terça-feira, 13 de setembro de 2022

Léon Denis - Livro Depois da Morte - Cap. 6, pág. 36/40 - O Cristianismo



Léon Denis - Livro Depois da Morte - Cap. 6, pág. 36/40


O Cristianismo


Conforme a História, é no deserto que ostensivamente aparece a crença no Deus único, a idéia-mãe de onde devia sair o Cristianismo. Através das solidões pedregosas do Sinai, Moisés, o iniciado do Egito, guiava para a terra prometida o povo por cujo intermédio o pensamento monoteísta, até então confinado nos Mistérios, ia entrar no grande movimento religioso e espalhar-se pelo mundo.

Ao povo de Israel coube um papel considerável. Sua história é como um traço de união que liga o Oriente ao Ocidente, a ciência secreta dos templos à religião vulgarizada. Apesar das suas desordens e das suas máculas, a despeito desse sombrio exclusivismo que é uma das faces do seu caráter, ele tem o mérito de haver adotado, até enraizar-se em si, esse dogma da unidade de Deus, cujas conseqüências ultrapassaram as suas vistas, preparando a fusão dos povos em uma família universal, debaixo de um mesmo Pai e sob uma só Lei.

Essa perspectiva, grandiosa e extensa, somente foi reconhecida ou pressentida pelos profetas que precederam a vinda do Cristo. Mas esse ideal oculto, prosseguindo, transformado pelo Filho de Maria, dele recebeu radiante esplendor, também comunicado às nações pagãs pelos seus discípulos. A dispersão dos judeus ainda mais auxiliou a sua difusão. Segundo sua marcha através das civilizações decaídas e das vicissitudes dos tempos, ele ficará gravado em traços indeléveis na consciência da Humanidade.

Um pouco antes da era atual, à proporção que o poder romano cresce e se estende, vê-se a doutrina secreta recuar, perder a sua autoridade. São raros os verdadeiros iniciados. O pensamento se materializa, os espíritos se corrompem. A Índia fica como adormecida num sonho: extingue-se a lâmpada dos santuários egípcios e a Grécia, assenhoreada pelos retóricos e pelos sofistas, insulta os sábios, proscreve os filósofos, profana os Mistérios. Os oráculos ficam mudos. A superstição e a idolatria invadem os templos. E a orgia romana se desencadeia pelo mundo, com suas saturnais, sua luxúria desenfreada, seus inebriamentos bestiais. Do alto do Capitólio, a prostituta saciada domina povos e reis. César, imperador e deus, se entroniza numa apoteose ensanguentada!

Entretanto, nas margens do Mar Morto, alguns homens conservam no recesso a tradição dos profetas e o segredo da pura doutrina. Os essênios, grupo de iniciados cujas colônias se estendem até o vale do Nilo, abertamente se entregam ao exercício da medicina, porém o seu fim real é mais elevado: consiste em ensinar, a um pequeno número de adeptos, as leis superiores do Universo e da vida. Sua doutrina é quase idêntica à de Pitágoras. Admitem a preexistência e as vidas sucessivas da alma; prestam a Deus o culto do espírito.

Nos essênios, como entre os sacerdotes de Mênfis, a iniciação é graduada e requer vários anos de preparo. 

Seus costumes são irrepreensíveis; passam a vida no estudo e na contemplação, longe das agitações políticas, longe dos enredos do sacerdócio ávido e invejoso.

Foi evidentemente entre eles que Jesus passou os anos que precederam o seu apostolado, anos sobre os quais os Evangelhos guardam um silêncio absoluto. Tudo o indica: a identidade dos seus intuitos com os dos essênios, o auxílio que estes lhe prestaram em várias circunstâncias, a hospitalidade gratuita que, a título de adepto, ele recebia, e a fusão final da ordem com os primeiros cristãos, fusão de que saiu o Cristianismo esotérico.

Mas, na falta de iniciação superior, o Cristo possuía uma alma bastante vasta, bem superabundante de luz e de amor, para nela sorver os elementos da sua missão. Jamais a Terra viu passar maior Espírito. Uma serenidade celeste envolvia-lhe a fronte. Nele se uniam todas as perfeições para formarem um tipo de pureza ideal, de inefável bondade.

Há em seu coração imensa piedade pelos humildes, pelos deserdados. Todas as dores humanas, todos os gemidos, todas as misérias encontram nele um eco. Para acalmar esses males, para secar essas lágrimas, para consolar, para curar, para salvar, ele irá ao sacrifício de a própria vida oferecer em holocausto a fim de reerguer a Humanidade. Quando, pálido, se dirige para o Calvário e é pregado ao madeiro infamante, encontra ainda em sua agonia a força de orar por seus carrascos e de pronunciar estas palavras que nenhum impulso de ternura ultrapassará jamais:

“Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!” Entre os grandes missionários, o Cristo, o primeiro de todos, comunicou às multidões as verdades que até então tinham sido o privilégio de pequeno número. Para ele, o ensino oculto tornava-se acessível aos mais humildes, senão pela inteligência ao menos pelo coração, e lhes oferecia esse ensino sob formas que o mundo não tinha conhecido, com uma potência de amor, uma doçura penetrante e uma fé comunicativa que faziam fundir os gelos do cepticismo, eletrizar os ouvintes e arrastá-los após si.

O que ele chamava “pregar o Evangelho do reino dos céus aos simples” era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade e o do Pai comum. Os tesouros intelectuais, que os adeptos avaros só distribuíam com prudência, o Cristo os espalhava pela grande família humana, por esses milhões de seres, curvados sobre a Terra, que nada sabiam do destino e que esperavam, na incerteza e no sofrimento, a palavra nova que os devia consolar e reanimar. Essa palavra, esse ensino, ele distribuiu sem contar e lhes deu a consagração do seu suplício e da sua morte. A cruz, esse símbolo antigo dos iniciados, que se encontra em todos os templos do Egito e da Índia, tornou-se, pelo sacrifício de Jesus, o sinal da elevação da Humanidade, tirada do abismo das trevas e das paixões inferiores, para ter enfim acesso à vida eterna, à vida das almas regeneradas.

O sermão da montanha condensa e resume o ensino popular de Jesus. Aí se mostra a lei moral com todas as suas conseqüências; nele os homens aprendem que as qualidades brilhantes não fazem sua elevação nem sua felicidade, mas que só poderão isto conseguir pelas virtudes modestas e ocultas – a Humildade, a Bondade, a Caridade:

“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque é para eles o reino dos céus.  – Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. – Bem-aventurados os que têm fome de Justiça, porque serão saciados. – Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. – Bem-aventurados os que têm o coração puro, porque verão a Deus.”

Assim se exprime Jesus. Suas palavras patenteiam ao homem perspectivas inesperadas. É no mais recôndito da alma que está a origem das alegrias futuras: “O reino dos céus está dentro de vós!” E cada um consegue realizá-lo pela subjugação dos sentidos, pelo perdão das injúrias e pelo amor ao próximo.

Para Jesus, no amor encerra-se toda a religião e toda a filosofia.

“Amai vossos inimigos; fazei bem àqueles que vos perseguem e caluniam, a fim de que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus, que faz com que o Sol tanto se levante para os bons como para os maus; que faz chover sobre os justos e injustos. Porque, se só amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis vós?”

Esse amor é Deus mesmo quem no-lo exemplifica, pois os seus braços estão sempre abertos ao arrependido. 

É o que se depreende das parábolas do filho pródigo e da ovelha desgarrada:

“Assim vosso Pai que está nos céus não quer que pereça um só de seus filhos.”

Não será isto a negação do inferno, cuja idéia se atribuiu a Jesus?

Se o Cristo mostra algum rigor e fala com veemência, é a esses fariseus hipócritas que torcem a lei moral, entregando-se às práticas minuciosas de devoção.

A seus olhos é mais louvável o samaritano cismático do que o sacerdote e o levita que desdenham socorrer um ferido. Ele desaprova as manifestações do culto exterior e levanta-se contra esses sacerdotes:

“Cegos condutores de cegos, homens de rapina e de corrupção que, a pretexto de longas preces, devoram os bens das viúvas e dos órfãos.”

Aos devotos que acreditam salvar-se pelo jejum e abstinência, diz:

“Não é o que entra pela boca que mancha o homem, mas o que dela sai.”

Aos partidários de longas orações, responde:

“Vosso Pai sabe aquilo de que tendes necessidade, antes que lho peçais.”

Jesus condenava o sacerdócio, recomendando aos seus discípulos não escolherem nenhum chefe, nenhum mestre. Seu culto era íntimo, o único digno de espíritos elevados, e a respeito do qual assim se exprime:

“Vai chegar o tempo em que os verdadeiros crentes adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque são estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e cumpre que os seus filhos o adorem em espírito e verdade.”

O Cristo só impõe a prática do bem e da fraternidade:

“Amai vosso próximo como a vós mesmos e sede perfeitos assim como vosso Pai celeste é perfeito. Eis toda a lei e os profetas.”

Em sua simplicidade eloquente, este preceito revela o fim mais elevado da iniciação – a pesquisa da perfeição, que é, ao mesmo tempo, a do conhecimento e da felicidade. Ao lado desses ensinos que se dirigem aos simples, Jesus também deixou outros, onde a doutrina oculta dos Espíritos é reproduzida em traças de luz.  

Nem todos podiam subir a tais alturas e eis por que os tradutores e intérpretes do Evangelho alteraram, através dos séculos, a sua forma e corromperam-lhe o sentido. Apesar das alterações, é fácil reconstituir esse ensino a quem se liberta da superstição da letra para ver as coisas pela razão e pelo espírito. É principalmente no Evangelho de S. João que encontraremos feição ainda mais acentuada:

“Há diversas moradas na casa de meu pai. Vou preparar o vosso lugar e, depois que eu for e tudo houver arranjado, voltarei e vos chamarei a mim, para que onde eu estiver também vos encontreis.”

A casa do Pai é o céu infinito com os mundos que o povoam e a vida imensa, prodigiosa, que se espalha na sua superfície. São as inumeráveis estações na nossa jornada, que somos chamados a conhecer se seguirmos os preceitos de Jesus. Ele descerá até nós para induzir-nos, por exemplo, à conquista dos mundos superiores à Terra.

No Evangelho também se nos depara a afirmação das vidas sucessivas da alma:

“Em verdade, se o homem não renascer de novo não poderá entrar no reino de Deus. – O que nasce da carne é carne, o que nasce do espírito, é espírito. – Não vos admireis do que vos digo, pois é necessário nascerdes de novo. – O espírito sopra onde quer e entendeis a sua voz, mas não sabeis donde ela vem, nem para onde vai; também sucede o mesmo com todo homem que nasce do espírito.”

Quando os seus discípulos lhe interrogam: “Por que dizem os escribas que é preciso primeiro que Elias volte?”

Ele responde: “Elias já voltou, porém não o reconheceram.”

E os discípulos compreendem então que Jesus se referia a João Batista. Ainda em outra ocasião diz o seguinte:

“Em verdade, entre todos os filhos de mulher nenhum há maior que João Batista. E se quiserdes entender, é ele mesmo Elias que deve vir. Que ouça aquele que tem ouvidos para ouvir.”

O alvo a que tende cada um de nós e a sociedade inteira está claramente indicado. É o reinado do “Filho do homem”, do Cristo social, ou, em outros termos, o reinado da Verdade, da Justiça e do Amor. As vistas de Jesus dirigem-se para o futuro, para esses tempos que nos são anunciados.

“Enviar-vos-ei o Consolador. – Tinha ainda muitas coisas a dizer-vos, porém ainda não poderíeis compreendê-las. – Quando vier esse Espírito de Verdade, ele vo-las ensinará e restabelecerá tudo no seu sentido verdadeiro.”

Algumas vezes, o Cristo resumia as verdades eternas em imagens grandiosas, em traços brilhantes. Nem sempre os apóstolos o compreendiam, mas ele deixava aos séculos e aos acontecimentos o cuidado de fazer frutificar esses princípios na consciência da Humanidade, como a chuva e o Sol fazem germinar a semente confiada à terra. É nesse sentido que assim se exprimiu: “O céu e a Terra passarão, porém não as minhas palavras.”

Jesus dirigia-se pois simultaneamente ao espírito e ao coração. Aqueles que não tivessem podido compreender Pitágoras e Platão, sentiam suas almas comoverem-se aos eloquentes apelos do Nazareno. É por aí que a doutrina cristã domina todas as outras. Para atingir a sabedoria, era preciso, nos santuários do Egito e da Grécia, franquear os degraus de uma longa e penosa iniciação, ao passo que pela caridade todos podiam tornar-se bons cristãos e irmãos em Jesus.

Mas, com o tempo, as verdades transcendentais se velaram. Aqueles que as possuíam foram suplantados pelos que acreditavam saber e o dogma material substituiu a pura doutrina. Dilatando-se, o Cristianismo perdeu em valor o que ganhava em extensão.

A ciência profunda de Jesus vinha juntar-se à potência fluídica do iniciado superior, da alma livre do jugo das paixões, cuja vontade domina a matéria e impera sobre as forças sutis da Natureza. O Cristo possuía a dupla vista; seu olhar sondava os pensamentos e as consciências; curava com uma palavra, com um sinal, ou mesmo somente bastando a sua presença. Eflúvios benéficos se lhe escapavam do ser e à sua ordem os maus espíritos se afastavam. Comunicava-se facilmente com as potências celestes e, nas horas de provação, alentava desse modo a força moral que lhe era necessária em sua viagem dolorosa. No Tabor, seus discípulos, deslumbrados, o vêem conversar com Moisés e Elias. É assim mesmo que mais tarde, depois de crucificado, Jesus lhes aparece na irradiação do seu corpo fluídico,  etéreo, desse corpo a que Paulo se refere nos seguintes termos: 

“Há em cada homem um corpo animal e um corpo espiritual.”   A existência desse corpo espiritual está demonstrada pelas experiências da psicologia moderna.

Não podem ser postas em dúvida tais aparições, pois explicam por si só a persistência da ideia cristã. Depois do suplício do Mestre e da dispersão dos discípulos, o Cristianismo estava moralmente morto. Foram, porém, as aparições e as conversas de Jesus que restituíram aos apóstolos sua energia e sua fé.


Léon Denis













Nenhum comentário:

Postar um comentário