José Mário - Livro Quem Sabe Pode Muito, Quem Ama Pode Mais - Wanderley Oliveira - Cap. 17
Estudando a mágoa
"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. E, repartindo as suas vestes, lançaram sortes." Lucas 23:34
O afeto como expressão humana do gostar e querer bem pode realizar prodígios de amizade e trabalho em conjunto até o momento em que os interesses humanos são contemplados e compensados.
Todavia, os projetos de amor e humanização entregues à comunidade espírita tem como característica básica a renúncia de objetivos pessoais e a educação espiritual. Em Mateus, capítulo dezesseis, versículo vinte e quatro é dado o roteiro: "Então Jesus disse aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz, e siga-me;", porém, nem todos chegam a tal condição de uma hora para outra. Diríamos mesmo que são raros que atingem tal patamar.
É nesse passo que a maioria de nós se confunde. O afeto-cristão é a habilidade da alma de construir a concórdia: única virtude que faz das uniões um tesouro de educação e crescimento imperecível. Desafio nada fácil em tempos de transição do egoísmo para o amor incondicional.
Concórdia e união não são possíveis sem um sentimento elementar. A confiança é o sentimento que sustenta nossa crença nos valores uns dos outros. Quem confia se expõe porque sabe que não será desacreditado. E quem se expõe à luz da proposta espírita-cristã está suplicando amparo e orientação, apoio e perspectiva. Afeto cristão é afeto que educa Confiança cristã é aquela que nos conduz a fazer das amizades verdadeiros elos de crescimento. Quando ela é rompida, os melhores amigos podem tornar-se inimigos. Sem ela, nossa visão é tisnada pelas próprias dificuldades interiores que carregamos, ou seja, vemos no outro a nossa sombra pessoal. A confiança é uma ponte que nos liga uns aos outros. Na sua ausência torna-se impossível essa concórdia.
O ato de confiar solicita também algumas atitudes de amor sem as quais poderemos ficar reféns de nossos pontos de vista relativamente ao nosso próximo e que são corrosivos sutis da amizade. Eis algumas: acreditar nas boas intenções alheias, amabilidade, assertividade, discrição, empatia, tolerância ativa para os limites alheios e gratidão. A ausência dessas habilidades no relacionamento leva-o, ao longo do tempo, ao desgaste.
O conjunto dessas atitudes forma o piso inicial para que exerçamos a fraternidade legítima, sem a qual não conseguiremos os objetivos educativos do espírito nas relações humanas que são: catalisar interesses pessoais para a Obra do Cristo, construir a homogeneidade de ideais e decidir os rumos mais adequados para que o trabalho nos assegure os recursos em favor de nossa redenção.
Sem convivência com fraternidade não há alteridade, ou seja, não conseguimos apaziguar as diferenças em favor da Obra.
Para se saber o que está no coração alheio, suas razões, suas dores profundas e seus temores, haveremos de contar com o tempo. Por esse motivo, quaisquer projetos espirituais visando concórdia não dispensam a paciência e a caridade.
A alma cuja nobreza de intenções norteia seus atos alcança como prêmio da vida, a força de atração na direção do que seja o melhor na sua caminhada. Confiança nesse caso significa vibração. Há uma atração natural de pessoas e situações que constituam as balizas de nosso processo evolutivo. Sabendo disso, cada criatura consciente de sua busca pessoal nos roteiros do crescimento espiritual, vai aprender a analisar com critério a natureza de seus sentimentos, ante essa ou aquela pessoa. De posse desse juízo fraterno com fins superiores, saberemos, espontânea e instintivamente, em qual relação vai fluir a confiança ou em qual deveremos deveremos desenvolvê-la.
A mágoa expressa um sentimento de injustiça. Jamais a sentimentos dissociada da sensação de perda, lesão. A mágoa tem como elemento básico a raiva que faz parte do sistema defensivo da alma. Quando somos agredidos ou recebemos ameaças de agressão, entra em ação, a emoção da raiva, para nos proteger. É o escudo contra o que pode nos machucar. É um sinal do coração para que o ofendido descubra pela dor algo importante para sua caminhada. E quando descobrir tomará o ofensor como grande instrutor de sua vida.
Caminhamos entre o sincero desejo de ser útil e as velhas ciladas da sombra do interesse pessoal.
Um dos efeitos nocivos da mágoa é a atitude de indiferença. A indiferença é um tentativa improdutiva da alma de tentar anular ou negar sentimentos , de isolar o afeto que , em sua concepção, foi traído. Essa iniciativa seja consciente ou não, só tem como resultado o ebulir dos maus pendores. A tentativa de ser indiferente nos leva a fixar nos pontos falhos, nas más recordações e na constante sensação de desconforto perante os ofensores. É um esforço para impedir as vozes profundas da alma que solicitam a coragem de perdoar. Não conseguindo, redunda em males a nós mesmos.
Temporariamente, em alguns casos, torna-se até justificável a indiferença em relação ao ofensor, desde que não estejamos indiferentes à mutação de sentimentos que saltitam em nosso coração em relação a ele. Indiferença temporária ao ofensor para dar tempo de minimizar os efeitos da ofensa no ofendido. No entanto, se for uma opção definitiva, uma escolha consciente e irreversível, estaremos caindo nas garras do orgulho e lutando contra a tendência natural da alma na busca de sua recuperação espiritual, cuja inclinação é, para a aproximação, a afetividade.
A mágoa cristaliza nossa visão no lado menos feliz das pessoas que nos ofenderam. Sob efeito da ofensa, somos capazes de esquecer, automaticamente, o afeto e os momentos de alegria que tivemos com nossos ofensores. Esse talvez seja seu pior efeito.
Perdoar não significa somente esquecer a ofensa. Perdão é emoção e não memória. Não apagamos a memória mas a ressignificamo-na.
A prova mais autêntica de perdão no mundo íntimo é quando conseguimos resguardar o nosso foco mental nos aspectos das pessoas que nos ofenderam. Evidentemente, que me refiro às pessoas que tivemos a oportunidade de conhecer e fruir amizade, carinho e momentos gratificantes que, sob o manto negro da ofensa, passam à condição de adversários. Esquecemos tudo de bom que nos uniu àquela pessoa e fixamos a mente no deslize do ofensor.
Muitos pensarão que isso é uma utopia, como podemos pensar na virtude de quem nos agrediu ou lesou?.
Isso depende de conhecermos com profundidade quais são as razões que nos prendem à nossa mágoa e ao nosso ofensor. Quais os motivos profundos que nos atrelam à mágoa em relação a alguém. Quase sempre na raiz de nossas mágoas há interesses pessoais contrariados. Ou seja, feriram o nosso orgulho. Mexeram com a nossa autoestima.
Caminhamos entre o sincero desejo de ser útil e as velhas ciladas da sombras do interesse pessoal.
Na atualidade, ocorre um processo muito doloroso em nossa vida mental. Como buscamos a melhoria espiritual, estamos removendo as bases de um edifício de ilusões que nos serviram de alento e segurança nos milênios. O ruir desse edifício é ameaçador. Hoje estamos literalmente magoados com a Verdade, a Verdade sobre nós. Temos raiva de saber o que estamos descobrindo sobre nossa vida. Não a vida externa , mas aquela que trazemos dentro de nós mesmos. Estabelecemos um processo de autocobrança e autopunição face a essa realidade, tornando-nos facilmente melindráveis, magoáveis. A sofreguidão desse autoencontro faz-nos irritáveis, frágeis psiquicamente para qualquer correção menos fraterna.
E ninguém, em são juízo, pode afiançar que sejamos almas abnegadas. O interesse próprio ainda é o motor de nossas ações mesmo no terreno da espiritualização. Raramente adentramos o campo moral da virtude. Nosso processo de aperfeiçoamento ainda rasteja nos domínios da desilusão. É o preço que pagamos para vencer a ignorância que teima em manter-nos cegos acerca da nossa realidade moral.
Todavia, nesse cenário, ninguém passará sem experimentar a dureza dos chamados. Muitos desses chamados virão de irmãos de caminhada e serão tomados como agressões geradoras do ressentimento. Conquanto não devamos incentivar o clima da fraqueza mórbida que deveria ser substituída pela amabilidade, queiramos ou não, através da leitura do Evangelho recebemos um convite para as descobertas interiores e, muito delas, serão realizadas sob a chancela da ofensa.
O ofensor, seja ele intencional ou não, vai passar pela nossa vida e se vai; a mágoa, por sua vez, será transportada conosco até o instante que descobrirmos o seu significado divino, o que ela tem para nos ensinar. No entanto, se não percebermos o quanto ela nos faz mal, poderemos não só perder o fruto do que ela pode nos ensinar e, além disso, ao cultivá-la em redoma na vida emocional (ou seja, dentro de nós), adular um projeto de carcinoma fulminante.
Analisando esse tema, concebemos com mais clareza o quanto nossa comunidade espírita terá que aprofundar conceitos acerca da educação moral de seus adeptos. Com melhores noções sobre velhos temas da moral e da atitude, O Evangelho do Cristo ganhará uma nova roupagem com termos modernos, porém, nós, continuaremos como velhos religiosos apegados ao saber canônico dos livros espíritas, sem mudanças legítimas na conduta de cada dia por desconhecermos a elasticidade dos próprios ensinos de Jesus.
Não existe sentimentos na vida íntima que não tenham significado educativo para a nossa caminhada. Determinar o que se pode ou não sentir é uma sequela do religiosismo estéril, deseducativo. Eis o motivo pelo qual as casas espíritas deveriam se lançar com urgência aos projetos de alfabetização emocional, no intuito de melhor organizar as ideias acerca do mundo íntimo. A carência de noções sobre a realidade interior, especialmente sobre os sentimentos, responde por inúmeras atitudes desconectadas da verdadeira intenção de melhorar. A reforma íntima será a resultante da habilidade em lidar com o desconhecido universo da realidade profunda do inconsciente, no qual jazem mecanismos perfeitos de evolução que necessitamos esquadrinhar. A educação religiosa que recebemos consolidou crenças nefastas a esse respeito
A proposta espírita de melhoria das atitudes é um desafio ético de criar relações mais enobrecedoras. Sem entender nossa vida afetiva, rodaremos em círculos de dor com reações aprendidas tais como a culpa, a rivalidade silenciosa, a vergonha, o remorso e a própria raiva reprimida que se converte em estado melindroso, depois em mágoa e rancor, e, mais adiante, no ódio.
Perdoar é compreender. Quem perdoa entendeu as razões da mágoa. Para perdoar não teremos que entender as necessariamente a conduta do ofensor, mas as razões de nos sentirmos ofendidos. Claro que falo de mágoas e perdas nas relações e não dos casos graves de maldade e traição nos quais existem agressões severas, envolvendo inclusive bens materiais e a vida corporal. Nesse estágio penetramos os domínios da violência e as sequelas vão muito além da mágoa.
A mágoa é um desgosto cujo objetivo é nos ensinar algo que não estamos querendo ver de outro modo. Assim como a raiva que tem finalidades importantes no crescimento, a mágoa tem lições profundas quando desejamos olhar para nós. Aliás, a mágoa, quase sempre, é a raiva congelada, isto é, sentimos raiva em algum momento e não utilizamos esse sentimento com equilíbrio. Posteriormente, essa raiva cria uma mutação e transforma-se em ressentimento.
Todo interesse pessoal contrariado na vida cria uma revolta interior proporcional ao grau de evolução individual. Para uns o desemprego significa chance de novas experiências, para outros será uma expiação sem fim. Em verdade, uma das características que mais definem a Terra como planeta de provas e expiações é exatamente a privação de liberdade. A vida a todo instante nos contraria em favor do nosso crescimento. A transição na humanidade pode ser reconhecida, basicamente, por uma constante oposição aos nossos interesses egoísticos. Filosofando, a vida nos magoa a todo instante!
Talvez por essa razão os irmãos da doutrina asseveram que a doença mais grave do meio espírita é o melindre, isto é, a mágoa automática. Não querendo ver sua Verdade pessoal, e também por faltar habilidade para tratar feridas alheias, terminamos por abrir chagas além daquelas já conhecidas.
A cultura religiosa dos séculos nos educou para entendermos o perdão para com o ofensor, como uma forma de limpar a nódoa da mágoa para com ele, levando-nos a pensar da seguinte forma: já não chega a ofensa ainda terei que gostar de quem me ofendeu!
O perdão, no entanto, antes de tudo, significa reconhecer conosco mesmo o que estamos perdendo, em que estamos sendo contrariados e porque nos sentimos lesados. Essa autoaferição é fundamental para nossa paz. No fundo, perdoar significa cuidar de nós mesmos e reconhecer a natureza da contrariedade que experimentamos. Sem isso, continuaremos ignorantes sobre as nossas perdas e quais são os interesses pessoais que a vida nos solicita que façamos uma revisão.
Não existe algo mais poderoso do que a mente lúcida. É a magia que vem de dentro da alma quando aprendemos a manipular nossa vida pessoal em favor do bem e da libertação consciencial.
A mágoa é larga porta mental aberta para a inquietude e a tristeza, que pode se degenerar em ansiedade e depressão. Na primeira o doente ofende-se com a fantasia que faz de supostos rivais. Na segunda, agasta-se com os fatos passados sem conseguir se livrar das lembranças enfermiças. O perdão é deixar ir. Soltar. Compreender.
Quem compreende a lição da mágoa já tem o que lhe basta. Liberta-se do peso. Voltar a viver junto ou não será uma decisão para depois do perdão. Muitos tentam perdoar reatando laços e negando o ressentimento. O ideal será livrar-se do ressentimento e depois decidir essa questão, desde que haja em nós o compromisso de jamais desistir de amar. Voltar a estar junto, quando a mágoa nos separa de alguém, é o ideal na proposta do amar. Esteja certo, porém que jamais do mesmo modo. Até porque ofensor e ofendido tem algo entre eles também para reparar em favor do bem de ambos. A mágoa é sempre uma lição para quem busca a sabedoria; dela o ofendido descobrirá mais sobre si; dela o ofensor aprenderá mais sobre as impressões que pode estar criando no íntimo que o cercam. Ambos, muito aprenderão sobre o amor. Conquanto seu caráter doloroso, a mágoa pode se tornar uma excelente lição de vida. E o perdão, conquanto difícil de aplicar, é a atitude de sabedoria que mais evidencia o desejo intenso de amar.
Jesus, dotado de incomparável compreensão e lucidez acerca das atitudes humanas, não Se sentiu ofendido. Perdão é compreensão.
Calixto negava suas mágoas e usava a arrogância para se defender, instalando a frieza afetiva como efeito. Ana era portadora de suscetibilidade extremada por ter renitência em reconhecer suas ilusões, produzindo assim uma base para o desequilíbrio psíquico. Antonino asilava muito interesse pessoal que ainda não havia descoberto em relação à sua faculdade mediúnica, sua insegurança decorria da ofensa que sentia em ser questionado em suas intenções. Uma única medicação se fazia oportuna para todos: muita misericórdia e compaixão, paciência e oração.
Ficava cada vez mais claro o significado da fala oportuna de Nosso Mestre narrada em Mateus, capítulo nove, versículo treze: "Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício. Porque eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento."
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