Léon Denis - Livro Depois da Morte - Cap. 8
A crise moral
Do exame precedente resulta que dois sistemas contraditórios e opostos partilham o mundo do pensamento. Nosso tempo é, nesse ponto de vista, um tempo de perturbação e de transição. A fé religiosa esmoreceu e as grandes linhas da filosofia do futuro só aparecem, ainda, para uma minoria de pesquisadores.
Certamente, a época em que vivemos é grande pela soma dos progressos realizados. A civilização moderna, extremamente utilitária, transformou a face da Terra; reaproximou os povos, suprimindo-lhes as distâncias. A instrução foi estendida; as instituições foram melhoradas. O direito substitui o privilégio, e a liberdade triunfa do espírito de rotina e do princípio de autoridade. Uma grande batalha se trava entre o passado, que não quer morrer, e o futuro, que se esforça para nascer para a vida. Em favor dessa luta, o mundo se agita e caminha; uma impulsão irresistível o arrasta; e o caminho percorrido, os resultados adquiridos nos fazem pressagiar conquistas ainda mais maravilhosas.
Todavia, se os progressos de ordem material e de ordem intelectual são notáveis, por outro lado, o avanço moral é nulo. Nesse ponto, o mundo parece recuar muito mais; as sociedades humanas, febrilmente absorvidas pelas questões políticas, pelas empresas industriais e financeiras, sacrificam ao bem-estar seus interesses morais.
Se a obra da civilização nos aparece sob aspectos magníficos, ela tem também, como todas as coisas humanas, sombras escondidas. Sem dúvida, ela melhorou numa certa medida as condições da existência, mas multiplicou as necessidades de tanto satisfazê-las; aguçando os apetites, os desejos, favoreceu tanto o sensualismo que aumentou a depravação. O amor ao prazer, ao luxo, às riquezas tornou-se cada vez mais ardente. Quer-se adquirir, quer-se possuir a qualquer preço.
Daí, essas especulações desavergonhadas que se instalam em plena luz. Daí, esse abatimento dos caracteres e das consciências, esse culto fervoroso que se rende à fortuna, verdadeiro ídolo cujos altares substituíram os das divindades decaídas.
A ciência e a indústria centuplicaram as riquezas da Humanidade, mas dessas riquezas apenas uma pequena parte dos seus membros aproveitaram diretamente. A sorte dos pequenos tornou-se precária, e a fraternidade ocupou mais lugar nos discursos do que nos corações. No meio das cidades opulentas, pode-se ainda morrer de fome. As usinas, as aglomerações operárias, focos de corrupção física e moral, tornaram-se como que infernos do trabalho.
A embriaguez, a prostituição, a libertinagem, espalham-se por toda a parte seus venenos, empobrecendo as gerações e secam a vida na sua fonte, enquanto que as páginas públicas semeiam, à porfia, a injúria, a mentira, e uma literatura malsã excita os cérebros e debilita as almas.
Cada dia, a desesperança causa novamente devastações: o número de suicidas que, em 1820, era de mil e quinhentos, na França, é agora de mais de oito mil. Oito mil seres, a cada ano, desertam das lutas fecundas da vida por falta de energia e de senso moral e se refugiam no que acreditam ser o nada! O número dos crimes e delitos triplicou há cinquenta anos. Entre os condenados, a proporção dos adolescentes é considerável. É preciso ver nesse estado de coisas os efeitos do contágio do meio, dos maus exemplos recebidos desde a infância, a ausência de firmeza dos pais e a falta de educação na família? Há tudo isso, e mais ainda.
Nossos males provêm daquilo que o homem ignora de si mesmo, apesar dos progressos da Ciência e o desenvolvimento da instrução. Ele sabe pouca coisa das leis do Universo; ele nada sabe das forças que nele estão. O “Conhece-te a ti mesmo” do filósofo grego permaneceu, para a imensa maioria dos humanos, como um apelo estéril. Não há mais que vinte séculos, menos talvez, o homem de hoje não sabe o que ele é, de onde vem, para onde vai, qual é o seu objetivo real da existência. Nenhum ensinamento veio dar-lhe a noção exata do seu papel nesse mundo nem de seus destinos.
O espírito humano flutua, indeciso, entre as solicitações de duas potências.
De um lado, as religiões com seu cortejo de erros e de superstições, seu espírito de dominação e de intolerância; mas também, com as consolações das quais são a fonte e as fracas luzes que guardaram das verdades primordiais.
Do outro, a Ciência, materialista nos seus princípios como nos seus fins, com suas frias negações e sua tendência exagerada ao individualismo; mas também, com o prestígio das suas descobertas e de seus benefícios.
E esses dois colossos, a religião sem-provas e a Ciência sem-ideal, desafiam-se, exterminam-se, combatem-se sem poder vencer-se, pois cada uma delas responde a uma necessidade imperiosa do homem, uma, falando ao seu coração, a outra, dirigindo-se ao seu espírito e à sua razão. Em torno delas acumulam-se as ruínas de numerosas esperanças e de aspirações destruídas; os sentimentos generosos enfraquecem-se, a divisão e o ódio substituem a benevolência e a concórdia.
No meio dessa confusão de ideias, a consciência perdeu o seu caminho. Ela vai, ansiosa, ao acaso e, na incerteza que pesa sobre ela, o bem e o justo curvam-se. A situação moral de todos os infelizes que se dobram sob o fardo da vida tornou-se intolerável; entre duas doutrinas que apenas oferecem como perspectivas às suas dores, como termo aos seus males, uma, o nada, a outra, um paraíso quase inacessível ou uma eternidade de suplícios.
As consequências desse conflito se fazem sentir em toda a parte, na família, no ensino e na sociedade. A educação viril desapareceu. Nem a Ciência, nem a religião sabem mais fazer as almas fortes e bem armadas para os combates da vida. A Filosofia, ela própria, dirigindo-se somente a algumas inteligências abstratas, abdica dos seus direitos sobre a vida social e perde toda a influência.
Como a Humanidade sairá desse estado de crise? Só há um meio para isso: encontrar um terreno de conciliação onde as duas forças inimigas, o sentimento e a razão, possam unir-se para o bem e a salvação de todos. Pois todo ser humano traz em si essas duas forças, sob o império das quais ele pensa e age, alternadamente. Seu acordo obtém das suas faculdades o equilíbrio e a harmonia, centuplica seus meios de ação e dá à sua vida a retidão, a unidade de tendências e de vistas, enquanto que suas contradições e suas lutas causam-lhe a desordem. E o que se produz em cada um de nós, manifesta-se na sociedade inteira e causa a perturbação moral da qual ela sofre.
Para colocar um fim nisso, é preciso que a luz se faça aos olhos de todos, grandes e pequenos, ricos ou pobres, homens, mulheres e crianças; é preciso que um novo ensino popular venha esclarecer as almas sobre sua origem, seus deveres e seu destino.
Pois tudo está aí. Unicamente, as soluções formuladas por esse ensino podem servir de base a uma educação viril, tornar a Humanidade verdadeiramente forte e livre. Sua importância é capital, tanto para o indivíduo, que elas dirigirão na sua tarefa cotidiana, como para a sociedade, à qual regularão as instituições e as relações.
A ideia que o homem faz do Universo, de suas leis, do papel que lhe cabe nesse vasto teatro, recai sobre toda a sua vida e influi sobre suas determinações. É segundo ela que ele traça um plano de conduta, fixa para si um objetivo e caminha para ele. Procuraríamos também, em vão, evitar esses problemas. Eles se impõem ao nosso espírito; eles nos dominam, envolvem-nos nas suas profundezas; formam o eixo de qualquer civilização.
Cada vez que uma concepção nova do mundo e da vida penetra no espírito humano e infiltra-se, pouco a pouco, em todos os meios, a ordem social, as instituições e os costumes ressentem-se, imediatamente, disso.
As concepções católicas criaram a civilização da Idade Média e dividiram a sociedade feudal, monárquica, autoritária. Então, na Terra como no Céu, era o reino da graça e do bel-prazer. Essas concepções viveram; não encontram mais lugar no mundo moderno. Mas, abandonando as antigas crenças, o presente não soube substituí-las. O Positivismo materialista e ateu apenas vê na vida uma combinação passageira de matéria e de força, um mecanismo brutal nas leis do Universo. Nenhuma noção de justiça, de solidariedade, de responsabilidade. Daí, um relaxamento geral dos laços sociais, um ceticismo pessimista, um desprezo por qualquer lei e por qualquer autoridade, que poderiam nos conduzir aos abismos.
Essas doutrinas materialistas trouxeram para uns o desencorajamento, para outros, uma recrudescência da cobiça, por toda a parte elas arrastaram ao culto do ouro e da carne. Sob sua influência, uma geração educou-se, geração desprovida de ideal, sem-fé no futuro, duvidando dela mesma e de tudo.
As religiões dogmáticas nos conduziam ao arbítrio e ao despotismo; o materialismo atingiu, logicamente, inevitavelmente, à anarquia e ao niilismo. É por isso que devemos considerá-lo como um perigo, como uma causa de decadência e de rebaixamento.
Talvez considerem essas apreciações excessivas e seremos taxados de exagero. Basta-nos, nesse caso, nos reportarmos às obras dos materialistas eminentes e citarmos suas próprias conclusões.
Eis, por exemplo, o que escrevia, entre tantos outros, o Sr. Jules Soury:
“Se há alguma coisa de vão e inútil no mundo, é o nascimento, a existência e a morte dos inumeráveis parasitas, faunas e floras, que vegetam como um bolor e se agitam na superfície desse ínfimo planeta. Indiferente em si mesma, necessária, em todo caso, já que ela é, essa existência que tem como condição a luta encarniçada de todos contra todos, a violência ou a astúcia, o amor, mais amargo que a morte, parecerá, pelo menos para todos os seres verdadeiramente conscientes, um sonho sinistro, uma alucinação dolorosa, ao preço da qual o nada seria um bem”.
Léon Denis
*Jules Soury (Paris, 1842 – Paris, 1915) foi um teórico e historiador francês da neuropsicologia.
Fonte: Depois da Morte-pdf
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