quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Léon Denis - Livro O Grande Enigma - Cap. VII - A ideia de Deus e a experimentação psíquica



Léon Denis - Livro O Grande Enigma - Cap. VII


A ideia de Deus e a experimentação psíquica


Até aqui, no nosso estudo da questão de Deus, mantivemo-nos no terreno dos princípios. Nesse domínio, a ideia de Deus nos aparece qual chave da abóbada da doutrina espiritualista. Vejamos agora se não tem a mesma importância no domínio dos factos, na ordem experimental. (1)

À primeira vista, pode parecer estranho ouvir dizer que a ideia de Deus representa um papel importante no estudo experimental, na observação dos fatos espíritas.

Notemos primeiramente que há tendência, por parte de certos grupos, para dar ao Espiritismo carácter sobremaneira experimental, para fazer-se exclusivamente o estudo dos fenômenos, desprezando-se o que tem cunho filosófico, tendência para rejeitar tudo o que possa recordar, por pouco que seja, as doutrinas do passado, para, em suma, limitar tudo ao terreno científico. Nesses meios, procura afastar-se a crença e a afirmação de Deus, por supérfluas, ou, pelo menos, por serem de demonstração impossível. Pensa-se, assim, atrair os homens de ciência, os positivistas, os livres-pensadores, todos aqueles que sentem uma espécie de aversão pelo sentimento religioso, por tudo o que tem certa aparência mística ou doutrinal.

Por outro lado, desejar-se-ia fazer do Espiritismo um ensino filosófico e moral, baseado nos fatos, ensino susceptível de substituir as velhas doutrinas, os sistemas caducos, e satisfazer o grande número de Almas que buscam, antes de tudo, consolação para as suas dores; uma filosofia simples, popular, que lhes dê tréguas às tristezas da vida.

De um lado e de outro, há multidões a contentar; muito mais, até, de um lado que do outro, porque a multidão daqueles que lutam e sofrem excede em muito a dos homens de estudo.

A sustentar essas duas teses vemos, de uma parte e de outra, homens sinceros e convencidos, a cujas qualidades nos congratulamos de render homenagem.

Por quem optar? Em que sentido convirá orientar-se o Espiritismo para assegurar a sua evolução?

O resultado das nossas pesquisas e das nossas observações leva-nos a reconhecer que a grandeza do Espiritismo, a influência que adquire sobre as massas, provém, principalmente, da sua doutrina; os factos são os fundamentos em que o edifício se apoia. Certamente! As fundações representam papel essencial em todo o edifício, mas não é nas fundações, isto é, nas estruturas subterrâneas, que o pensamento e a consciência podem encontrar abrigo.

Aos nossos olhos, a missão real do Espiritismo não é somente esclarecer as inteligências por um conhecimento mais preciso e mais completo das leis físicas do mundo; tal consiste, principalmente, em desenvolver a vida moral nos homens, a vida moral que o materialismo e o sensualismo têm amesquinhado tanto. Levantar os caracteres e fortificar as consciências, tal é o papel do Espiritismo. Sob este ponto de vista, pode ser remédio eficaz para os males que assediam a sociedade contemporânea, remédio a esse acréscimo inaudito do egoísmo e das paixões, que nos arrastam ao abismo. Julgamos dever exprimir aqui a nossa inteira convicção: não é fazendo do Espiritismo somente uma ciência positiva, experimental; não é eliminando nele o que há de elevado, o que atrai o pensamento acima dos horizontes estreitos, isto é, a ideia de Deus, o uso da prece, que se facilitará a sua missão; ao contrário, concorrer-se-ia para torná-lo estéril, sem ação sobre o progresso das massas.

Certamente! Ninguém mais do que nós admira as conquistas da Ciência; sempre tivemos prazer de render justiça aos esforços corajosos dos sábios que fizeram recuar a cada dia os limites do desconhecido.

Mas a Ciência não é tudo. Sem dúvida ela tem contribuído para esclarecer a Humanidade; entretanto, tem-se mostrado sempre impotente para torná-la mais feliz e melhor.

A grandeza do espírito humano não consiste somente no conhecimento; está também no ideal elevado. Não foi a Ciência, e sim o sentimento, a fé e o entusiasmo que fizeram Jeanne d'Arc e todas as grandes epopeias da História.

Os enviados do Alto, os grandes predestinados, os videntes e os profetas não escolheram por móbil a ciência: escolheram a crença.

Eles vieram para mostrar o caminho que conduz a Deus.

Que é feito da ciência do passado? As vagas do esquecimento a submergiram, tal qual submergirão a ciência dos nossos dias. Quais serão os métodos e as teorias contemporâneas em vinte séculos? Em compensação, os nomes dos grandes missionários têm sobrevivido através dos tempos. O que sobrevive a tudo, no desastre das civilizações, é o que eleva a alma humana acima de si mesma, para um fim sublime, para Deus!

Há outra coisa mais. Mesmo limitando-nos ao terreno do estudo experimental, há uma consideração capital em que devemos inspirar-nos. É a natureza das relações que existem entre os homens e o mundo dos Espíritos; é o estudo das condições a preencher para tirar dessas relações os melhores efeitos.

Logo que chegamos aos ditos fenômenos, ficamos impressionados pela composição desse mundo invisível que nos cerca, pelo carácter das multidões de Espíritos que nos rodeiam e que procuram sem cessar pôr-se em relação com os homens. Em torno do nosso atrasado planeta flutua uma vida poderosa, invisível, onde dominam os Espíritos levianos e zombeteiros, com os quais se misturam Espíritos perversos e malfazejos. Aí há muitos apaixonados, cheios de vícios, criminosos. Deixaram a Terra com a alma repleta de ódio, com o pensamento saturado de vingança: esperam na sombra o momento propício para satisfazer os seus rancores, as suas fúrias, à custa dos experimentadores imprudentes e imprevidentes que, sem precaução, sem reserva, abrem de par em par as vias que fazem comunicar o nosso mundo com o dos Espíritos.

É desse meio que nos vêm as mistificações sem-número, os embustes audaciosos, as manobras bem conhecidas dos Espíritos experimentados, manobras pérfidas, que, em certos casos, conduzem os médiuns à obsessão, à possessão, à perda das suas mais belas faculdades, a tal ponto que certos críticos, fazendo a enumeração das vítimas desses factos, contando todos os abusos que decorrem de uma prática imprevista e frívola do Espiritismo, têm perguntado se não seria ele uma fonte de perigos, de misérias, uma nova causa de decadência para a Humanidade. (2)

Felizmente, ao lado do mal está o remédio. Para nos livrar das influências más existe um recurso supremo. Possuímos um meio poderoso para afastar os Espíritos do abismo e para fazer do Espiritismo um elemento de regeneração, um sustentáculo, um confortante. Esse recurso, esse preservativo é a prece, é o pensamento dirigido para Deus! O pensamento de Deus é qual uma luz que dissipa a sombra e afasta os Espíritos das trevas; é uma arma que dispersa os Espíritos malfazejos e nos preserva dos seus embustes. A prece, quando é ardente, improvisada – e não recitação monótona –, tem um poder dinâmico e magnético considerável; (3) ela atrai os Espíritos elevados e assegura-nos a sua proteção. Graças a eles podemos sempre comunicar com aqueles que nos amaram na Terra, aqueles que foram a carne da nossa carne, o sangue do nosso sangue e que, da sombra do Espaço, nos estendem os braços.

Temos verificado, muitas vezes, na nossa carreira de experimentadores: quando, numa reunião espírita, todos os pensamentos e vontades se unem num transporte poderoso, numa convicção profunda; quando sobem para Deus pela prece, jamais falha o socorro. Todas essas vontades reunidas constituem um feixe de forças, a arma segura contra o mal. Ao apelo que se eleva para o céu, há sempre algum Espírito de escol que responde. Esse Espírito protetor, a convite do Alto, vem dirigir os nossos trabalhos, afastar dali os Espíritos inferiores, deixando somente intervir aqueles cujas manifestações são úteis para eles próprios ou para os encarnados.

Há aí um princípio infalível. Com o pensamento purificado e a elevação para Deus, o Espiritismo experimental pode ser uma luz, uma força moral, uma fonte de consolações. Sem esses requisitos ele poderá ser a incerteza, a porta aberta a todas as armadilhas do Invisível; uma entrada franca a todas as influências, a todos os sopros do abismo, a esses sopros de ódio, a essas tempestades do mal que passam sobre a Humanidade, à semelhança de trombas, e a cobrem de desordem e de ruínas.

Sim, é bom, é necessário abrir veredas para a comunicação com o mundo dos Espíritos; mas, antes de tudo, deve evitar-se que essas veredas sirvam aos nossos inimigos, para nos invadirem. Lembremo-nos de que há nos mundos invisíveis muitos elementos impuros. Dar-lhes entrada, seria derramar sobre a Terra males inúmeros; seria entregar aos Espíritos perversos uma verdadeira multidão de almas fracas e desarmadas.

Para entrar em relação com as Potências superiores, com os Espíritos esclarecidos, é preciso a vontade e a fé, o desinteresse absoluto e a elevação dos pensamentos. Fora destas condições, o experimentador seria o joguete dos Espíritos levianos.

“O que se assemelha se ajusta”, diz o provérbio. Com efeito, a lei das afinidades rege tanto o mundo das Almas quanto o dos corpos.

Há, pois, tanto sob o ponto de vista teórico quanto do prático e, ainda, sob o ponto de vista do progresso do Espiritismo, a necessidade de se desenvolver o senso moral, de nos ligarmos às crenças fortes e aos princípios superiores, de não abusar das evocações, de não entrar em comunicação com os Espíritos senão em condições de recolhimento e de paz moral.

O Espiritismo foi dado ao homem como meio de se esclarecer, de se melhorar, de adquirir qualidades indispensáveis à sua evolução. Se se destruíssem nas Almas ou somente se desprezassem a ideia de Deus e as aspirações elevadas, o Espiritismo poderia tornar-se coisa perigosa. Eis a razão pela qual não hesitamos em dizer que entregarmo-nos às práticas espíritas sem purificar os nossos pensamentos, sem os fortificar pela prece e pela fé, seria executar obra funesta, cuja responsabilidade poderia cair pesadamente sobre os seus autores.

Chegamos agora a um ponto particularmente delicado da questão. Atribui-se muitas vezes aos espíritas o não viverem sempre de acordo com os seus princípios; fazendo-se observar que entre eles o sensualismo, os apetites materiais e o amor ao lucro ocupam lugar muitas vezes considerável. Acusam-nos, principalmente, de divisões intestinas, rivalidades de grupos e de pessoas, que são grandes obstáculos à organização das forças espíritas e à sua marcha para diante.

Não nos interessa insistir sobre essas proposições; não queremos pronunciar aqui nenhum juízo desfavorável para quem quer que seja. Permita-se-nos somente fazer notar que não será reduzindo o Espiritismo ao papel de simples ciência de observação, que se conseguirá iludir, atenuar essas fraquezas. Ao contrário, não faremos mais que as agravar. O Espiritismo exclusivamente experimental já não terá autoridade, nem força moral necessárias para ligar as Almas. Alguns supõem ver no afastamento da ideia de Deus uma aproveitável medida ao Espiritismo. Por nossa parte, diremos que é a insuficiência atual desta noção e, ao mesmo tempo, a insuficiência dos nobres sentimentos e das altas aspirações, que produzem a falta de coesão e criam as dificuldades da organização no Espiritismo.

Desde que a ideia de Deus se enfraquece numa Alma, a noção do eu, isto é, da personalidade, aumenta logo; e aumenta ao ponto de se tornar tirânica e absorvente. Uma dessas noções não cresce e se fortifica senão em detrimento da outra. Quem não adora a Deus, adora-se a si mesmo, disse um pensador.

O que é bom para os meios de experimentação espírita, é bom para a sociedade inteira. A ideia de Deus – nós o demonstramos – liga-se estreitamente à ideia de Lei, e assim à de dever e de sacrifício. A ideia de Deus liga-se a todas as noções indispensáveis à ordem, à harmonia, à elevação dos seres e das sociedades. Eis por que, logo que a ideia de Deus se enfraquece, todas essas noções se debilitam; desaparecem, pouco a pouco, para dar lugar ao personalismo, à presunção, ao ódio por toda a autoridade, por toda a direção, por toda a lei superior. E é assim que, pouco a pouco, grau a grau, se chega a esse estado social que se traduz por uma divisa célebre, que ouvimos ecoar por toda a parte: Nem Deus, nem Senhor!

Tem-se de tal modo abusado da ideia de Deus, através dos séculos; tem-se torturado, imolado, em seu nome, tantas vítimas inocentes; em nome de Deus tem-se de tal modo regado o mundo de sangue humano, que o homem moderno se desviou Dele. Tememos muito que a responsabilidade desse estado de coisas recaia sobre aqueles que fizeram, do Deus de bondade e de eterna misericórdia, um Deus de vingança e de terror. Mas, não nos compete estabelecer responsabilidades. O nosso fim é, antes, procurar um terreno de conciliação e de aproximação, em que todos os bons Espíritos se possam reunir.

Seja como for, os homens modernos, na grande maioria, já não querem suportar acima deles nem Deus, nem lei, nem constrangimento; já não querem compreender que a liberdade, sem a sabedoria e sem a razão, é impraticável. A liberdade, sem a virtude, leva à licença, e a licença conduz à corrupção, ao rebaixamento dos caracteres e das consciências, numa palavra, à anarquia. Será somente quando tivermos atravessado novas e mais rudes provas que consentiremos em refletir. Então, a verdade se fará luz e a grande palavra de Voltaire se verificará aos nossos olhos: “O ateísmo e o fanatismo são os dois polos de um mundo de confusão e de horror!” (A História de Jeni.).

É verdade que muito se fala de altruísmo, nova denominação do amor da Humanidade, e se pretende que esse sentimento deve bastar. Mas, como se fará do amor da Humanidade uma coisa vivida, realizada, quando não chegamos, não direi a amar-nos, mas somente a suportar-nos uns aos outros? Para se agruparem os sentimentos e as aspirações, é necessário um ideal poderoso. Pois bem! Esse ideal não o encontrareis no ser humano, finito, limitado; não o encontrareis nas coisas deste mundo, todas efémeras, transitórias. Ele não existe senão no Ser infinito, eterno. Somente Ele é bastante vasto para recolher, absorver todos os transportes, todas as forças, todas as aspirações da alma humana, para reconhecê-los e fecundá-los. Esse ideal é Deus!

Mas que é o ideal? É a perfeição. Deus, sendo a perfeição realizada, é ao mesmo tempo o ideal objetivo, o ideal vivo!


Léon Denis





(1) Vide as minhas obras precedentes: Cristianismo e Espiritismo, No Invisível e, ainda, Espíritos e Médiuns – tratado de Espiritismo experimental.
(2) Vide J. Maxwell, Fenômenos Psíquicos, páginas 232 a 235; Léon Denis, No Invisível, cap. XXII. Vide também Relatório de Congresso Espírita de Bruxelas, 1910, págs. 112, 124.
(3) Obtemos a prova objectiva desse facto por meio das Chapas fotográficas. No estado de prece, pelo contacto dos dedos, conseguimos impregnar as chapas de radiações muito mais activas, de eflúvios mais intensos do que no estado normal.



Fonte: Léon Denis - O Grande Enigma.pdf

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