dissertações costumeiras.

Um sorriso de ansiedade e de esperança clareou, então, todos aqueles semblantes que o aguardavam, no desconforto de seus sofrimentos.

Lívia reparou aquela turba que, por sua vez, também lhe notara a estranha presença. Operários humildes, pescadores rudes, mães numerosas em cujos rostos macerados se podiam ler as histórias amargas dos incríveis padecimentos, criaturas da plebe anônima e sofredora, mulheres adúlteras, publicanos gozadores da vida, enfermos desesperados e crianças numerosas, que traziam consigo os estigmas do mais doloroso desamparo.

Conservava-se Lívia ao lado do velho Simeão, cuja expressão fisionômica de firmeza e doçura inspirava o mais profundo respeito aos que se lhe aproximavam; e quantos lhe notavam o delicado perfil romano, enfiada na simplicidade do traje galileu, presumiam na sua figura alguma jovem de Samaria da Judeia, que tivesse vindo igualmente de longe, atraída pela fama do Messias.

A barca de Simão acostara brandamente à margem, ensejando a que o Mestre se dirigisse ao local costumeiro de suas lições divinas. Sua fisionomia parecia transfigurada em resplendente beleza. Os cabelos, como de costume, caíam-lhe aos ombros, à moda dos nazarenos, esvoaçando levemente aos ósculos cariciosos dos ventos brandos da tarde.

A esposa do senador não pôde mais despregar os olhos deslumbrados, daquela figura simples e maravilhosa.

Começara o Mestre um sermão de beleza inconfundível e suas palavras pareciam tocar os espíritos mais empedernidos, figurando-se que os ensinamentos ressoavam nas devesas de toda a Galileia, ecoando pelo mundo inteiro, previamente modelados para caminhar no mundo com a própria eternidade.

“Bem aventurados os humildes de espírito, porque a eles pertencerá o reino de meu Pai que esta nos Céus!…

“Bem aventurados os pacíficos, porque possuirão a Terra!…

“Bem aventurados os sedentos de justiça, porque serão saciados!…

“Bem aventurados os que sofrem e choram, porque serão consolados nas alegrias eternas do reino de Deus!…” (Mateus)

E a sua palavra enérgica e branda disse da misericórdia do Pai Celestial; dos bens terrestres e celestes; do valor das inquietações e angústias humanas, acrescentando que viera ao mundo não para os mais ricos e mais felizes, mas para consolar os mais pobres e deserdados da sorte.

A assembleia heterogênea escutava-o embevecida nos seus transportes de esperança e gozo espiritual.

Uma luz serena e cariciosa parecia vir do Hebron, clarificando a paisagem em tonalidade de opalas e safiras eterizadas.

A hora ia adiantada e alguns apóstolos do Senhor resolveram trazer alguns pães aos mais necessitados de alimento. Dois grandes cestos de merenda frugal foram trazidos, mas os ouvintes eram em demasia numerosos. Jesus, porém, abençoou-lhes o conteúdo e, como num suave milagre, a escassa provisão foi partida em pequenos pedaços, que foram religiosamente distribuídos por centenas de pessoas.

Lívia recebeu igualmente a sua parte e, ao ingeri-la, sentiu um sabor diferente, como se houvera sorvido um remédio apto a lhe curar todos os males da alma e do corpo, porque uma tranquilidade lhe anestesiou o coração flagelado e desiludido. Comovida até às lágrimas, viu que o Mestre atendia, caridosamente, a numerosas mulheres, entre as quais muitas, segundo o conhecimento do povo de Cafarnaum, eram de vida dissoluta e criminosa.

O velho Simeão quis também aproximar-se do Senhor naquela hora memorável da sua passagem pelo planeta. Lívia acompanhou-o automaticamente, e, em poucos minutos, achavam-se ambos diante do Mestre, que os acolheu com o seu generoso e profundo sorriso.

— Senhor — exclamou, respeitosamente o ancião de Samaria —, que deverei fazer para entrar, um dia, no vosso Reino?

— Em verdade te digo — replicou-lhe Jesus, carinhosamente — que muitos virão do Ocidente e do Oriente, procurando as portas do Céu, mas somente encontrarão o Reino de Deus e de sua justiça aqueles que amarem profundamente, acima de todas as coisas da Terra, o nosso Pai que está nos Céus, amando o próximo como a si mesmos.

E espraiando o olhar compassivo e misericordioso por sobre a assembleia vasta, continuou com doçura:

— Muitos, também, dos que foram aqui chamados, serão escolhidos para o grande sacrifício que se aproxima!… Esses me encontrarão no Reino celestial, porque as suas renúncias hão de ser o sal da Terra e o sol de um novo dia!…

— Senhor — aventurou o ancião, com os olhos rasos de lágrimas —, tudo faria eu por ser um dos vossos escolhidos!…

Mas, Jesus, fitando fixamente o patriarca de Samaria, murmurou com infinita ternura:

— Simeão, vai em paz e não tenhas pressa, porque, em verdade, aceitarei o teu sacrifício no momento oportuno…

E estendendo o raio de luz dos seus olhos até à figura de Lívia, que lhe devorava as palavras com a sede ardente da sua atenção, exclamou com as claridades proféticas de suas exortações:

— Quanto a ti, regozija-te em Nosso Pai, porque as minhas palavras e ensinamentos te tocaram para sempre o coração. Vai e não descreias, por que tempo virá em que saberei aceitar as tuas abnegações santificantes!

Essas palavras foram ditas numa tal atitude, que a esposa do senador não teve dificuldade em lhes apreender o sentido profundo, para um futuro distante.

Aos poucos, dispersou-se a grande assembleia dos pobres, dos enfermos e dos aflitos.

Era noite quando Lívia e Ana regressaram à casa solarenga, confortadas pelas graças recebidas das mãos caridosas do Messias.

Profunda sensação de alívio e conforto inundava-lhes a alma.

Penetrando, porém, nos seus aposentos, Lívia encontrou de frente a figura enérgica do marido, que deixava transparecer na fisionomia carregada os mais intensos sinais de irritação, como acontecia, nos momentos de seu mais ríspido mau humor. Ela notou-lhe a exacerbação de ânimo, mas, ao contrário de outras vezes, parecia inteiramente preparada para vencer as mais tremendas lutas do coração, porque, com serenidade imperturbável, o encarou face-a-face, enfrentando-lhe o olhar suspeitoso. Afigurava-se-lhe que a flor de eterna paz espiritual lhe desabrochara no íntimo, ao suave calor das palavras do Cristo, porquanto lhe parecia haver atingido o terreno, até então desconhecido, de serenidade estranha e superior.

Depois de fitá-la de alto a baixo com o seu olhar duro e inquiridor, exclamou Públio, mal sopitando a cólera incompreensível:

— Então, que é isso? Que poderosas razões levariam a senhora a ausentar-se de casa em horas tão impróprias para as mães de família?

— Públio — respondeu com humildade, estranhando aquele tratamento cerimonioso —, por mais que buscasse comunicar-te minha resolução de sair na tarde de hoje, fugiste sempre de minha presença, esquivando-te à minha consulta e eu necessitava procurar o Messias de Nazaret, de modo a acalmar meu coração desventurado…

— E precisavas de disfarce para encontrar o profeta do povo? — atalhou o senador, com ironia.

É a primeira vez que noto uma patrícia usando tais artifícios para consolar o coração. Vai a tanto, assim, o seu menosprezo pelas nossas mais sagradas tradições familiares?

— Supus não me ficasse bem fazer-me notada na multidão das pessoas pobres e infelizes que procuram a Jesus nas margens do lago, e, identificando-me com os sofredores, não presumi desacatar nossos costumes familiares, mas, sim, acreditei agir em favor do nosso nome, considerando a circunstância de ocupares, no momento, nesta província a mais alta expressão política do Império.

— A menos que esteja disfarçando algum outro sentimento, como dissimula a posição social com a indumentária, muito errou procurando o Messias nesses trajes, porque, afinal, estou investido de poderes para requisitar a presença de qualquer pessoa da região em minha casa!

— Mas Jesus — revidou Lívia, corajosamente — deve estar para nós muito acima dos poderes humanos, que sabemos tão precários, por vezes. Acho que a cura da nossa filhinha, diante da qual todos os nossos recursos foram impotentes, é o bastante para faze-lo credor da nossa gratidão imperecível.

— Ignorava que a sua organização mental fosse tão frágil em face dos sucessos do Mestre de Nazaret, aqui em Cafarnaum — continuou o senador, asperamente.

A cura de nossa filha? Como assegurar uma coisa que a sua argumentação pessoal não pode provar com dados positivos? E ainda que esse homem, revestido de forças divinas para o espírito simples e ignorante dos pescadores galileus, tivesse operado essa cura com a sua intervenção sobrenatural, vindo a este mundo da parte dos deuses, poderíamos chamar-lhe impiedoso e cruel, sarando uma menina enferma de tantos anos e permitindo que os gênios do mal e da perversidade nos arrebatassem o filhinho sadio e carinhoso, em cuja fronte colocava a minha ternura de pai todo um futuro brilhante e promissor!

— Cala-te, Públio! — revidou ela, tomada de uma força superior que lhe conservava toda a serenidade do coração. — Recorda-te que os deuses podem humilhar-nos, com dureza, a vaidade e o orgulho absurdos… Se Jesus de Nazaret nos curou a filhinha bem-amada, que apertávamos nos braços frágeis contra os poderes imensos da morte, podia permitir que fôssemos tocados no mais sagrado sentimento de nossa alma, com o incompreensível desaparecimento do nosso Márcus, para que nos sentíssemos inclinados à piedade e à comiseração pelos nossos semelhantes!…

— A senhora se compromete com essa demasiada tolerância, que vai ao absurdo da fraternização com os escravos — disse Públio, com rispidez e austera severidade.

Tal atitude de sua parte me fez pensar, seriamente, que a sua personalidade mudou no decurso deste ano, porque as suas ideias, longe do nível social da sede do Império, baixaram ao terreno dos sentimentos mais relaxados, em face da compostura que se exige da mulher de um senador, ou da matrona romana.

Lívia ouvira, angustiadamente, as palavras injustificáveis do marido. Nunca o vira tão irritado, em todo o transcurso da vida conjugal; mas, verificara, em si própria, uma renovação singular, como se o pão rústico, abençoado pelo Mestre, lhe transfigurasse as mais recônditas fibras da consciência. Seus olhos se enchiam de lágrimas, não por um orgulho ferido ou pela ingratidão que aquelas admoestações injustas revelavam, mas com profunda compaixão do esposo, que não a compreendia, e adivinhando a dolorosa tempestade que lhe fustigava o coração generoso, porém arbitrário, no plano de suas resoluções. Serena e silenciosa, não se justificou perante as severas reprimendas.

Foi quando, então, compreendendo que aquele atrito não deveria prosseguir, dirigiu-se o senador para a porta de saída do apartamento, abrindo-a com estrépito, a exclamar:

— Jamais fiz uma viagem tão penosa e tão infeliz! Gênios malditos parecem presidir às minhas atividades na Palestina, porque se curei uma filha perdi um filhinho no desconhecido e começo a perder a mulher no abismo das irreflexões e da incoerência; e acabarei, também, perdendo-me para sempre.

Dizendo-o, bateu a porta com toda a força dos seus movimentos instintivos, encaminhando-se ao gabinete, enquanto a esposa, de coração genuflexo, dirigia o pensamento para aquele Jesus carinhoso e terno, que viera ao mundo para salvar todos os pecadores. Lágrimas dolorosas fluíam-lhe dos olhos, fixos ainda na paisagem do lago de Genesaré, aonde parecia haver regressado em espírito, novamente. Lá estava o Mestre, em atitudes doces de prece, cravando nas estrelas do céu os olhos fulgurantes.

Figurou-se-lhe que Jesus também lhe notara a presença naquela hora sombria da noite, porque desviara o olhar fúlgido do firmamento constelado e estendia-lhe os braços compassivos e misericordiosos, exclamando com infinita doçura:

— Filha, deixa que chorem os teus olhos as imperfeições da alma que o Nosso Pai destinou para gêmea da tua!… Não esperes deste mundo mais que lágrimas e padecimentos, porque é na dor que os corações se lucificam para o Céu… Um momento chegará em que te sentirás no acume das aflições, mas não duvides da minha misericórdia, porque no momento oportuno, quando todos te desprezarem, eu te chamarei ao meu Reino de divinas esperanças, onde poderás aguardar teu esposo, no curso incessante dos séculos!…

Pareceu-lhe que o Mestre continuaria a embalar-lhe o coração com suaves e carinhosas promessas de bem-aventurança, mas um ruído qualquer a separara daquela visão de luz e de felicidade indefiníveis.

Quebrara-se o quadro da sua preocupação espiritual, como se feito de tenuíssimas filigranas.

Todavia, a esposa do senador compreendeu que não fora vítima de uma perturbação alucinatória, e guardou, com amor, no âmago do coração, as doces palavras do Messias. E, enquanto despia os trajes galileus, a fim de retomar o curso de suas obrigações domésticas, de alma límpida e consolada, parecia, ainda, lobrigar o vulto sereno e amado do Senhor, nas eminências verdejantes das margens do Tiberíade, através da neblina suave, que lhe embaciava os olhos úmidos de pranto.


Emmanuel




Fonte: Bíblia do Caminho † Testamento Xavieriano


ÁUDIO:

Emmanuel : Há Dois Mil Anos
Paz e Amor






Minissérie em formato de Radionovela

O conhecido romance Há 2000 anos, de Emmanuel, psicografado por Francisco Cândido Xavier (1910-2002), um dos maiores best-sellers da literatura espiritualista, narra a saga de Publius Lentulus, nobre romano, cuja esposa Lívia renuncia ao luxo, à ostentação e às antigas crenças para entregar seu espírito a uma nova fé e lutar intensamente pela causa de Jesus, o Cristo de Deus.

A radionovela é uma iniciativa do escritor Paiva Netto e nela estão reunidos os melhores dubladores das superproduções de Hollywood, sob a direção do ator e diretor de TV Paulo Figueiredo.

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