Emmanuel - Livro Paulo e Estêvão - Chico Xavier - 1ª Parte - Cap. 7
As primeiras perseguições
Saulo de Tarso, nas características de sua impulsividade, deixou-se empolgar pela ideia de vingança, impressionado com o desassombro de Estêvão em face da sua autoridade e da sua fama. A seu ver, o pregador do Evangelho infligira-lhe humilhações públicas, que impunham reparações equivalentes.
Todos os círculos de Jerusalém, não obstante o curto prazo da sua nova permanência na cidade, não escondiam a admiração que lhe votavam. Os intelectuais do Templo estimavam nele uma personalidade vigorosa, um guia seguro, tomando-o por mestre no racionalismo superior. Os mais antigos sacerdotes e doutores do Sinédrio reconheciam-lhe a inteligência aguda e nele depositavam a esperança do porvir. Na época, sua juventude dinâmica, votada quase inteiramente ao ministério da Lei, centralizava, por assim dizer, todos os interesses da casuística. Com a argúcia psicológica que o caracterizava, o jovem tarsense conhecia o papel que Jerusalém lhe destinava. Assim, as controvérsias de Estêvão doíam-lhe nas fibras mais sensíveis do coração. No fundo, seu ressentimento era apanágio de uma juventude ardorosa e sincera; entretanto, a vaidade ferida, o orgulho racial, o instinto de domínio, toldavam-lhe a retina espiritual.
No âmago das suas reflexões, odiava agora aquele Cristo crucificado, porque detestava a Estêvão, considerado então como perigoso inimigo. Não poderia tolerar qualquer expressão daquela doutrina, aparentemente simples, mas que vinha abalar o fundamento dos princípios estabelecidos. Perseguiria inflexivelmente o “Caminho”, na pessoa de quantos lhe estivessem associados. Mobilizaria, intencionalmente, todas as simpatias de que dispunha, para multiplicar a devassa imprescindível. Certo, deveria contar com as admoestações conciliatórias de um Gamaliel e de outros raros espíritos, que, ao seu ver, se deixariam embair pela filosofia de bondade que os galileus haviam suscitado com as novas escrituras; mas estava convencido de que a maioria farisaica, em função política, ficaria a seu lado, animando-o na empresa começada.
No dia seguinte à prisão de Estêvão, procurou arregimentar as primeiras forças com a máxima habilidade. À cata de simpatia para o amplo movimento de perseguição que pretendia efetuar, visitou as personalidades mais eminentes do Judaísmo, abstendo-se, contudo, de procurar a cooperação das autoridades reconhecidamente pacifistas. A inspiração dos prudentes não o interessava. Necessitava de temperamentos análogos ao seu, para que o cometimento não falhasse.
Depois de concertar largo projeto entre os compatrícios, solicitou uma audiência da Corte Provincial, para obter o apoio dos romanos encarregados da solução de todos os assuntos políticos da província. O Procurador, apesar de residir oficialmente em Cesareia, estagiava na cidade e ali tivera notícia dos fatos interessantes da véspera. Recebendo a petição do prestigioso doutor da Lei, hipotecou-lhe solidariedade plena, elogiando as providências em perspectiva. Seduzido pelo verbo fluente do moço rabino, fez-lhe sentir, com a displicência do homem de Estado de todos os tempos e em quaisquer circunstâncias pelos assuntos religiosos, que reconhecia no farisaísmo razões de sobra para mover combate aos galileus ignorantes, que perturbavam o ritmo das manifestações de fé, nos santuários da cidade santa. Concretizando as promessas, concedeu, imediatamente, ao moço de Tarso a necessária outorga para o feito colimado, ressalvando naturalmente os direitos de natureza política, que a suprema autoridade romana devia manter intangíveis.
Entretanto, bastava ao novel rabino a adesão dos poderes públicos aos projetos aventados.
Animado em seus propósitos pela quase geral aprovação do seu plano, Saulo começou a coordenar as primeiras diligências por desvendar as atividades do “Caminho” em suas mínimas modalidades. Obcecado pela ideia da desforra pública, idealizava quadros sinistros na mente superexcitada. Tão logo fosse possível, prenderia todos os implicados. O Evangelho, aos seus olhos dissimulava sedição iminente. Apresentaria os conceitos oratórios de Estêvão como senha da bandeira revolucionária, de maneira a despertar a repulsa dos companheiros menos vigilantes, habituados a pactuar com o mal, a pretexto de acomodatícia tolerância. Combinaria os textos da Lei de Moisés e dos Escritos Sagrados, para justificar que se deveria conduzir os desertores dos princípios da raça, até à morte. Demonstraria a irrepreensibilidade da sua conduta inflexível. Tudo faria por conduzir Simão Pedro ao calabouço. Na sua opinião, devia ser ele o autor intelectual da trama sutil que se vinha formando em torno da memória de um simples carpinteiro. No arrebatamento das ideias precipitadas, chegava a concluir que ninguém seria poupado nas suas decisões irrevogáveis.
Nesse dia, singularizado pela visita às autoridades em evidência, no intuito de as atrair à sua causa, outros fatos surpreendentes vieram agravar as preocupações que o assoberbavam. Oseias Marcos e Samuel Natan, dois compatriotas riquíssimos, de Jerusalém, depois de ouvirem a defesa pessoal de Estêvão, no Sinédrio, impressionados com a eloquência e justeza dos conceitos do orador, distribuíram com os filhos a parte da herança cabível a cada um, e doaram ao “Caminho” o restante de seus haveres. Para isso, procuraram Simão Pedro beijando-lhe as mãos calejadas no trabalho, depois de lhe ouvirem a palavra acerca de Jesus-Cristo.
A notícia ecoou nos círculos farisaicos com as características de verdadeiro escândalo.
Saulo de Tarso teve conhecimento do fato, no dia imediato, aferindo o abalo geral que a atitude de Estêvão provocara. A defecção dos dois correligionários bandeando-se para os galileus causou-lhe profundo sentimento de revolta. Falava-se, mais, que Oseias e Samuel, entregando ao “Caminho” a totalidade de seus bens, haviam declarado, entre lágrimas, que aceitavam o Cristo como o Messias prometido. Os comentários dos amigos, a respeito, instigavam-no às mais fortes represálias. Designado pelas caprichosas correntes populares como o mais jovem defensor da Lei, sentia-se compelido, cada vez mais, a revelar o seu ascendente nesse posto que considerava sagrado. Na defesa do seu mandato, por isso mesmo, desprezaria todas as considerações tendentes a infirmar-lhe o rigorismo, em que presumia um divino dever.
Considerando a gravidade da última ocorrência que ameaçava a estabilidade do judaísmo no seio mesmo dos seus elementos mais destacados, procurou novamente as autoridades supremas do Sinédrio, a fim de apressar as repressões em perspectiva.
Atento à autorização concedida pelos mais altos poderes políticos da província, Caifás propôs fosse o zeloso doutor de Tarso nomeado chefe e promotor de todas as providências atinentes e indispensáveis à guarda e defesa da Lei. Competia-lhe, então, promover todos os recursos que julgasse convenientes e úteis, reservadas ao Sinédrio as últimas decisões, máxime, as de natureza mais grave.
Satisfeito com o resultado da reunião que improvisara, o moço tarsense acentuou antes de se despedir dos amigos:
— Hoje mesmo requisitarei o corpo de tropa que deverá operar no perímetro da cidade. Amanhã ordenarei a detenção de Samuel e Oseias, até que se resolvam a retomar juízo e, no fim da semana, tratarei das capturas da gentalha do “Caminho”.
— Não temerás, acaso, os sortilégios? — interrogou Alexandre com ironia.
— De modo algum — respondeu sentencioso e decisivo. — Sabendo de oitiva que os próprios militares começam a ficar supersticiosos sob a influência das ideias extravagantes dessa gente, chefiarei em pessoa a expedição, porquanto tenciono recolher o tal Simão Pedro ao calabouço.
— Simão Pedro? — perguntou um dos presentes, admirado.
— Por que não?
— Sabes o motivo da ausência de Gamaliel ao nosso encontro de hoje? — tornou o outro.
— Não.
— É que, a convite desse mesmo Simão, ele foi observar as instalações e os feitos do “Caminho”. Não achas tudo isso extremamente curioso? Temos, de maneira geral, a impressão de que o chefe humilde dos galileus, desaprovando a atitude de Estêvão perante o Sinédrio, deseja recompor a situação, buscando aproximar-se de nossa autoridade administrativa. Quem sabe? Talvez tudo isso seja útil. No mínimo, é bem possível estejamos caminhando para a necessária rearmonização.
Saulo mostrava-se mais que surpreso, porque estupefato.
— Mas, que vem a ser tudo isso? Gamaliel visitando o “Caminho”? Chego a duvidar da sua integridade mental.
— Mas sabemos — interveio Alexandre — que o mestre sempre pautou seus atos e pensamentos com a máxima correção. Era justo se negasse a tal convite, em consideração a nós outros; entretanto, se tal não fez, é igualmente preciso não desacatemos a deliberação tomada, certo, com a nobreza de objetivos que sempre o inspirou.
— De acordo — disse Saulo algo contrafeito —, entretanto, apesar da amizade e gratidão que lhe consagro, nem mesmo Gamaliel poderá modificar minhas resoluções. É possível que Simão Pedro se justifique, saindo ileso das provas a que será submetido; mas, seja como for, terá de ser conduzido ao cárcere para as necessárias inquirições. Desconfio da sua aparente humildade. Com que fim se abalançaria ele a deixar suas redes para arvorar-se em benfeitor gracioso dos pobres de Jerusalém? Vejo, em tudo isso, propósitos de sedição que não deve andar muito longe. Os mais humildes e ignorantes caminham à frente dos perigos. Os senhores da destruição aparecem depois.
A palestra animou-se ainda algum tempo, em torno da expectativa geral dos acontecimentos que se aproximavam, até que Saulo se despediu e voltou para casa, disposto a assentar os últimos detalhes do seu plano.
A prisão de Estêvão tivera, na igreja modesta do “Caminho”, ampla repercussão despertando justificados receios aos Apóstolos da Galileia Pedro recebera a notícia com profunda tristeza. Encontrara no rapaz de Corinto um auxiliar devotado e um irmão. Além disso, pela nobreza de suas qualidades afetivas, Estêvão se tornara uma figura central a focalizar todas as atenções. Para a sua fronte inspirada convergiam numerosos problemas, em cuja solução o ex-pescador de Cafarnaum não mais dispensava a sua prestigiosa cooperação. Amado pelos aflitos e sofredores, tinha sempre a palavra de bom ânimo, que levantava o mais desalentado coração. Pedro e João preocuparam-se mais por amor, que por quaisquer outras considerações. Entretanto Tiago, filho de Alfeu, não conseguia disfarçar seu desgosto em face da conduta desassombrada do irmão de fé, que não hesitara em afrontar os poderes farisaicos, dos senhores da situação. Na opinião dele, Estêvão andara errado no capítulo das exortações; deveria comedir-se, merecera a prisão pelos argumentos precipitados na defesa de si mesmo.
Fermentara-se a discussão. Pedro fazia-lhe sentir a oportunidade da ocorrência, para que se revelasse a liberdade do Evangelho. E reforçava os argumentos com a lógica dos fatos. A resolução de Oseias e Samuel, entregando-se ao Cristo, era invocada para justificar o êxito espiritual do “Caminho”. Toda a cidade comentava os acontecimentos; muitos se aproximavam da igreja com sincero desejo de melhor conhecer o Cristo, e isso devia significar a vitória da causa. Tiago, no entanto, não se deixava vencer pelos mais fortes raciocínios. A discórdia tomava corpo, mas Simão e o filho de Zebedeu sobrepunham a tudo os interesses da Mensagem de Jesus. O Mestre afirmara-se emissário para todos os desalentados e doentes. E estes já conheciam a igreja humilde de Jerusalém, iluminando-se com a palavra de vida e de verdade. Os enfermos, os desiludidos da sorte, os desprotegidos do mundo, os tristes, iam-lhe ao encontro para o esclarecimento consolador. Era de ver-se como se rejubilavam na dor, quando se lhes falava da claridade eterna da ressurreição. Velhinhos trêmulos abriam os olhos desmesuradamente, como se contemplassem novos horizontes de imprevistas esperanças. Criaturas cansadas da luta terrestre sorriam venturosas, quando, em ouvindo a Boa Nova, compreendiam que a existência amargurada não era tudo.
Pedro observava os sofredores que Jesus tanto amara e experimentava novas forças.
Ciente da atitude nobre de Gamaliel ante as acusações do doutor de Tarso, e crente de que só ela evitara o apedrejamento imediato de Estêvão, concebeu o projeto de convidá-lo a visitar as instalações toscas da igreja do “Caminho”. Exposta aos companheiros, a ideia foi unanimemente aprovada. João era o mensageiro escolhido para o novo cometimento.
Gamaliel não só recebeu cavalheirescamente o emissário, como também demonstrou grande interesse pelo convite, aceitando-o com a generosidade que lhe exornava a velhice veneranda.
Entabuladas as combinações, o sábio rabino deu entrada na casa pobre dos galileus, que o receberam com infinita alegria. Simão Pedro, profundamente respeitoso, explicou-lhe as finalidades da instituição, esclareceu-o relativamente aos feitos verificados e falou do conforto dispensado aos que se encontravam em abandono. Carinhosamente, ofereceu-lhe uma cópia, em pergaminho, de todas as anotações de Mateus sobre a personalidade do Cristo e seus gloriosos ensinamentos. Gamaliel agradecia, atencioso, ao ex-pescador, tratando-o igualmente com deferência e consideração. Dando a entender que desejava expor à sua respeitável apreciação todos os programas da igreja humilde, Simão conduziu o velho doutor da Lei a todas as dependências. Chegados à longa enfermaria em que se aglomeravam os mais diversos doentes, o grande rabino de Jerusalém não pôde ocultar a máxima impressão, comovido até as lágrimas com o quadro que se lhe deparava aos olhos espantados. Em leitos acolhedores viu anciães de cabelos nevados pelos invernos da vida, e crianças esquálidas cujos olhares agradecidos acompanhavam o vulto de Pedro, como se estivessem na presença de um pai. Não dera ainda dez passos em torno dos móveis singelos e limpos, quando estacou à frente de um velhinho de miserável aspecto. Imobilizado pela enfermidade que o prostrara, o pobre enfermo pareceu reconhecê-lo igualmente.
E o diálogo se travou sem preâmbulos:
— Samônio, tu aqui? — interrogou Gamaliel admirado. — Pois será possível que abandonasses Cesareia?
— Ah! sois vós, senhor! — respondeu o interpelado com uma lágrima no canto dos olhos. — Ainda bem que um dos meus compatrícios e amigos chegou a observar minha grande miséria.
O pranto embargou-lhe a voz, impedindo-o de continuar.
— Mas, os teus filhos? E os parentes? Na posse de quem estão tuas propriedades da Samaria? — perguntava o velho mestre perplexo. — Não chores, Deus tem sempre muito para nos dar.
Decorrida longa pausa em que Samônio pareceu coordenar as ideias para explicar-se, conseguiu limpar as lágrimas e prosseguir:
— Ah! senhor, como Job, vi meu corpo apodrecer entre os confortos de minha casa; Jeová em sua sabedoria reservava-me longas provanças. Denunciado como leproso, em vão solicitei socorro dos filhos que o Criador me concedeu na mocidade. Todos me abandonaram. Os familiares deram-se pressa em partir, deixado-me sozinho. Os amigos que se banqueteavam comigo, em Cesareia, fugiram sem que os pudesse ver. Fiquei só e desamparado. Um dia, para suprema desesperação da minha desdita, os executores da justiça procuraram-me para notificar a sentença cruel. Combinados entre si, a conselho da iniquidade, meus filhos destituíram-me de todos os bens, assenhorearam-se de minhas posses e dos títulos em dinheiro, que representavam a esperança de uma velhice honesta. Por fim e para cúmulo de sofrimentos, conduziram-me ao vale dos imundos, onde me abandonaram como se fora um criminoso sentenciado à morte. Senti tanto abandono e tanta fome, experimentei tamanhas necessidades, talvez pela minha vida passada no trabalho e no conforto, que fugi do vale dos leprosos, fazendo longa jornada a pé, esperançoso de encontrar em Jerusalém as amizades valiosas de outrora.
Ouvindo o relato doloroso, o velho mestre tinha os olhos úmidos. Conhecera Samônio nos dias mais felizes de sua vida. Homenageado em sua residência, de passagem por Cesareia, espantava-se agora daquela angustiosa indigência.
Depois de pequeno interregno em que o doente procurava enxugar o suor e as lágrimas, com voz pausada continuou:
— Empreendi a viagem, mas tudo conspirou contra mim. Em breve os pés chagados não podiam caminhar. Arrastava-me como podia, cheio de cansaço e sede, quando um carroceiro humilde, apiedado, me colheu e trouxe a esta casa, onde a dor encontra um consolo fraternal.
Gamaliel não sabia como externar sua surpresa, tal a emoção que lhe vibrava no íntimo. Pedro, igualmente, estava sensibilizado. Acostumando-se à prática do bem sem cogitar jamais dos antecedentes do socorrido, via no caso uma confortadora revelação do amoroso poder do Cristo.
O grande rabino estava atônito diante do que ali via e ouvia. Com a sinceridade que lhe era peculiar, não podia dissimular sua amizade agradecida ao pobre enfermo; mas, sem recursos para retirá-lo daquele pobre albergue, via-se na contingência de estender seu reconhecimento a Simão Pedro e demais companheiros do ex-pescador de Cafarnaum. Só agora reconhecia que o Judaísmo não havia cogitado desses pousos de amor. Encontrando ali o amigo leproso, desejou sinceramente ampará-lo. Mas como? Pela primeira vez pensou na dolorosa eventualidade de enviar um ente amado ao vale dos imundos. Ele que aconselhara esse recurso a tanta gente, ali estava considerando, agora, a situação de um amigo querido. O episódio abalava-o profundamente. Procurando evitar raciocínios filosóficos, de modo a não cair em conclusões apressadas, falou com doçura.
— Sim, tens razão para agradecer o esforço dos teus benfeitores.
— E também a misericórdia do Cristo — acentuou o doente com uma lágrima. — Creio, agora, que o generoso profeta de Nazaré, com o testemunho de amor que nos trouxe, é o Messias prometido.
O grande doutor compreendeu o êxito da nova doutrina. Aquele Jesus desconhecido, ignorado da sociedade mais culta de Jerusalém, triunfava no coração dos infelizes, pela contribuição de amor desinteressado que trouxera aos mais deserdados da sorte. Compreendeu, ao mesmo tempo, a discrição que se lhe impunha naquele meio humilde, atentas as suas responsabilidades na vida pública. Precisando prosseguir na conversa, por testemunhar o seu altruísmo e piedade, advertiu com um sorriso:
— Acredito que Jesus de Nazaré, de fato, foi um modelo de renúncia a prol de ideias que, até hoje, não pude perquirir ou compreender; mas daí a considerá-lo o próprio Messias…
Essas palavras reticenciosas davam a compreender o escrúpulo do seu coração delicado, entre a Lei Antiga e as novas revelações do Evangelho. Simão Pedro assim o entendeu e, debalde, procurava um meio para desviar a palestra noutro rumo. O próprio Samônio, porém, como tutelado do Mestre, foi em auxílio do Apóstolo, redarguindo a Gamaliel com observações ponderadas e justas:
— Se eu estivesse com saúde, plenamente identificado com a família e no gozo dos bens que conquistei com esforço e trabalho, talvez duvidasse também dessa realidade confortadora. Mas estou prostrado, esquecido de todos e sei quem me deu mão amiga. Como israelitas, amantes da Lei de Moisés, temos esperado um Salvador na pessoa mortal de um príncipe do mundo; contudo, essa crença há de prevalecer para uma situação passageira. São ilusórios preconceitos, esses que nos levam a induzir uma dominação de forças perecíveis. A enfermidade, porém, é conselheira carinhosa e esclarecida. De que nos valeria um profeta que salvasse o mundo para depois desaparecer entre as misérias anônimas de um corpo apodrecido? Não está escrito que toda iniquidade perecerá? E onde está o príncipe poderoso da Terra que domine sem a garantia das armas? O leito de dor é um campo de ensinamentos sublimes e luminosos. Nele, a alma exausta vai estimando no corpo a função de uma túnica. Tudo o que se refira à vestimenta vai perdendo, consequentemente, de importância. Persevera, contudo, a nossa realidade espiritual. Os antigos afirmavam que somos deuses. Na minha situação atual tenho a perfeita impressão de que somos deuses projetados num turbilhão de pó. Apesar das chagas pustulentas que me segregaram das afeições mais queridas, penso, quero e amo. Na câmara escura do sofrimento, encontrei o Senhor Jesus, para compreendê-lo melhor. Hoje creio que seu poder dominará as nações, porque é a força do amor triunfando da própria morte.
A voz daquele homem marcado de feridas roxas, no seu grave entono, parecia o clarim da verdade saindo de um montão de pó. Pedro verificava, satisfeito, o progresso moral daquele mendigo anônimo, para avaliar intimamente a força regeneradora do Evangelho. Gamaliel, por sua vez, aturdia-se com o profundo sentido daqueles conceitos. A pregação do Cristo, nos lábios de um doente desamparado, tinha um cunho de beleza misteriosa e singular. Samônio falara no tom de quem tivera experiências diretas de um encontro real com o profeta nazareno. Buscando afastar qualquer possibilidade de controvérsia religiosa, o generoso rabino sorriu e acrescentou:
— Reconheço que falas com muita sabedoria. Se é incontestável que estou numa idade em que não seria útil alterar os princípios, não posso manifestar-me contrário às tuas suposições, pois estou bem de saúde, gozo o carinho dos meus e tenho vida tranquila. Minha faculdade de julgar, portanto, tem de operar noutro rumo.
— Sim, é justo — retrucou Samônio, inspirado —, por enquanto não estais precisando de um salvador. Eis por que o Cristo afirmava que viera para os doentes e para os aflitos.
Gamaliel compreendeu o alcance dessas palavras que davam para meditar uma vida inteira. Sentiu os olhos úmidos. A observação de Samônio penetrara-lhe fundo o coração sensível de homem justo. Percebendo, todavia, que necessitava de prudência para não confundir os sentimentos do povo, atento o cargo oficial que ocupava, esboçou um manso sorriso para o interlocutor, bateu-lhe levemente no ombro, e com acento de fraternal sinceridade acentuou:
— Talvez tenhas razão. Estudarei o teu Cristo.
E lembrando o pouco tempo de que dispunha, recomendou o amigo a Simão, despedindo-se num abraço, para acompanhar o Apóstolo de Cafarnaum às últimas dependências.
Antes de se retirar, o sábio rabino felicitou os companheiros de Jesus pela obra que realizavam na cidade, e, compreendendo a delicadeza de sua missão num ambiente por vezes tão hostil, aconselhou a Pedro não esquecer, na igreja do “Caminho”, todas as práticas exteriores do judaísmo. Seria justo, ao seu ver, que se cuidasse da circuncisão de todos os que lhe batessem à porta; que evitassem as viandas impuras; que não olvidassem o Templo e seus princípios. Gamaliel sabia que os galileus não seriam isentos de perseguição, ainda mais tratando-se de uma organização iniciada por alguém que fora condenado à morte pelo Sinédrio. Com aqueles conselhos, visava aparar os golpes da violência, que, cedo ou tarde, haveriam de chegar.
Pedro, João e Tiago agradeceram sensibilizados a carinhosa admoestação e o velho doutor regressou ao lar, fundamente impressionado com as lições do dia, levando consigo os apontamentos de Mateus, que se pôs a ler imediatamente.
Mais dois dias decorreram e as perseguições capitaneadas por Saulo de Tarso começaram a sacudir Jerusalém em todos os setores de suas atividades religiosas.
Oseias Marcos e Samuel Natan foram presos, sem nota de culpa, a fim de responderem a rigoroso inquérito. Os cooperadores do movimento organizaram longas nominatas dos israelitas mais destacados que frequentavam as reuniões da igreja do “Caminho”. O moço de Tarso determinara que se abrisse inquérito geral. Entretanto, como desejava dar uma demonstração de desassombro aos adversários, julgou que deveria iniciar as prisões de maior importância, depois do encarceramento de Oseias e Samuel, no reduto mesmo dos galileus obscuros, que haviam ousado afrontar a sua autoridade.
Foi pela manhã de um dia muito claro, que o futuro rabino, cercado de alguns companheiros e soldados, bateu à porta da casa humilde, fazendo grande alarde dos fins de sua visita insidiosa. Simão Pedro em pessoa foi atendê-lo com grande serenidade nos olhos. Indisfarçável pavor estabeleceu-se entre os mais tímidos, porquanto, dois jovens que acompanhavam o Apóstolo se incumbiram de correr ao interior e espalhar a notícia.
— És tu Simão Pedro, antigo pescador de Cafarnaum? — perguntou Saulo com certa insolência.
— Eu mesmo — respondeu com firmeza.
— Estás preso! — disse o chefe da expedição num gesto de triunfo. E mandando que dois dos companheiros se adiantassem, ordenou fosse o Apóstolo algemado incontinente. Pedro não opôs a mínima resistência. Impressionado com o temperamento pacífico que os continuadores do Nazareno testemunhavam sempre, Saulo objetou com escárnio:
— O Mestre do “Caminho” deve ter sido um alto modelo de inércia e covardia. Ainda não encontrei qualquer indício de dignidade nos seus discípulos cujas faculdades de reação parecem mortas.
Recebendo em cheio tão acerba injúria, o ex-pescador respondeu serenamente:
— Enganai-vos quando assim julgais. O discípulo do Evangelho é apenas inimigo do mal e, na sua tarefa coloca o amor acima de todos os princípios. Além do mais, nós consideramos que todo jugo com Jesus, é suave.
O jovem tarsense, detentor de tão alto poderio, não dissimulou o mal-estar que a resposta lhe causava e, apontando o continuador de Jesus, disse a um dos homens da escolta:
— Jonas, toma conta dele.
E, acentuando ironicamente as palavras, dirigiu-se aos demais com um gesto de desprezo para o Apóstolo algemado, que o contemplava sereno, embora surpreendido:
— Não discutamos com este homem. Esta gente do “Caminho” está sempre cheia de raciocínios absurdos. É preciso não perder tempo com a cegueira da ignorância. Vamos até lá dentro, prendamos os chefes. Os sequazes do carpinteiro hão de ser perseguidos até ao fim.
Resoluto, tomou a dianteira, penetrando ousadamente em busca dos apartamentos mais íntimos. De porta a porta, encontrava mendigos que o fitavam tomados de espanto e amargura. O quadro vivo de tanta miséria abrigada enchia-o de admiração; mas, esforçava-se por não perder a enfibratura implacável, de maneira a executar seus projetos nos menores detalhes. Ao lado da enfermaria de mais vastas proporções, encontrou o filho de Zebedeu, que lhe ouviu a voz de prisão sem alterar a serenidade fisionômica.
Sentindo as mãos grosseiras do soldado que lhe aplicava as algemas, João ergueu os olhos ao Alto e murmurou simplesmente:
— Encomendo-me ao Cristo.
O chefe da caravana olhou-o com profundo desprezo e exclamou altivamente para os companheiros:
— Faltam dois dos mais suspeitos. Procuremo-los.
Referia-se a Filipe e Tiago, na qualidade de discípulos diretos do Messias Nazareno.
Mais alguns passos e o primeiro foi encontrado facilmente. Filipe deixou-se algemar sem um protesto. Suas filhas o rodearam aflitas e chorosas.
— Coragem, filhas — disse ele sem temor —, acaso seríamos superiores a Jesus, que foi perseguido e crucificado pelos homens?
— Ouves, Clemente? — perguntou Saulo, irritado, a um dos amigos mais cotados. — Não se percebe outra coisa a não ser referências ao estranho Nazareno! O primeiro falou em jugo do Cristo, o segundo encomendou-se ao Cristo, este alude à superioridade do Cristo… Aonde iremos?
Após desabafar a cólera, em termos ásperos, rematava com o estribilho constante:
— Havemos de ir até ao fim.
Seguros os três prisioneiros, faltava o filho de Alfeu. Alguém se lembrou de procurá-lo no tosco biombo que ocupava. Com efeito, lá o acharam ajoelhado, tendo diante dos olhos um rolo de pergaminhos em que se encontrava a Lei de Moisés. Via-se-lhe a palidez marmórea do rosto, quando Saulo se aproximou ríspido:
— Que é isso? Há aqui alguém que cuide da Lei?
O irmão de Levi levantou os olhos transbordantes de sincero receio e explicou humilde:
— Senhor, jamais esqueci a Lei de nossos pais. Meus avós ensinaram-me a receber de joelhos as luzes do profeta santo.
A atitude de Tiago não traduzia fingimento. Consagrando o máximo respeito ao libertador de Israel, sempre ouvira dizer que seus livros sagrados estavam tocados de virtude santa. Na expectativa do cárcere, atemorizara-se com o perigo iminente. Não pudera compreender, maiormente, como outros companheiros, o sentido divino e oculto das lições do Evangelho. O sacrifício inspirava-lhe indisfarçáveis temores. Afinal, pensava ele na compreensão parcial do Cristo: — quem ficaria para superintender as obras começadas? O Mestre expirara na cruz e, naquele instante, os Apóstolos de Jerusalém estavam presos. Precisava defender-se com os meios possíveis, ao seu alcance. Imaginou recorrer às virtudes sobrenaturais da Lei de Moisés, de acordo com as velhas crenças. Genuflexo, esperara os verdugos que se aproximavam.
Em face da atitude imprevista de Tiago, Saulo de Tarso estava atônito. Só os espíritos profundamente aferrados ao judaísmo liam, de joelhos, os ensinamentos de Moisés. Em sã consciência, não poderia ordenar a prisão daquele homem. O argumento que justificava sua tarefa, perante as autoridades políticas e religiosas de Jerusalém, era o combate aos inimigos das tradições.
— Mas não sois amigo do carpinteiro?
Com invejável presença de espírito o interpelado respondeu:
— Não me consta que a Lei nos impeça de ter amigos.
Saulo perturbou-se, mas prosseguiu:
— Mas, que escolheis? A Lei ou o Evangelho? Qual dos dois aceitais em primeiro lugar?
— A Lei é a primeira revelação divina — disse Tiago com inteligência.
Ante a resposta que o desconcertava, de alguma sorte, o moço de Tarso refletiu um momento e acrescentou, dirigindo-se, aos circunstantes:
— Está bem. Este homem fica em paz.
O filho de Alfeu, intimamente satisfeito com o resultado de sua iniciativa, acreditava agora que a Lei de Moisés estava tocada de graças vivas e permanentes. A seu ver, fora o código do judaísmo o talismã que o conservara em liberdade. Desde esse dia, o irmão de Levi ia consolidar, para sempre, suas tendências supersticiosas. O fanatismo que os historiadores do Cristianismo encontraram na sua personalidade enigmática teve aí sua origem.
Afastando-se do aposento de Tiago, Saulo preparava-se para sair, quando, de regresso à portaria para ordenar a partida dos prisioneiros, esbarrou com a cena que mais o haveria de impressionar.
Todos os doentes que se podiam arrastar, todos os abrigados capazes de se moverem, cercavam a pessoa de Pedro, chorando comovidamente. Algumas crianças lhe chamavam “pai”; anciães trêmulos osculavam-lhe as mãos…
— Quem se compadecerá de nós, agora? — perguntava uma velhinha debulhada em pranto.
— Meu “pai”, aonde vão levar-vos? — dizia um órfão afetuoso, abraçando-se ao prisioneiro.
— Vou ao monte, filho — respondia o Apóstolo.
— E se vos matarem? — tornava o pequenino com uma grande interrogação nos olhos azuis.
— Encontrar-me-ei com o Mestre e voltarei com ele — esclarecia Pedro bondosamente.
Nesse instante, surgiu a figura de Saulo, que regressava. Contemplando a multidão de aleijados, cegos, leprosos e crianças que entupiam a sala, exclamou irritado:
— Afastem-se, abram caminho!
Alguns recuaram, espavoridos, vendo os soldados que se aproximavam, enquanto que os mais resolutos não arredavam passo. Um leproso, que mal se punha em pé, adiantou-se. O velho Samônio, recordando-se do tempo em que podia mandar e ser obedecido, aproximou-se de Saulo com desassombro.
— Nós precisamos saber para onde vão estes prisioneiros — disse com gravidade.
— Para trás! — exclamou o moço tarsense, esboçando um gesto de repugnância. — Será possível que um homem da Lei tenha de dar satisfações a um velho imundo?
Os guardas armados tentaram adiantar-se, para castigar o atrevido; no entanto, a lepra defendia Samônio dos seus ataques. Prevalecendo-se da situação, o antigo proprietário de Cesareia revidou com firmeza:
— O homem da Lei não precisa prestar contas senão a Deus, quando no exato cumprimento dos seus deveres; mas, nesta casa, falam os códigos de humanidade. Para vós eu sou imundo, mas para Simão Pedro sou um irmão. Prendeis os bons e libertais os maus! Onde a vossa justiça? Credes somente no Deus dos exércitos? É indispensável saberdes que se o Eterno é o fator supremo da ordem, o Evangelho nos ensina a buscar em sua providência o carinho de um Pai.
Em ouvindo aquela voz digna, que fluía da miséria e do sofrimento como um apelo de desesperação, Saulo quedara-se admirado. O mendigo, entretanto, depois de longa pausa, prosseguia resoluto:
— Onde estão vossas casas de arrimo aos oprimidos da sorte? Quando vos lembrastes de um asilo para os mais infelizes? Enganais-vos se supondes inércia em nossa atitude. Os fariseus levaram Jesus ao Calvário da crucificação, privando os necessitados de sua presença inefável. Por haver praticado o bem, Estêvão foi metido no cárcere. Agora, o Sinédrio requisita os Apóstolos do “Caminho”, retribuindo-lhes a bondade com a escuridão do calabouço. Mas estais equivocados. Nós, os miseráveis de Jerusalém, haveremos de lutar convosco. De Simão Pedro nós disputaremos a própria sombra. Se vos negardes a atender nossas súplicas, importa lembrardes que somos leprosos. Envenenaremos vossos poços. Pagareis a perversidade com a saúde e com a vida.
Nesse ínterim, não pôde continuar.
Ante a expectação angustiosa de todos, Saulo de Tarso sentenciou ríspido:
— Cala-te miserável! Onde estou que te pude ouvir até agora? Nem mais uma palavra.
E designando-o a um dos soldados, murmurou com desprezo:
— Sinésio, dá-lhe dez bastonadas. É indispensável castigar-lhe a língua insolente e viperina.
Ali mesmo, à vista de todos os companheiros que se retraíam amedrontados, Samônio recebeu o castigo sem balbuciar uma queixa. Pedro e João tinham os olhos úmidos. Os demais doentes encolhiam-se estarrecidos.
Terminada a tarefa, um grande silêncio dominava os corações ansiosos e doloridos. O doutor de Tarso rompeu a expectativa com a ordem de partida, a caminho do cárcere.
Duas crianças pálidas acercaram-se, então, do ex-pescador de Cafarnaum e perguntaram chorosas:
— “Pai”, com quem ficaremos nós?
Pedro voltou-se, acabrunhado, e respondeu com ternura:
— As filhas de Filipe ficarão convosco… se Jesus permitir, meus filhos, não me demorarei.
O próprio Saulo, intimamente, estava comovido; entretanto, não desejava trair-se a si mesmo, deixando-se vencer pela emoção que o quadro lhe provocava.
Pedro compreendeu que as lágrimas silenciosas de todos os tutelados humildes do “Caminho” traduziam desvelado amor, naquele momento de angustiantes despedidas.
Em seguida a esse feito, o jovem tarsense desdobrou as energias na primeira perseguição experimentada pelas expressões individuais e coletivas do Cristianismo nascente. Mais do que se poderia supor, Jerusalém regurgitava de criaturas que se interessavam pelas ideias do Messias Nazareno. Saulo prevaleceu-se dessa circunstância para fazer sentir, mais uma vez, o perigo ideológico que o Evangelho representava. Numerosas prisões foram efetuadas. Na cidade, iniciara-se um êxodo de grandes proporções. Os amigos do “Caminho”, com possibilidades financeiras, preferiam encetar vida nova na Idumeia ou na Arábia, na Cilícia ou na Síria. Os que podiam escapavam ao rigor dos inquéritos violentos, iniciados com retumbâncias de escândalo público. As personalidades mais eminentes eram metidas na prisão, incomunicáveis, mas os anônimos e humildes, os da plebe, sofriam grandes vexames nas dependências do tribunal onde se faziam os interrogatórios. Os guardas assalariados por Saulo, para a execução do nefando trabalho, excediam-se nos abusos.
— És do “Caminho” de Cristo Jesus? — perguntava um deles a uma desventurada mulher, com risinhos de ironia.
— Eu… eu… — gaguejava a infeliz, compreendendo a delicadeza da situação.
— Depressa, dize depressa! — tornava o beleguim desrespeitoso.
A mísera criatura empalidecia a tremer, refletindo nos pesados castigos que lhe seriam impostos e retrucava com profundo temor:
— Eu… não…
— E que foste fazer nas suas assembleias sediciosas?
— Fui buscar remédio para um filhinho doente.
Em face da negativa, o preposto do Sinédrio parecia acalmar-se, mas logo exclamava para um dos auxiliares:
— Muito bem! A interrogada pode ir em paz; antes, porém, de retirar-se, manda o regulamento se lhe aplique alguns golpes de chanfalho.
E era inútil resistir. Naquele tribunal singular, por longos dias seguidos, verificaram-se punições de toda espécie. Das respostas do querelado dependiam o encarceramento, os açoites, o chanfalho, as bastonadas, as macerações e os apupos.
Saulo tornara-se a mola central do movimento terrível e execrado por todos os simpatizantes do “Caminho”. Multiplicando energias, visitava diariamente os núcleos do serviço a que costumava chamar “expurgo de Jerusalém”. desenvolvendo atividade pasmosa, dentro da qual mantinha a vigilância constante das autoridades administrativas, encorajava os auxiliares e prepostos, instigava outros perseguidores dos princípios de Jesus, sem deixar arrefecer-se o zelo religioso do Sinédrio.
Dentro de uma semana, após as prisões efetuadas na igreja modesta, realizava-se a memorável sessão em que Pedro, João e Filipe deveriam ser julgados. A assembleia excepcional despertara a maior curiosidade. Lá se congregavam todas as personalidades eminentes do farisaísmo dominante. Gamaliel compareceu, dando mostras de profundo abatimento.
De modo geral, comentava-se a atitude dos mendigos que, não obtendo permissão de ingresso, aglomeravam-se em longas filas na grande praça e protestavam em atroante vozerio. Debalde aplicavam-lhes bastonadas a torto e a direito, porque a turba de miseráveis assumira proporções nunca vistas. O quadro era curioso e alarmante. Tomar providências para correr com a massa, parecia tarefa impossível. Os peregrinos e os doentes contavam-se por centenas numerosas. Era inútil reprimir nos pontos isolados, o que somente vinha agravar a revolta e desesperação de muitos. Em altos brados reclamavam a liberdade de Simão Pedro. Exigiam em tumulto a sua libertação, como se exigissem um legado de seu legítimo direito.
No salão nobre, não só os assistentes comentavam o fato, mas, também os juízes não dissimulavam profunda impressão. O próprio Anás contava o assédio de que vinha sendo objeto, por parte dos favorecidos de Jerusalém. Alexandre alegava que à sua residência afluíram centenas de aflitos a solicitar-lhe os bons ofícios a favor dos prisioneiros. Saulo, de vez em quando, respondia a um que outro, com rápidos monossílabos. Sua fisionomia carregada traduzia propósitos inferiores relativamente ao destino dos Apóstolos da Boa Nova, que lá estavam à sua frente, no fundo da sala, humildes, serenos, no banco dos criminosos comuns.
Viu-se, então, que Gamaliel se detinha com o sumo-sacerdote em conversação íntima, que durou alguns minutos e despertava grande curiosidade entre os colegas. Em seguida, o venerando doutor da Lei chamou o ex-discípulo para um entendimento particular, antes de iniciarem os trabalhos. Os colegas perceberam que o rabino tolerante e generoso ia advogar a causa dos continuadores do Nazareno.
— Qual a sentença a ser proposta para os prisioneiros? — interrogou o velhinho com bondoso interesse, logo que se viram distanciados dos grupos rumorosos.
— Sendo eles galileus — disse Saulo enfático da sua autoridade —, não lhes será conferido o direito da palavra no recinto; de maneira que já deliberei a punição que lhes cabe. Vou propor a morte dos três, com a de Estêvão, pelo apedrejamento.
— Que dizes? — exclamou Gamaliel, surpreso.
— Não vejo outro recurso — disse o moço tarsense —, precisamos extirpar pela raiz os males que começam. Acredito que, se encararmos o movimento com tolerância, teremos o prestígio do judaísmo abalado por nossas próprias mãos.
— Entretanto, Saulo — replicou o velho mestre com profunda bondade —, devo invocar o ascendente que tenho em tua formação espiritual, para defender estes homens da pena de morte.
O moço caprichoso fez-se lívido. Não se habituara a transigir nos seus conceitos e decisões. Sua vontade era sempre tirânica e inflexível. Mas Gamaliel fora de todos os tempos o seu melhor amigo. Aquelas mãos rugosas lhe haviam ministrado os exemplos mais santos. Delas recebera vasto potencial de socorro em todos os dias da vida. Compreendeu que defrontava um obstáculo poderoso na consecução integral de seus desejos. O venerando rabino percebeu a perplexidade e logo insistiu:
— Ninguém mais do que eu conhece a generosidade do teu coração e sou o primeiro a reconhecer que tuas resoluções obedecem ao zelo inexcedível na defesa de nossos princípios milenários; mas o “Caminho”, Saulo, parece ter uma grande finalidade na renovação dos nossos valores humanos e religiosos. Quem, entre nós, se havia lembrado de amparar os infortunados com o provimento de um lar afetuoso e fraterno? Antes da tua diligência corretiva, visitei essa instituição singela e pude confortar-me na observação do seu excelente programa.
O jovem doutor estava pálido, ouvindo tais conceitos, que, a seu ver, eram positivo sinal de fraqueza.
— Mas será possível — disse admirado — que também vós tenhais lido o Evangelho dos galileus?
— Estou a lê-lo — confirmou Gamaliel sem titubear — e pretendo meditar mais demoradamente os fenômenos que ocorrem em nosso tempo. Pressinto grandes transformações em toda parte. Tenciono retirar-me da vida pública em breves dias, a fim de tomar o caminho do deserto. É claro, porém, que estas minhas palavras devem ser guardadas por ti, em penhor de mútua confiança.
Sumamente impressionado, o moço de Tarso não sabia o que responder. Presumia o mestre respeitável mentalmente prejudicado por excesso de lucubrações. O mestre, porém, como se lhe adivinhasse o pensamento, acrescentou:
— Não me suponhas mentalmente debilitado. A velhice no corpo não me apagou a capacidade de pensar e discernir por mim mesmo. Compreendo o escândalo que se levantaria em Jerusalém se um rabino do Sinédrio modificasse publicamente as convicções mais íntimas. Mas é preciso convir que estou falando a um filho espiritual. E expondo, sinceramente, o meu ponto de vista, faço-o tão só para defender homens generosos e justos de uma sentença iníqua e indevida.
— Vossa revelação — exclamou Saulo de roldão — decepciona-me profundamente!
— Conheces-me de menino e sabes que o homem sincero não se poderá preocupar com os que o elogiem ou o lamentem no cumprimento de um sagrado dever.
E, imprimindo carinhoso acento à voz, acentuava solícito:
— Não me faças ir contigo, nesta assembleia, aos debates públicos escandalosos e atentatórios da feição amorosa que toda verdade deve trazer consigo. Libertarás estes homens em atenção ao nosso passado de mútuo entendimento. É só o que te peço. Deixa-os em paz, por amor aos nossos laços afetivos. Daqui a alguns dias não precisarás conceder mais coisa alguma ao velho mestre. Serás meu substituto neste cenáculo, porquanto tenciono abandonar a cidade em breves dias.
E como Saulo hesitava-se, continuou:
— Não precisarás refletir muito tempo. O sumo-sacerdote está ciente de que eu pediria tua clemência para os prisioneiros.
— Mas… e a minha autoridade? — interrogou o rapaz com orgulho. — Como conciliar a indulgência com a necessidade de reprimir o mal?
— Toda a autoridade é de Deus. Nós somos simples instrumentos, meu filho. Ninguém se diminuirá por ser bom e tolerante. Quanto à providência mais digna cabível no caso, é conceder liberdade a todos eles.
— Todos? — perguntou Saulo num gesto de grande admiração.
— Como não? — confirmou o venerável doutor da Lei. — Pedro é um homem generoso, Filipe é um pai de família extremamente dedicado ao cumprimento de seus deveres, João é um moço simples, Estêvão se consagrou aos pobres.
— Sim, sim — interrompeu o moço tarsense. — Concordo com a libertação dos três primeiros, com uma condição. Por serem casados, Pedro e Filipe poderão continuar em Jerusalém, restringindo suas atividades ao socorro dos doentes e necessitados; João será banido; mas Estêvão deverá sofrer a sentença decisiva. Já propus, publicamente, a lapidação, e não vejo motivos para transigir, mesmo porque, para escarmento, pelo menos um dos discípulos do carpinteiro deve morrer.
Gamaliel compreendeu a força daquela resolução pela veemência das palavras que a traduziam. Saulo deixara bem claro que não transigiria, quanto ao taumaturgo. O velho rabino não insistiu. Para evitar um escândalo, entendeu que Estêvão pagaria com o sacrifício. Aliás, considerando o temperamento voluntarioso do ex-discípulo, a quem a cidade havia conferido atribuições tão vastas, já não era pouco obter clemência para os três homens justos, consagrados ao bem comum.
Compreendendo a situação, acentuou o respeitável rabino.
— Pois bem, seja assim!
E, com um sorriso de bondade, deixou o moço algo preocupado e perplexo.
Daí a instantes, com surpresa geral da assembleia, Saulo de Tarso, da tribuna, propunha a libertação de Pedro e Filipe, o banimento de João, e reiterava o pedido de apedrejamento para Estêvão, por considerá-lo o mais perigoso dos elementos do “Caminho”. As autoridades do Sinédrio apreciando os alvitres, com satisfação, por saberem que a medida agradaria à turba numerosa, afirmaram seu unânime consentimento e a morte de Estêvão foi aprazada para uma semana depois, convidando Saulo os amigos para a triste cerimônia pública a que ele próprio haveria de presidir.
Emmanuel