quinta-feira, 22 de julho de 2021

Allan Kardec - Revista Espírita - Ano IX, Junho de 1866 - Estudo psicológico - Tentativa de assassinato do imperador da Rússia




Allan Kardec - Revista Espírita - Ano IX, Junho de 1866 - Estudo psicológico


Tentativa de assassinato do imperador da Rússia


O Indépendance Belge de 30 de abril, sob o título de Notícias da Rússia, correspondência de São Petersburgo, dá um relato minucioso das circunstâncias que seguiram ao atentado de que foi vítima o czar. Além disso, fala de certos indícios precursores do crime e contém a respeito esta passagem:


“Conta-se que o governador de São Petersburgo, o príncipe Souwouroff, tinha recebido uma carta anônima assinada N.N.N., na qual se ofereciam, por meio de certas informações, para desvendar um mistério importante, pedindo uma resposta na Gazeta da Polícia. A resposta apareceu e está assim concebida: “A chancelaria do governador geral convida N.N.N. a vir amanhã, entre onze e duas horas, para dar certas explicações”. Mas o anônimo não apareceu; ele enviou uma segunda carta, alegando que era muito tarde e não tinha mais a liberdade de ir.

“O convite foi reiterado dois dias após o atentado, mas sem resultado.

“Enfim, como último indício, algumas pessoas acabam de se lembrar que três semanas antes do atentado, o jornal alemão Die Gartenlaube publicou um relato de uma sessão espírita realizada em Heildelberg, na qual o Espírito de Catarina II anunciava que o imperador Alexandre estava ameaçado de um grande perigo.

“Dificilmente se compreende, depois de tudo isto, como a polícia secreta russa não pôde ser informada a tempo acerca do crime que se preparava. Essa polícia, que custa muito caro, e que inunda de espiões inúteis todos os nossos círculos e assembleias públicas, não soube não só descobrir a tempo o complô, mas até mesmo cercar o soberano com a sua vigilância, o que é elementar e absolutamente necessário, sobretudo com um príncipe que sai quase sempre só, seguido de seu cão enorme; que faz passeios a pé nas horas matinais, sem estar acompanhado por um ajudante de ordens. No próprio dia do atentado eu encontrei o imperador na rua Millonaïa, às nove e meia da manhã. Ele estava completamente só e saudava com afabilidade os que o reconheciam. A rua estava quase deserta e os policiais eram muito raros.”

 O que há sobretudo de notável neste artigo é a menção, sem comentário, do aviso dado pelo Espírito de Catarina II numa sessão espírita. Teriam eles posto esse fato entre os indícios precursores, se considerassem as comunicações espíritas como palhaçada ou ilusão? Numa questão tão grave, teriam evitado fazer intervir uma crença considerada ridícula. É uma nova prova da reação que se opera na opinião, a respeito do Espiritismo.

Temos que analisar o fato do atentado sob outro ponto de vista. Sabe-se que o imperador deve sua salvação a um jovem camponês chamado Joseph Kommissaroff que, achando-se à sua passagem, desarmou o assassino. Sabe-se, também, os favores de toda natureza com que este último foi cumulado. Ele foi feito nobre, e as dádivas que recebeu lhe asseguram uma fortuna considerável.

Esse jovem se dirigia para uma capela situada do outro lado do Neva por ocasião de seu aniversário natalício; nesse momento havia começado o degelo e a circulação estava interrompida, por isso ele teve que renunciar ao seu plano. Devido a essa circunstância, ele ficou na outra margem do rio, na passagem do imperador, que saía do jardim de verão. Tendo-se misturado com a multidão, ele percebeu um indivíduo que procurava aproximar-se, e cujas atitudes lhe pareceram suspeitas; seguiu-o e tendo-o visto tirar uma pistola do bolso e apontá-la para o imperador, teve a presença de espírito de lhe bater debaixo do braço, o que fez o tiro partir para o ar.

Que feliz acaso, exclamarão certas pessoas, que justo no momento o degelo tenha impedido a Kommissaroff de atravessar o Neva! Para nós, que não cremos no acaso, mas que tudo está submetido a uma direção inteligente, diremos que estava nas provas do czar correr aquele perigo (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XXV: Prece num perigo iminente), mas que sua hora não tendo ainda chegado, Kommissaroff havia sido escolhido para impedir a realização do crime, e que as coisas que parecem efeito do acaso estavam organizadas para levar ao resultado desejado.

Os homens são os instrumentos inconscientes dos desígnios da Providência. É por intermédio deles que ela os realiza, sem que haja necessidade de recorrer a prodígios. Basta a mão invisível que os dirige, e nada foge da ordem das coisas naturais.

Se assim é, dirão, o homem não passa de uma máquina, e suas ações são fatais. ─ Absolutamente, porque se ele é solicitado a fazer uma coisa, não é constrangido a isso; ele não deixa de conservar o livre-arbítrio, em virtude do qual pode fazê-la ou não, e a mão que o conduz fica invisível, precisamente para lhe deixar mais liberdade. Assim, Kommissaroff podia muito bem não ceder ao impulso oculto que o dirigia para a passagem do imperador; podia ficar indiferente, como tantos outros, à vista do homem e de sua atitude suspeita; enfim, poderia ter olhado para outro lado, no momento em que este último tirava a pistola do bolso. ─ Mas, então, se ele tivesse resistido a esse impulso, o imperador teria sido morto? ─ Também não. Os desígnios da Providência não estão à mercê do capricho de um homem. A vida do imperador devia ser preservada; em falta de Kommissaroff, teria sido por outro meio; uma mosca poderia picar a mão do assassino e obrigá-lo a um movimento involuntário; uma corrente fluídica sobre ele dirigida poderia ter-lhe provocado um ofuscamento. Se Kommissaroff não tivesse escutado a voz íntima que o guiava malgrado seu, ele apenas teria perdido o benefício da ação que estava incumbido de realizar. Eis tudo o que teria resultado. Mas, se tivesse soado a hora fatal para o czar, nada poderia tê-lo preservado. Ora, os perigos iminentes que corremos têm precisamente por objetivo mostrar-nos que nossa vida pende por um fio, que pode romper-se no momento em que menos pensamos nela, e por isso advertir-nos  para estarmos sempre prontos para partir.

Mas, por que esse jovem camponês em vez de um outro? Para quem não vê nos acontecimentos um simples jogo do acaso, tudo tem a sua razão de ser. Devia, pois, haver um motivo na escolha daquele moço, e mesmo que esse motivo nos fosse desconhecido, a Providência nos dá muitas provas de sua sabedoria, para não duvidarmos que tal escolha tinha sua utilidade.

Apresentada essa questão como tema de estudo numa reunião espírita em casa de uma família russa residente em Paris, um Espírito deu a seguinte explicação. 


Mesmo na existência do mais ínfimo dos seres, nada é deixado ao acaso. Os principais acontecimentos de sua vida são determinados por sua provação: os detalhes são influenciados por seu livre-arbítrio. Mas o conjunto das situações foi previsto e combinado antecipadamente por ele próprio e por aqueles que Deus prepôs à sua guarda.

No presente caso, as coisas se passaram dentro da normalidade. Sendo esse moço já avançado e inteligente, escolheu como provação nascer em condição miserável, depois de ter ocupado uma alta posição social; estando já desenvolvidas a sua inteligência e a sua moralidade, ele pediu uma condição humilde e obscura, para extinguir as últimas sementes do orgulho que nele havia deixado o espírito de casta. Escolheu livremente, mas Deus e os bons Espíritos decidiram recompensá-lo na primeira manifestação de devotamento desinteressado e vedes em que consiste sua recompensa.

Resta-lhe agora, em meio às honrarias e à fortuna, conservar intacto o sentimento de humildade que foi a base de sua nova encarnação. Assim, é ainda uma prova e uma dupla prova, na sua qualidade de homem e na sua qualidade de pai. Como homem, deve resistir à embriaguez de uma alta e súbita fortuna; como pai, deve preservar os filhos da arrogância dos novos ricos. Ele pode criar-lhes uma posição admirável; pode aproveitar sua posição intermediária para fazer deles homens úteis ao seu país. Plebeus de nascimento e nobres pelo mérito de seu pai, eles poderão, como muitos dos que encarnam presentemente na Rússia, trabalhar poderosamente pela fusão de todos os elementos heterogêneos, pela extinção do elemento servil, que durante muito tempo, entretanto, não poderá ser destruído de maneira radical.

Nessa promoção há uma recompensa, sem dúvida, porém, mais do que isso, há uma prova. Sei que na Rússia o mérito recompensado encontra mercê diante dos grandes; mas lá, como alhures, o novo rico orgulhoso e compenetrado de seu valor é vítima das troças; ele se torna joguete de uma sociedade que em vão se esforça por imitar. O ouro e as grandezas não lhe deram a elegância e o espírito do mundo. Desprezado e invejado por aqueles em cujo meio nasceu, é muitas vezes isolado e infeliz em seu fausto.

Como vedes, nem tudo é agradável nessas elevações súbitas e sobretudo quando atingem tais proporções. Para esse moço, esperamos em razão de suas excelentes qualidades, que ele saiba gozar em paz as vantagens que lhe proporcionou sua ação, e evitar as pedras de tropeço que poderiam retardar sua marcha no caminho do progresso.


MOKI
Paris, 1º de maio de 1866 ─ Médium: Sr. Desliens


OBSERVAÇÃO: Em falta de provas materiais sobre a exatidão desta explicação, há que convir que ela é eminentemente racional e instrutiva, e como o Espírito que a deu é sempre caracterizado pela gravidade e alto alcance de suas comunicações, consideramos esta como tendo todos os caracteres da probabilidade.

A nova posição de Kommissaroff é um efeito muito escorregadio para ele, e seu futuro depende da maneira pela qual suportará essa prova, cem vezes mais perigosa que as desgraças materiais às quais a gente se resigna à força, ao passo que é bem mais difícil resistir às tentações do orgulho e da opulência. Que força ele não hauriria do conhecimento do Espiritismo e das verdades que ele ensina!

Mas, como pudemos notar, as vistas da Providência não se detêm nesse moço. Submetendo-se a sua prova, e pelo próprio fato da prova, ele pode, pelo encadeamento das circunstâncias, tornar-se um elemento de progresso para o seu país, ajudando na destruição dos preconceitos de casta. Assim, tudo se liga no mundo, pelo concurso das forças inteligentes que o dirigem. Nada é inútil, e as coisas aparentemente menores podem conduzir aos maiores resultados, e isto sem derrogar as leis da Natureza. Se pudéssemos ver o mecanismo que nos ocultam a nossa natureza material e a nossa inferioridade, de que admiração não seríamos tomados! Mas se não podemos vê-lo, o Espiritismo, revelando as suas leis, no-lo faz compreensível pelo pensamento, e é assim que ele nos eleva, aumenta a nossa fé e a nossa confiança em Deus, e que combate vitoriosamente a incredulidade.


Allan Kardec







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