Dívida expirante
Era agora num hospital, em triste pavilhão de indigentes, a nova lição que Silas nos reservava.
Ganhando o interior, diversos companheiros acolheram-nos, gentis. E, após saudações amigas, um deles, o Atendente Lago, avançou para o mentor de nossos estudos, cientificando:
— Assistente, o nosso Leo parece gastar os derradeiros recursos da resistência…
Silas agradeceu a informação e explicou que vínhamos justamente para colaborar no descanso de que se fazia credor.
E atravessando longa fila de leitos pobres, nos quais enfermos jaziam padecentes, ao pé de alguns desencarnados em trabalho assistencial, estacamos junto de um doente esquálido e angustiado.
À mortiça claridade de pequena lâmpada, destinada à vigília da noite, vimos Leo, que uma tuberculose pulmonar arrastava ao cepo da morte.
Não obstante a dispneia, mostrava o olhar calmo e lúcido, revelando perfeita conformação aos padecimentos que o conduziam ao termo da experiência.
Recomendou-nos Silas observar-lhe o corpo, entretanto, não havia muita particularidade a destacar, porquanto os pulmões quase destruídos, através de sucessivas formações cavitárias, haviam provocado tamanho abatimento orgânico, que o vaso físico sob nossos olhos não era mais que um trapo de carne, agora aberto à multiplicação de bacilos vorazes, aliados a exércitos microbianos de variada espécie, a se apinharem, dominadores, na intimidade dos tecidos, assim como inimigos implacáveis a se lhe apoderarem dos restos, senhoreando todos os postos-chaves da defensiva.
Achava-se Leo, desse modo, no veículo denso, à maneira de um homem irremediavelmente condenado à expulsão da sua própria casa.
Todos os sintomas da morte patenteavam-se, iniludíveis.
O coração fatigado assemelhava-se a motor exausto, incapaz de liquidar os problemas da circulação sanguínea, e todos os implementos da aparelhagem respiratória esmoreciam, desnorteados, sob inexorável asfixia.
Leo, moribundo, era um viajante habilitado à grande romagem, tão somente à espera do sinal de partida.
Ainda assim, estava sereno e portava-se com bravura.
Tão acentuada se lhe evidenciava a acuidade mental, que quase nos percebia a presença.
Silas, que lhe acariciava a fronte com a destra generosa, disse-nos, atencioso:
— Já que vieram para anotar um processo de dívida expirante, podem algo perguntar ao companheiro, cuja memória se revela, tanto quanto possível, consciente e vigilante.
— Ouvir-nos-á, porém? — inquiriu Hilário, entre surpreso e compungido.
— Não com os tímpanos da carne, contudo, assinalar-nos-á qualquer indagação em espírito — esclareceu o Assistente, afetuoso.
Dominado de intensa simpatia, inclinei-me sobre o irmão em rude prova, atraído pela fé que lhe abrilhantava as pupilas e, abraçando-o, indaguei, em voz alta:
— Leo amigo, reconhece-se você no limiar da vida verdadeira? Sabe que deixará o corpo em breves horas?
O interpelado, crendo raciocinar por si mesmo, registrou-me a inquirição, palavra por palavra, qual se lhe fossem transmitidas ao cérebro por fios invisíveis. E, como se conversasse a sós consigo, falou pensando:
— Oh! sim, a morte!… Sei que, provavelmente esta noite, chegarei ao justo fim…
Desdobrando o nosso diálogo, acrescentei:
— Não tem receio?
— Nada posso temer… — refletiu muito calmo.
E, movendo os olhos com esforço, buscou fitar na alva parede da enfermaria uma pequena escultura do Cristo crucificado, refletindo de si para consigo:
— Nada posso recear, em companhia do Cristo, meu Salvador… Ele também foi vilipendiado e esquecido… Terá vomitado sangue na cruz do martírio, Ele que era puro, varado pelas chagas da ingratidão… Por que não me resignar à cruz do meu leito, suportando, sem reclamar, as golfadas de sangue que de quando em quando me anunciam a morte, eu que sou pecador necessitado da complacência divina?!…
— Você é católico romano?
— Sim…
Meditei na sublimidade do sentimento cristão, vivo e sincero, seja qual for a escola religiosa em que se exprima, e prossegui, afagando-lhe o peito opresso:
— Nesta hora de tanta significação para o seu caminho, sinto a ausência de seus familiares humanos…
— Ah! meus familiares… meus afetos… — respondeu, falando mentalmente — meus pais teriam sido no mundo os meus únicos amigos… No entanto, demandaram o túmulo, quando eu era simplesmente um jovem enfermo… Separado de minha mãe, vi-me entregue aos desajustes orgânicos… Logo após, meu irmão Henrique não hesitou em declarar-me incapaz… Por direito à herança, cabiam-lhe grandes bens, contudo, prevalecendo-se do meu infortúnio o mano obteve da Justiça, com meu próprio assentimento, a documentação com que se fazia meu tutor… Bastou, porém, a consecução dessa medida, para que se transformasse para mim num verdugo cruel… Apossou-se-me de todos os recursos… Internou-me num hospício, em que amarguei longos anos de isolamento… Sofri muito… Alimentei-me com o pão recheado de fel, destinado pelo mundo aos que lhe penetram as portas como réprobos do berço, porque o desequilíbrio mental me perseguia desde a idade mais tenra… Quando algo melhorado, fui constrangido a deixar o manicômio. Recorri-lhe à porta, mas expulsou-me sem compaixão… Fiquei apavorado, vencido… Ó meu Deus, como escarnecer assim de um irmão doente e infeliz? Debalde impetrei socorro à Justiça. Legalmente, Henrique era o único senhor dos haveres de nossa casa… Envergonhado, busquei outros climas… Tentei o trabalho digno, mas apenas obtive, em meu favor, a profissão de vigia noturno, passando a rondar vasto edifício comercial, amparado por um homem caridoso, condoído de minha fome… O frio da noite, porém, encontrava-me ao desabrigo e, a breve tempo, adquiri uma febre insidiosa que passou a devorar-me devagarinho… Não sei quanto tempo estive, assim, chumbado a indefinível desânimo… Certa feita, caí fatigado sobre a poça de sangue que se me derramava da boca e criaturas piedosas me angariaram o leito em que me refugio…
— E que opinião mantém você, acerca de Henrique? Lembra-se dele com mágoa?
Qual se mergulhasse a memória em ondas de enternecimento e saudade, Leo deixou que as lágrimas se lhe entornassem dos olhos, em dolorosa quietude mental.
Em seguida, monologou por dentro:
— Pobre Henrique!… Não deverei, antes, lastimá-lo? Acaso, não deverá ele igualmente morrer? de que lhe terá valido a apropriação indébita se será também um dia alijado do corpo? por que me reportaria a perdão, se ele é mais infeliz que eu mesmo?
E, tornando a pousar os olhos na figura do Cristo, continuou:
— Jesus, escarnecido e espancado, esqueceu ofensas e deserções… Içado à cruz, não clamou contra os amigos que o haviam lançado à humilhação e ao sofrimento… Não teve uma palavra de censura para os truculentos algozes… Ao invés de incriminá-los, pedira ao Pai Celeste amorosa proteção para todos… E Jesus foi o Embaixador de Deus entre os homens… Com que direito julgarei, assim, meu próprio irmão, se eu, alma necessitada de luz, não posso penetrar os Divinos Juízos da Providência?
Aquietara-se Leo em pranto, buscando internar a mente no templo de amor da prece.
A humildade a que se recolhia tocava-me o coração.
Ergui-me de olhos úmidos.
Para sondar-lhe a grandeza dalma, não seria preciso alongar o interrogatório.
Hilário, que se mostrava comovido até às lágrimas, desistiu de qualquer consulta, apenas inquirindo ao Assistente se o agonizante estava reencarnado sob os auspícios da Mansão, ao que Silas informou, prestativo:
— Sim, Leo vive tutelado por nossa, casa. Aliás, temos algumas centenas de criaturas que, não obstante materializadas na carne, permanecem ligadas à nossa instituição pelas raízes dos débitos a que se prendem, geralmente todas elas em estágios difíceis de regeneração, porque delinquentes em reajuste. Renascem no mundo sob a guarda de nosso estabelecimento socorrista, mas naturalmente ainda enleadas, de certo modo, aos parceiros do pretérito, com cuja influência tomam contato, consolidando as qualidades morais de que necessitam, através dos conflitos interiores que podemos classificar como sendo a forja da tentação.
— Como é belo apreciar o amor paternal de Deus que a tudo atende no lugar próprio!… — clamou Hilário.
— Sem dúvida — considerou Silas, sensatamente —, a Lei de Deus determina o progresso e a dignidade para todos. Sabem vocês que, via de regra, os desencarnados que se asilam na Mansão constituem grande ajuntamento de criminosos e viciados…
E, modificando a inflexão de voz, acrescentou:
—… como eu mesmo. Ali recebemos atenção e carinho, assistência e bondade, reeducando-nos, às vezes, por muitos anos… Contudo, é imperioso observar que, recolhendo a generosidade dos benfeitores e instrutores que nos garantem aquele pouso de amor, apenas acumulamos débitos com a proteção imerecida, compromissos esses que precisamos resgatar, igualmente em serviço ao próximo. Todavia, a fim de que nos habilitemos para as tarefas do bem genuíno, é imprescindível purgar a nossa condição inferior, agravada na culpa, porquanto o conhecimento elevado, adquirido em nossa organização, vale mais como teoria nobilitante, que nos cabe substancializar na prática correspondente, para que se incorpore, em definitivo, ao nosso patrimônio moral. Eis por que, depois do aprendizado breve ou longo em nosso instituto, somos novamente internados na esfera da carne e, aí, é óbvio que, apesar de protegidos por nossos mentores, deveremos sofrer a aproximação dos antigos comparsas de nossos delitos, para demonstrar aproveitamento e assimilação do amparo recebido.
Ao nosso lado, porém, Leo contava os derradeiros minutos no veículo denso e notamos que o Assistente não desejava ausentar-se do caso dele, para que lhe guardássemos a lição.
Talvez por isso mesmo, Silas ministrou-lhe energias novas ao peito exausto, através de passes balsamizantes, falando-nos em seguida:
— Vocês ouviram as alegações mentais do companheiro que se despede…
Hilário, que ardia de curiosidade, tanto quanto eu faminto de novas elucidações, indagou, reverente:
— Em que ponto será lícito considerar a presente desencarnação de Leo como débito expirante?
Nosso interlocutor fixou expressivo gesto e informou:
— Decerto, não me reportarei à conta integral de nosso amigo, perante a Lei. Não disponho pessoalmente de recursos informativos para relacionar-lhe as dívidas e créditos no tempo. Referir-me-ei, por isso, tão somente à culpa que o atormentava, quando ingressou em nossa casa, segundo os apontamentos que lá poderemos compulsar.
O agonizante agora, de nervos asserenados pelo socorro magnético, parecia quase ouvir-nos.
Sustentando-lhe a fronte suarenta, Silas, atencioso, prosseguiu, depois de leve pausa:
— Leo enfileirou mentalmente para nós as amargas recordações dos dias recentes que tem vivido, detendo-se particularmente na enfermidade que o martiriza desde o berço, nos tormentos do hospício e na dureza de um irmão que o sentenciou à extrema penúria… Vejamos, porém, a razão das dores com que pune a si mesmo e porque mereceu a felicidade de ressarcir para sempre o débito particular, agora na pauta de nosso estudo… Em princípios do século passado, era ele filho dileto de abastados fidalgos citadinos que, desencarnados muito cedo, lhe confiaram o próprio irmão doente, o jovem Fernando, cuja existência fora marcada por incurável idiotia. Ernesto, no entanto — pois era esse o nome de nosso Leo, na existência última —, tão logo se viu sem a presença dos genitores, deu-se pressa em alijar o irmão do seu convívio, cioso do governo total sobre a avantajada fortuna, de que ambos se faziam herdeiros. Além disso, moço habituado aos saraus do seu tempo, estimava as recepções esmeradas, nas quais o palacete da família descerrava as portas brasonadas às relações elegantes, e, orgulhoso da paisagem doméstica, envergonhava-se de ombrear com o irmão, por ele proibido de comparecer aos seus ágapes sociais. Todavia, porque Fernando, mentecapto, não lhe atendesse às ordens, em razão da incapacidade de apreendê-las, providenciou gradeada prisão, ao fundo da residência, onde o rapaz enfermo foi excluído da comunidade familiar. Encarcerado e sozinho, desfrutando apenas a intimidade de alguns escravos, Fernando passou a viver engaiolado, qual se fora infeliz animal. Enquanto isso, Ernesto, casado, dava largas aos caprichos da mulher, em extensas viagens de recreio, nas quais desperdiçava seus bens, em jogatinas e extravagâncias. Depois de algum tempo, esgotado nas finanças de que podia dispor, apenas conseguiria reequilibrar-se por morte do mano irresponsável; no entanto, o jovem mentalmente enfermo dava mostras de grande fortaleza física, não obstante certa bronquite crônica que muito o incomodava. Observando-lhe o desequilíbrio respiratório, Ernesto planejou levá-lo a moléstia mais grave, na esperança de remetê-lo com rapidez ao sepulcro, recomendando aos servos que o libertassem, todas as noites, num grande pátio, em que Fernando repousasse ao relento. O moço, porém, denotava enorme resistência e, embora sofresse consecutivas crises de sua moléstia, assim exposto à intempérie, durante quase dois anos superou valorosamente a provação a que fora submetido. Entrementes, padecia Ernesto o cerco de angústia econômica sempre mais grave, que somente o quinhão amoedado de Fernando, entregue ao comando de velhos amigos, conforme a vontade paterna, poderia solucionar. Em razão disso, envilecido pela fome de ouro, certa noite liberou dois escravos delinquentes, algemados em seu domicílio, sob a condição de se exilarem para terras distantes e, após vê-los partir, sob o nevoeiro da madrugada, buscou o leito do irmão, enterrando-lhe um punhal no peito inerme… Na manhã seguinte, ante o choro dos servos, a lhe mostrarem o cadáver, fê-los admitir que os cativos fujões teriam sido os autores do crime e, inocentando-se com astúcia, entrou na posse dos bens que pertenciam ao morto, com plena aprovação dos magistrados terrestres. Foi assim que, apesar de regalada existência na carne, ao aportar no além-túmulo atravessou extensa faixa de expiações. Fernando, o irmão desditoso, com absoluta magnanimidade esqueceu-lhe as ofensas; no entanto, vergastado pelos remorsos, Ernesto entrou em comunhão com impassíveis agentes da sombra, que o fizeram presa de inomináveis torturas, por se ,recusar a segui-los nas práticas infernais. Conservando no imo dalma a lembrança da vítima, através da percussão mental do arrependimento sobre os centros perispiríticos, enlouqueceu de dor, vagueando por vários lustros, em tenebrosas paisagens, até que, recolhido à nossa instituição, foi convenientemente tratado para o reajuste preciso. Não obstante recuperado, porém, as reminiscências do crime absorviam-lhe o espírito de tal sorte que, para o retorno à marcha evolutiva normal, implorou o regresso à carne, a fim de experimentar a mesma vergonha, a mesma penúria e as mesmas provas por ele infligidas ao irmão indefeso, pacificando, desse modo, a consciência intranquila. Amparado em seus propósitos de resgate por eminentes instrutores, tornou ao campo físico, carreando na própria alma os desequilíbrios que assimilou além do sepulcro, com os quais renasceu alienado mental, como o próprio Fernando no passado recente, tendo amargado, na posição de Leo, todos os infortúnios por ele impostos ao irmão debilitado e infeliz. Ressurgiu, dessa forma, na esfera carnal, desditoso e doente. Cedo conheceu a orfandade, foi colhido de surpresa pela secura e vilania de um irmão insensato que o ilhou no ambiente sombrio de um manicômio e, para não faltar particularidade alguma ao quadro expiatório, padeceu como guarda-noturno o frio e os temporais a que expusera a vítima indefesa… Entretanto, pela humildade e paciência com que tem sabido aceitar os golpes reparadores, conquistou a felicidade de encerrar em definitivo o débito a que nos reportamos.
Porque emudecesse o orientador, preocupado em atender ao agonizante, então banhado pelo suor característico da morte, Hilário indagou:
— Assistente, como entender que o nosso companheiro está liquidando a dívida a que se refere?
— Pois não veem? — observou Silas, admirado. E, indicando a grande hemoptise que começava, ajuntou:
— Qual Fernando, que desencarnou com o tórax perfurado por lâmina assassina, Leo igualmente se despede do corpo com os pulmões em frangalhos. Contudo, pelo procedimento correto que adotou perante a Lei, atravessa o mesmo suplício, mas no leito, sem escândalos destrutivos, embora esteja vertendo o próprio sangue pela boca, tal qual sucedeu ao mano espezinhado e vencido. Cumpre-se o aresto da Justiça, apenas com a diferença de que, em vez do gládio de ferro, temos aqui batalhões de bacilos assassinos…
Talvez porque nos visse o assombro, ante a lição, ocupado embora na assistência ao moribundo, rematou com grave tom de voz:
— Quando a nossa dor não gera novas dores e nossa aflição não cria aflições naqueles que nos rodeiam, nossa dívida está em processo de encerramento. Muitas vezes, o leito de angústia entre os homens é o altar bendito em que conseguimos extinguir compromissos ominosos, pagando nossas contas, sem que o nosso resgate a ninguém mais prejudique. Quando o enfermo sabe acatar os Celestes Desígnios, entre a conformação e a humildade, traz consigo o sinal da dívida expirante…
Silas, contudo, não pôde continuar.
Leo, em oração, debatia-se nos estertores da morte.
O Assistente enlaçou-o, com carinhoso enternecimento e exorou o Amparo Divino, como se o doente desventurado lhe fosse um filho do coração.
Envolvido nas irradiações suaves da prece, Leo adormeceu, diante de nossas lágrimas.
Porque perguntássemos quanto ao motivo pelo qual não o arrebataríamos, de imediato, ao vaso cadavérico, para transportá-lo conosco à Mansão, o Assistente informou-nos, conciso:
— Não dispomos de autoridade para desligá-lo do corpo. Semelhante responsabilidade não nos compete.
E, comunicando aos vigilantes que missionários da libertação viriam, em breves horas, em socorro do companheiro que descansava, meditativo e emocionado propôs-nos regressar à Mansão.
André Luiz
Fonte: Bíblia do Caminho † Testamento Xavieriano
ÁUDIO:
Ação e Reação - Capítulo 17 Dívida expirante
Companheiros da Luz
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