Emmanuel - Livro Abençoa Sempre - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Cap 1 Abençoemos
Não consideres o mal por mal para que o bem não encontre embargos à precisa manifestação em momento oportuno.
A Sabedoria Divina permite que sucessos imaginariamente infelizes se nos entrosem à marcha, a fim de que, por eles, saibamos conquistar defesa e segurança.
É por isso que onde os nossos olhos costumam encontrar desventura e falência, muita vez, aparece o justo benefício, com que não contávamos, a erigir-se em socorro providencial nas sendas do futuro.
Toda perturbação valoriza a força da ordem e toda e qualquer dor ampara o reajuste.
Entretanto, em louvor da paz edificante, é preciso aprender a tudo abençoar, agradecendo aos Céus os bens e os males aparentes da vida a fim de que venhamos a convertê-los todos em luz de experiência.
Recebe, assim, o assalto e as injúrias da treva, abençoando, em silêncio, o quadro em que se expressam, porque insulto e violência apenas denunciam a ignorância, em luta, buscando aglutinar, em derredor de si, as sombras com que plasma desespero e miséria.
À maneira de fogo devorador, pretenderá naturalmente estender-se, consumindo as esperanças do caminho em que segues; contudo, se abençoas o ataque, entregando-lhe os golpes à Harmonia Divina, ele em breve extinguir-se-á, para que o bem eterno esplenda generoso.
Abençoemos, assim, todos os males do mundo, auxiliando em tudo, para que se nos transformem em benefícios, e então compreenderás, ante a luz do Evangelho, que em todo e qualquer tempo, acontece o melhor aos que amam a Deus.
Emmanuel - Livro Vida e Caminho - Espíritos Diversos / Chico Xavier - Pág. 13 - Prefácio Vida e caminho
Leitor amigo.
Caminho simbolicamente, neste mundo, significa a jornada de nossas existências inumeráveis em busca da Imortalidade.
Cada existência dentro da perenidade do Tempo e das Leis Evolutivas é um trecho da nossa longa estrada em que aprendemos, lutamos, erramos, acertamos, ou recomeçamos a aprender; encontramos alegria, seguimos adiante na base do sofrimento, passamos por dificuldades, tempestades, alegrias, esperanças, caímos, levantamo-nos, entramos em reajustes amargos quando necessário, choramos, consolamo-nos com a luz da esperança, ou detemo-nos em traumas lamentáveis da culpa; redimimo-nos sob os azorragues da dor, libertamo-nos de graves compromissos sob as lições da experiência, melhorando a nós mesmos sob as imposições do dever, mas de existência a existência estamos sempre sob o amparo de Nosso Pai de Infinita Misericórdia.
E, assim, através dos séculos encontraremos a vitória, enfim, da Vida Imperecível. Meditemos nisso e sigamos para diante sob a tutela de Jesus, o Nosso Divino Mestre, segundo as Supremas Diretrizes de Deus Nosso Pai.
Chico Xavier - Livro Chico Xavier com Você - Carlos A. Baccelli - Pág. 32
“— Diz o Evangelho que as nossas provas são um indício, não um fim… Estamos, dentro delas fazendo um vestibular de promoção espiritual ou ficamos sob determinadas dependências…
O nosso espírito tem que estar ajustado às Leis de Deus. Paciência operosa, esperança ativa não são simples palavras… Podemos estar sofrendo, estar aflitos, mas, se estamos desesperados, criando problemas para os outros com os nossos problemas nós não estaremos atravessando os nossos problemas com as nossas almas ligadas às Leis de Deus… Não estamos liberados só porque sofremos; depende de nossa atitude a vitória que desejamos alcançar. Estejamos com o nosso pensamento em Deus, com a nossa alma a doar de si, sem pensar em si… Vamos podar o sofrimento daqueles que Deus nos deu à convivência, para que eles sejam mais felizes; calar as nossas dores, pacificar o nosso próprio espírito quando tudo nos induz ao desespero (…) Existe algo que nós podemos dar sem termos: é a felicidade! Precisamos aprender a sofrer sem mostrar sofrimento, atravessar dificuldade sem colocá-la na pauta dos outros… Estamos matriculados na prova; vamos ver qual será a nota”.
Cerca de seiscentos anos antes da era Cristã, um filho de rei, Çãkyamuni ou o Buddha, foi acometido de profunda tristeza e Imensa piedade pelos sofrimentos dos homens. A corrupção invadira a Índia, logo depois de alteradas as tradições religiosas, e, em seguida, vieram os abusos da teocracia ávida do poder. Renunciando às grandezas, à vida faustosa o Buddha deixa o seu palácio e embrenha-se na floresta silenciosa Após longos anos de meditação, reaparece para levar ao mundo asiático senão uma crença nova, ao menos uma outra expressão da Lei.
Segundo o Budismo, está no desejo a causa do mal, da dor, da morte e do renascimento. É o desejo, é a paixão que nos prende às formas materiais, e que desperta em nós mil necessidades sem cessar reverdecentes e nunca saciadas tornando-se assim, outros tantos tiranos. O fim elevado da vida é arrancar a alma aos turbilhões do desejo. Consegue-se isso pela reflexão, austeridade, pelo desprendimento de todas as coisas terrenas, pelo sacrifício do eu, pela isenção do cativeiro egoísta da personalidade. A Ignorância é o mal soberano de que decorrem o sofrimento e a miséria; o principal meio para se melhorar a vida no presente e no futuro é adquirir-se o Conhecimento.
O Conhecimento compreende a ciência da natureza visível e invisível, o estudo do homem e dos princípios das coisas. Estes são absolutos e eternos. O mundo, saído por sua própria atividade de um estado uniforme, está numa evolução continua. Os seres, descidos do Grande-Todo a fim de operarem o problema da Perfeição, Inseparável do estado de liberdade e, por conseguinte, do movimento e do progresso, tendem sempre a voltar ao Bem perfeito. Não penetram no mundo da forma senão para trabalharem no complemento da sua obra de aperfeiçoamento e elevação. Podem realizar isso pela Ciência, ou Upanishacl, e completá-lo pelo Amor, ou Purana.
A Ciência e o Amor são dois fatores essenciais do Universo. Enquanto não adquire o amor, o ser está condenado a prosseguir na série das reencarnações terrestres.
Sob a Influência de tal doutrina, o instinto egoísta vê estreitar-se pouco a pouco o seu circulo de ação. O ser aprende a abraçar num mesmo amor tudo o que vive e respira; e isto nada mais é que um dos degraus da sua evolução, pois esta deve conduzi-lo a só amar o eterno princípio de que emana todo o amor, e para onde todo ele deve necessariamente voltar. Esse estado é o do Nirvana.
Essa expressão, diversamente comentada, tem causado muitos equívocos. Em conformidade com a doutrina secreta do Budismo, o Nirvana não é, como ensina a Igreja do Sul e o Grã-Sacerdote do Ceilão, a perda da individualidade e o esvaecimento do ser no nada, mas sim a conquista, pela alma, da perfeição, e a libertação definitiva das transmigrações e dos renascimentos no seio das humanidades. Cada qual executa o seu próprio destino. A vida presente, com suas alegrias e dores, não é senão a conseqüência das boas ou más ações operadas livremente pelo ser nas existências anteriores.
O presente explica-se pelo passado, não só para o mundo tomado em seu conjunto, como também para cada um dos seres que o compõem. Designa-se por Carma toda a soma deméritos ou de deméritos adquiridos pelo ser. O Carma é para este, em todos os Instantes da sua evolução, o ponto de partida do futuro, o motor de toda a justiça distributiva:
“Em Buddha uno-me à dor de todos os meus irmãos, e entretanto sorrio e sinto-me contente porque vejo que a liberdade existe. Sabei, ó vós que sofreis; mostro-vos a verdade; tudo o que somos é resultante do que fomos no passado. Tudo é fundado sobre nossos pensamentos; tudo é obra dos próprios pensamentos. Se as palavras e ações de um homem obedecem a um pensamento puro, a liberdade segue-o como uma sombra. O ódio jamais foi apaziguado pelo ódio, pois não é vencido senão pelo amor. Assim como a chuva passa através de uma casa mal coberta, assim a paixão atravessa um espírito pouco refletido. Pela reflexão, moderação e domínio de si próprio, o homem transforma-se numa rocha que nenhuma tempestade pode abater. O homem colhe aquilo que semeou. Eis a doutrina do Carma.”
André Luiz - Livro Entre a Terra e o Céu - Chico Xavier - Cap. 6 Num lar cristão
(Sumário)
Propúnhamo-nos seguir o caso de Zulmira, não só para cooperar, a favor de suas melhoras, mas também para registrar os ensinamentos possíveis, e, solicitando o concurso de Clarêncio, dele ouvimos judiciosas ponderações.
— Sim — disse —, para auxiliar em processos dessa natureza, é preciso marchar para a frente, mas, para compreender o serviço que nos compete e avançar com segurança, é necessário voltar à retaguarda, armando-nos de lições que nos esclareçam.
Não sabíamos como interpretar-lhe a palavra, entretanto, ele mesmo nos socorreu, explicando, depois de ligeira pausa:
— Para realizarmos um estudo geral da situação, convém o contato com outras personagens do drama que se desenrola. Ser-nos-á interessante, para isso, uma visita ao pequeno Júlio, no domicílio espiritual em que estagia.
— Nas responsabilidades que esposamos, não é aconselhável indagar por indagar. Procuremos o objetivo, a utilidade e a colaboração no bem. Não nos achamos em férias e sim em trabalho ativo.
Pensou, pensou… e aduziu:
— Sei que amanhã, à noite, Eulália deve acompanhar duas de nossas irmãs encarnadas à visitação doa filhinhos que as precederam na grande viagem da morte e que se encontram no mesmo sitio em que Júlio se demora asilado. Poderemos substituir nossa cooperadora no serviço a fazer. Seguiremos em lugar dela. Prestaremos assistência às nossas amigas e examinaremos a situação da criança.
Anotando a preciosa lição de trabalho que aquelas expressões encerravam, aguardamos a noite próxima, com ansiedade Na hora aprazada, descemos à matéria densa, em busca das irmãs que seguiriam conosco.
Deixou-nos o Ministro numa casinha singela de remota região suburbana, depois de informar-nos:
— Aqui reside nossa irmã Antonina, com três dos quatro filhos que o Senhor lhe confiou. Incapaz de vencer as tentações da própria natureza, o marido abandonou-a, há quatro anos, para comprometer-se em delituosas aventuras. A dona da casa, porém, não desanimou. Trabalha com diligência numa fábrica de tecidos e educa os rebentos do lar com acendrado amor ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus. Tem sabido resgatar com valor as dívidas que trouxe do pretérito próximo. Perdeu, há, meses, o pequeno Marcos, de oito anos, atacado de fulminante pneumonia, e com ele se encontrará, depois da prece que proferirá com os pequeninos. Trarei comigo a outra companheira de nossa viagem. Quanto a vocês, auxiliem nas orações e nos estudos de Antonina, até que eu volte, de modo a seguirmos todos juntos.
Hilário e eu penetramos a sala desataviada e estreita.
Uma senhora ainda jovem, mas extremamente abatida, achava-se de pé, junto de três lindas crianças, dois rapazinhos entre onze e doze anos e uma loura pequerrucha, certamente a caçula da família que pousava na mãezinha os belos olhos azuis.
Num recanto do compartimento humilde, triste velhinho desencarnado como que se colocava à escuta.
Dona Antonina colocou sobre a toalha muito alva dois copos com água pura, tomou um exemplar do Novo Testamento e sentou-se.
Logo após, falou carinhosamente:
— Se não me falha a memória, creio que a prece de hoje deve ser feita por Lisbela.
A pequenita levou as minúsculas mãos ao rosto, apoiou graciosamente os cotovelos sobre a mesa e, cerrando os olhos, recitou:
— Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como nos Céus, o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores, não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo mal, porque vosso é o Reino, o poder e a glória para sempre. Assim seja.
Lisbela abriu os olhos, de novo, e procurou silenciosamente a aprovação maternal.
Dona Antonina sorriu, satisfeita, e exclamou:
— Você orou muito bem, minha filha.
E dividindo agora a atenção com os dois meninos, entregou o Evangelho a um deles, convidando:
— Abra, Henrique. Vejamos a mensagem cristã para os nossos estudos da noite.
O rapazinho escolheu o texto, ao acaso, restituindo o livro às mãos maternais.
A genitora, emocionada, leu os versículos vinte e um e vinte e dois do capítulo dezoito das anotações do apóstolo Mateus:
— “Então Pedro, aproximando-se dele, disse: — Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: — Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete.”
Calou-se dona Antonina, como quem aguardava a manifestação de curiosidade dos jovens aprendizes.
O pequeno Henrique, iniciando a conversação, perguntou, com simplicidade:
— Mãezinha, porque Jesus recomendava um perdão, assim tão grande?
Demonstrando vasto treinamento evangélico, a senhora replicou:
— Somos levados a crer, meus filhos, que o Divino Mestre, em nos ensinando a desculpar todas as faltas do próximo, inclinava-nos ao melhor processo de viver em paz. Quem não sabe desvencilhar-se dos dissabores da vida, não pode separar-se do mal. Uma pessoa que esteja parada em lembranças desagradáveis caminha sempre com a irritação permanente. Imaginemos vocês na escola. Se não conseguirem esquecer os pequeninos aborrecimentos nos estudos, não poderão aproveitar as lições. Hoje é um colega menos amigo a preparar lamentável brincadeira, amanhã é uma incorreção do guarda enfadado em razão de algum equívoco. Se vocês imobilizarem o pensamento na impaciência ou na revolta, poderão fazer coisa pior, afligindo a professora, desmoralizando a escola e prejudicando o próprio nome e a saúde. Uma pessoa que não sabe desculpar vive comumente isolada. Ninguém estima a companhia daqueles que somente derramam de si mesmos o vinagre da queixa ou da censura.
Nessa altura do ensinamento, dona Antonina fitou o primogênito e perguntou:
— Você, Haroldo, quando tem sede preferiria beber a água escura de um cântaro recheado de lodo?
— Ah! isso não — replicou o mocinho muito sério —, escolherei água pura, cristalina…
— Assim somos também, em se tratando de nossas necessidades espirituais. A alma que não perdoa, retendo o mal consigo, assemelha-se ao vaso cheio de lama e fel. Não é coração que possa reconfortar o nosso. Não é alguém capaz de ajudar-nos a vencer nas dificuldades da vida. Se apresentamos nossa mágoa a um companheiro dessa espécie, quase sempre nossa mágoa fica maior. Por isso mesmo, Jesus aconselhava-nos a perdoar infinitamente, para que o amor, em nosso espírito, seja como o Sol brilhando em casa limpa.
Expressivo intervalo fez-se notar.
O jovem Haroldo, de semblante apoquentado, interferiu, indagando:
— Mas a senhora crê, mãezinha, que devemos perdoar sempre?
— Como não, meu filho?
— Ainda mesmo quando a ofensa seja a pior de todas?
— Ainda assim.
E, observando-o, inquieta, dona Antonina acentuou:
— Porque tratas deste assunto com tamanha preocupação?
— Refiro-me ao papai — disse o menino algo triste —, papai abandonou-nos quando mais precisávamos dele. Seria justo esquecer o mal que nos fez?
— Oh! meu filho! — comentou a nobre mulher — não te detenhas nesse problema. Porque alimentar rancor contra o homem que te deu a vida? como condená-lo se não sabemos tudo o que lhe aconteceu? Seria realmente melhor para o nosso bem estar se ele estivesse conosco, mas, se devemos suportar a ausência dele, que os nossos melhores pensamentos o acompanhem. Teu pai, meu filho, com a permissão do Céu, deu-te o corpo em que aprendes a servir a Deus. Por esse motivo, é credor de teu maior carinho. Há serviços que não podemos pagar senão com amor. Nossa divida para com os pais é dessa natureza…
Recordando talvez que a família se achava num curso de formação cristã, a dona da casa acrescentou:
— Um dia, quando Moisés, o grande profeta, foi ao monte receber a revelação divina, uma das mais importantes determinações por ele ouvidas do Céu foi aquela em que a Eterna Bondade nos recomenda: — “Honrarás teu pai e tua mãe”. A Lei enviada ao mundo não estabelece que devamos analisar a espécie de nossos pais, mas sim que nos cabe a obrigação de honrá-los com o nosso amoroso respeito, sejam eles quais forem.
A reduzida assembleia recolhia as explicações, de olhos felizes e iluminados.
Haroldo mostrou-se conformado, todavia, ainda ponderou:
— Compreendo, mãezinha, o que a senhora quer dizer. Entretanto, se papai estivesse junto de nós, talvez que Marcos não tivesse morrido. Teríamos o dinheiro suficiente para tratá-lo.
Dona Antonina enxugou, apressada, as lágrimas que lhe caíram, espontâneas, ante a evocação do filhinho, e continuou:
— Seria um erro permitir a queda de nossa confiança no Pai Celestial. Marcos partiu ao encontro de Jesus, porque Jesus o chamava. Nada lhe faltou. Rogo a vocês não darmos curso a qualquer ideia triste, em torno da memória do anjo que nos precedeu. Nossos pensamentos acompanham no Além aqueles que amamos.
Nesse ponto da conversação, Lisbela inquiriu, graciosa:
— Mãezinha, Marcos nos vê?
— Sim, minha filha — esclareceu dona Antonina, emocionada —, ele nos ajuda em espírito, pedindo a Jesus forças e bênçãos para nós. Por nossa vez, devemos auxiliá-lo com as nossas preces e com as nossas melhores recordações.
Dona Antonina, porém, pareceu asfixiada por enormes saudades. Enquanto os meninos comentavam com interesse os ensinamentos da noite, demorava-se absorta, mentalizando a imagem do pequenino…
Quando o relógio assinalou o fim do culto, solicitou a Henrique fizesse a oração de encerramento.
O petiz repetiu a prece dominical, rogando ao Senhor abençoasse a mãezinha, e o trabalho terminou.
A dona da casa repartiu com os pequenos alguns cálices da água cristalina que Hilário e eu magnetizáramos e, logo após, pensativa e saudosa, retirou-se com os filhinhos para a câmara em que se recolheriam todos juntos.
VÍDEO: André Luiz - Entre a Terra e o Céu - Chico Xavier Capítulo 5 - Valiosos apontamentos Capítulo 6 - Num lar cristão O Espírito da Letra Apresentação André Luiz Ruiz
O Espírito da Letra - Analisando a obra de André Luiz Entre a Terra e o Céu - Psicografia de Chico Xavier
Emmanuel - Livro Ceifa de Luz - Chico Xavier - Cap. 27 Aflição e tranquilidade
“Bem-aventurados os que choram… — JESUS (Mateus, 5:5)
“Bem-aventurados os que choram”, — disse-nos o Senhor — contudo, é importante lembrar que, se existe aflição gerando tranquilidade, há muita tranquilidade gerando aflição.
No limiar do berço pede a alma dificuldades e chagas, amargores e cicatrizes, entretanto, recapitulando de novo as próprias experiências no Plano Físico, torna à concha obscura do egoísmo e da vaidade, enquistando-se na mentira e na delinquência.
Aprendiz recusando a lição ou doente abominando o remédio, em quase todas as circunstâncias, o homem persegue a fuga que lhe adiará indefinidamente as realizações planejadas.
É por isso que na escola da luta vulgar vemos tantas criaturas em trincheiras de ouro, cavando abismos de insânia e flagelação, nos quais se despenham, além do campo material, e tantas inteligências primorosas engodadas na auréola fugaz do poder humano, erguendo para si próprias masmorras de pranto e envilecimento, que as esperam, inflexíveis, transposto o limite traçado na morte.
E é ainda por essa razão que vemos tantos lares, fugindo à bênção do trabalho e do sacrifício, à feição de oásis sedutores de imaginária alegria para se converterem amanhã em cubículos de desespero e desilusão, aprisionando os descuidados companheiros que os povoam em teias de loucura e desequilíbrio, na Vida Espiritual.
Valoriza a aflição de hoje, aprendendo com ela a crescer para o bem, que nos burila para a união com Deus, porque o Mestre que te propões a escutar e seguir, ao invés de facilidades no imediatismo da Terra, preferiu, para ensinar-nos a verdadeira ascensão, a humildade da Manjedoura, o imposto constante do serviço aos necessitados, a incompreensão dos contemporâneos, a indiferença dos corações mais queridos e o supremo testemunho do amor em plena cruz da morte.
André Luiz - Livro Ação e Reação - Chico Xavier - Cap. 17
Dívida expirante
Era agora num hospital, em triste pavilhão de indigentes, a nova lição que Silas nos reservava.
Ganhando o interior, diversos companheiros acolheram-nos, gentis. E, após saudações amigas, um deles, o Atendente Lago, avançou para o mentor de nossos estudos, cientificando:
— Assistente, o nosso Leo parece gastar os derradeiros recursos da resistência…
Silas agradeceu a informação e explicou que vínhamos justamente para colaborar no descanso de que se fazia credor.
E atravessando longa fila de leitos pobres, nos quais enfermos jaziam padecentes, ao pé de alguns desencarnados em trabalho assistencial, estacamos junto de um doente esquálido e angustiado.
À mortiça claridade de pequena lâmpada, destinada à vigília da noite, vimos Leo, que uma tuberculose pulmonar arrastava ao cepo da morte.
Não obstante a dispneia, mostrava o olhar calmo e lúcido, revelando perfeita conformação aos padecimentos que o conduziam ao termo da experiência.
Recomendou-nos Silas observar-lhe o corpo, entretanto, não havia muita particularidade a destacar, porquanto os pulmões quase destruídos, através de sucessivas formações cavitárias, haviam provocado tamanho abatimento orgânico, que o vaso físico sob nossos olhos não era mais que um trapo de carne, agora aberto à multiplicação de bacilos vorazes, aliados a exércitos microbianos de variada espécie, a se apinharem, dominadores, na intimidade dos tecidos, assim como inimigos implacáveis a se lhe apoderarem dos restos, senhoreando todos os postos-chaves da defensiva.
Achava-se Leo, desse modo, no veículo denso, à maneira de um homem irremediavelmente condenado à expulsão da sua própria casa.
Todos os sintomas da morte patenteavam-se, iniludíveis.
O coração fatigado assemelhava-se a motor exausto, incapaz de liquidar os problemas da circulação sanguínea, e todos os implementos da aparelhagem respiratória esmoreciam, desnorteados, sob inexorável asfixia.
Leo, moribundo, era um viajante habilitado à grande romagem, tão somente à espera do sinal de partida.
Ainda assim, estava sereno e portava-se com bravura.
Tão acentuada se lhe evidenciava a acuidade mental, que quase nos percebia a presença.
Silas, que lhe acariciava a fronte com a destra generosa, disse-nos, atencioso:
— Já que vieram para anotar um processo de dívida expirante, podem algo perguntar ao companheiro, cuja memória se revela, tanto quanto possível, consciente e vigilante.
— Ouvir-nos-á, porém? — inquiriu Hilário, entre surpreso e compungido.
— Não com os tímpanos da carne, contudo, assinalar-nos-á qualquer indagação em espírito — esclareceu o Assistente, afetuoso.
Dominado de intensa simpatia, inclinei-me sobre o irmão em rude prova, atraído pela fé que lhe abrilhantava as pupilas e, abraçando-o, indaguei, em voz alta:
— Leo amigo, reconhece-se você no limiar da vida verdadeira? Sabe que deixará o corpo em breves horas?
O interpelado, crendo raciocinar por si mesmo, registrou-me a inquirição, palavra por palavra, qual se lhe fossem transmitidas ao cérebro por fios invisíveis. E, como se conversasse a sós consigo, falou pensando:
— Oh! sim, a morte!… Sei que, provavelmente esta noite, chegarei ao justo fim…
Desdobrando o nosso diálogo, acrescentei:
— Não tem receio?
— Nada posso temer… — refletiu muito calmo.
E, movendo os olhos com esforço, buscou fitar na alva parede da enfermaria uma pequena escultura do Cristo crucificado, refletindo de si para consigo:
— Nada posso recear, em companhia do Cristo, meu Salvador… Ele também foi vilipendiado e esquecido… Terá vomitado sangue na cruz do martírio, Ele que era puro, varado pelas chagas da ingratidão… Por que não me resignar à cruz do meu leito, suportando, sem reclamar, as golfadas de sangue que de quando em quando me anunciam a morte, eu que sou pecador necessitado da complacência divina?!…
— Você é católico romano?
— Sim…
Meditei na sublimidade do sentimento cristão, vivo e sincero, seja qual for a escola religiosa em que se exprima, e prossegui, afagando-lhe o peito opresso:
— Nesta hora de tanta significação para o seu caminho, sinto a ausência de seus familiares humanos…
— Ah! meus familiares… meus afetos… — respondeu, falando mentalmente — meus pais teriam sido no mundo os meus únicos amigos… No entanto, demandaram o túmulo, quando eu era simplesmente um jovem enfermo… Separado de minha mãe, vi-me entregue aos desajustes orgânicos… Logo após, meu irmão Henrique não hesitou em declarar-me incapaz… Por direito à herança, cabiam-lhe grandes bens, contudo, prevalecendo-se do meu infortúnio o mano obteve da Justiça, com meu próprio assentimento, a documentação com que se fazia meu tutor… Bastou, porém, a consecução dessa medida, para que se transformasse para mim num verdugo cruel… Apossou-se-me de todos os recursos… Internou-me num hospício, em que amarguei longos anos de isolamento… Sofri muito… Alimentei-me com o pão recheado de fel, destinado pelo mundo aos que lhe penetram as portas como réprobos do berço, porque o desequilíbrio mental me perseguia desde a idade mais tenra… Quando algo melhorado, fui constrangido a deixar o manicômio. Recorri-lhe à porta, mas expulsou-me sem compaixão… Fiquei apavorado, vencido… Ó meu Deus, como escarnecer assim de um irmão doente e infeliz? Debalde impetrei socorro à Justiça. Legalmente, Henrique era o único senhor dos haveres de nossa casa… Envergonhado, busquei outros climas… Tentei o trabalho digno, mas apenas obtive, em meu favor, a profissão de vigia noturno, passando a rondar vasto edifício comercial, amparado por um homem caridoso, condoído de minha fome… O frio da noite, porém, encontrava-me ao desabrigo e, a breve tempo, adquiri uma febre insidiosa que passou a devorar-me devagarinho… Não sei quanto tempo estive, assim, chumbado a indefinível desânimo… Certa feita, caí fatigado sobre a poça de sangue que se me derramava da boca e criaturas piedosas me angariaram o leito em que me refugio…
— E que opinião mantém você, acerca de Henrique? Lembra-se dele com mágoa?
Qual se mergulhasse a memória em ondas de enternecimento e saudade, Leo deixou que as lágrimas se lhe entornassem dos olhos, em dolorosa quietude mental.
Em seguida, monologou por dentro:
— Pobre Henrique!… Não deverei, antes, lastimá-lo? Acaso, não deverá ele igualmente morrer? de que lhe terá valido a apropriação indébita se será também um dia alijado do corpo? por que me reportaria a perdão, se ele é mais infeliz que eu mesmo?
E, tornando a pousar os olhos na figura do Cristo, continuou:
— Jesus, escarnecido e espancado, esqueceu ofensas e deserções… Içado à cruz, não clamou contra os amigos que o haviam lançado à humilhação e ao sofrimento… Não teve uma palavra de censura para os truculentos algozes… Ao invés de incriminá-los, pedira ao Pai Celeste amorosa proteção para todos… E Jesus foi o Embaixador de Deus entre os homens… Com que direito julgarei, assim, meu próprio irmão, se eu, alma necessitada de luz, não posso penetrar os Divinos Juízos da Providência?
Aquietara-se Leo em pranto, buscando internar a mente no templo de amor da prece.
A humildade a que se recolhia tocava-me o coração.
Ergui-me de olhos úmidos.
Para sondar-lhe a grandeza dalma, não seria preciso alongar o interrogatório.
Hilário, que se mostrava comovido até às lágrimas, desistiu de qualquer consulta, apenas inquirindo ao Assistente se o agonizante estava reencarnado sob os auspícios da Mansão, ao que Silas informou, prestativo:
— Sim, Leo vive tutelado por nossa, casa. Aliás, temos algumas centenas de criaturas que, não obstante materializadas na carne, permanecem ligadas à nossa instituição pelas raízes dos débitos a que se prendem, geralmente todas elas em estágios difíceis de regeneração, porque delinquentes em reajuste. Renascem no mundo sob a guarda de nosso estabelecimento socorrista, mas naturalmente ainda enleadas, de certo modo, aos parceiros do pretérito, com cuja influência tomam contato, consolidando as qualidades morais de que necessitam, através dos conflitos interiores que podemos classificar como sendo a forja da tentação.
— Como é belo apreciar o amor paternal de Deus que a tudo atende no lugar próprio!… — clamou Hilário.
— Sem dúvida — considerou Silas, sensatamente —, a Lei de Deus determina o progresso e a dignidade para todos. Sabem vocês que, via de regra, os desencarnados que se asilam na Mansão constituem grande ajuntamento de criminosos e viciados…
E, modificando a inflexão de voz, acrescentou:
—… como eu mesmo. Ali recebemos atenção e carinho, assistência e bondade, reeducando-nos, às vezes, por muitos anos… Contudo, é imperioso observar que, recolhendo a generosidade dos benfeitores e instrutores que nos garantem aquele pouso de amor, apenas acumulamos débitos com a proteção imerecida, compromissos esses que precisamos resgatar, igualmente em serviço ao próximo. Todavia, a fim de que nos habilitemos para as tarefas do bem genuíno, é imprescindível purgar a nossa condição inferior, agravada na culpa, porquanto o conhecimento elevado, adquirido em nossa organização, vale mais como teoria nobilitante, que nos cabe substancializar na prática correspondente, para que se incorpore, em definitivo, ao nosso patrimônio moral. Eis por que, depois do aprendizado breve ou longo em nosso instituto, somos novamente internados na esfera da carne e, aí, é óbvio que, apesar de protegidos por nossos mentores, deveremos sofrer a aproximação dos antigos comparsas de nossos delitos, para demonstrar aproveitamento e assimilação do amparo recebido.
Ao nosso lado, porém, Leo contava os derradeiros minutos no veículo denso e notamos que o Assistente não desejava ausentar-se do caso dele, para que lhe guardássemos a lição.
Talvez por isso mesmo, Silas ministrou-lhe energias novas ao peito exausto, através de passes balsamizantes, falando-nos em seguida:
— Vocês ouviram as alegações mentais do companheiro que se despede…
Hilário, que ardia de curiosidade, tanto quanto eu faminto de novas elucidações, indagou, reverente:
— Em que ponto será lícito considerar a presente desencarnação de Leo como débito expirante?
Nosso interlocutor fixou expressivo gesto e informou:
— Decerto, não me reportarei à conta integral de nosso amigo, perante a Lei. Não disponho pessoalmente de recursos informativos para relacionar-lhe as dívidas e créditos no tempo. Referir-me-ei, por isso, tão somente à culpa que o atormentava, quando ingressou em nossa casa, segundo os apontamentos que lá poderemos compulsar.
O agonizante agora, de nervos asserenados pelo socorro magnético, parecia quase ouvir-nos.
Sustentando-lhe a fronte suarenta, Silas, atencioso, prosseguiu, depois de leve pausa:
— Leo enfileirou mentalmente para nós as amargas recordações dos dias recentes que tem vivido, detendo-se particularmente na enfermidade que o martiriza desde o berço, nos tormentos do hospício e na dureza de um irmão que o sentenciou à extrema penúria… Vejamos, porém, a razão das dores com que pune a si mesmo e porque mereceu a felicidade de ressarcir para sempre o débito particular, agora na pauta de nosso estudo… Em princípios do século passado, era ele filho dileto de abastados fidalgos citadinos que, desencarnados muito cedo, lhe confiaram o próprio irmão doente, o jovem Fernando, cuja existência fora marcada por incurável idiotia. Ernesto, no entanto — pois era esse o nome de nosso Leo, na existência última —, tão logo se viu sem a presença dos genitores, deu-se pressa em alijar o irmão do seu convívio, cioso do governo total sobre a avantajada fortuna, de que ambos se faziam herdeiros. Além disso, moço habituado aos saraus do seu tempo, estimava as recepções esmeradas, nas quais o palacete da família descerrava as portas brasonadas às relações elegantes, e, orgulhoso da paisagem doméstica, envergonhava-se de ombrear com o irmão, por ele proibido de comparecer aos seus ágapes sociais. Todavia, porque Fernando, mentecapto, não lhe atendesse às ordens, em razão da incapacidade de apreendê-las, providenciou gradeada prisão, ao fundo da residência, onde o rapaz enfermo foi excluído da comunidade familiar. Encarcerado e sozinho, desfrutando apenas a intimidade de alguns escravos, Fernando passou a viver engaiolado, qual se fora infeliz animal. Enquanto isso, Ernesto, casado, dava largas aos caprichos da mulher, em extensas viagens de recreio, nas quais desperdiçava seus bens, em jogatinas e extravagâncias. Depois de algum tempo, esgotado nas finanças de que podia dispor, apenas conseguiria reequilibrar-se por morte do mano irresponsável; no entanto, o jovem mentalmente enfermo dava mostras de grande fortaleza física, não obstante certa bronquite crônica que muito o incomodava. Observando-lhe o desequilíbrio respiratório, Ernesto planejou levá-lo a moléstia mais grave, na esperança de remetê-lo com rapidez ao sepulcro, recomendando aos servos que o libertassem, todas as noites, num grande pátio, em que Fernando repousasse ao relento. O moço, porém, denotava enorme resistência e, embora sofresse consecutivas crises de sua moléstia, assim exposto à intempérie, durante quase dois anos superou valorosamente a provação a que fora submetido. Entrementes, padecia Ernesto o cerco de angústia econômica sempre mais grave, que somente o quinhão amoedado de Fernando, entregue ao comando de velhos amigos, conforme a vontade paterna, poderia solucionar. Em razão disso, envilecido pela fome de ouro, certa noite liberou dois escravos delinquentes, algemados em seu domicílio, sob a condição de se exilarem para terras distantes e, após vê-los partir, sob o nevoeiro da madrugada, buscou o leito do irmão, enterrando-lhe um punhal no peito inerme… Na manhã seguinte, ante o choro dos servos, a lhe mostrarem o cadáver, fê-los admitir que os cativos fujões teriam sido os autores do crime e, inocentando-se com astúcia, entrou na posse dos bens que pertenciam ao morto, com plena aprovação dos magistrados terrestres. Foi assim que, apesar de regalada existência na carne, ao aportar no além-túmulo atravessou extensa faixa de expiações. Fernando, o irmão desditoso, com absoluta magnanimidade esqueceu-lhe as ofensas; no entanto, vergastado pelos remorsos, Ernesto entrou em comunhão com impassíveis agentes da sombra, que o fizeram presa de inomináveis torturas, por se ,recusar a segui-los nas práticas infernais. Conservando no imo dalma a lembrança da vítima, através da percussão mental do arrependimento sobre os centros perispiríticos, enlouqueceu de dor, vagueando por vários lustros, em tenebrosas paisagens, até que, recolhido à nossa instituição, foi convenientemente tratado para o reajuste preciso. Não obstante recuperado, porém, as reminiscências do crime absorviam-lhe o espírito de tal sorte que, para o retorno à marcha evolutiva normal, implorou o regresso à carne, a fim de experimentar a mesma vergonha, a mesma penúria e as mesmas provas por ele infligidas ao irmão indefeso, pacificando, desse modo, a consciência intranquila. Amparado em seus propósitos de resgate por eminentes instrutores, tornou ao campo físico, carreando na própria alma os desequilíbrios que assimilou além do sepulcro, com os quais renasceu alienado mental, como o próprio Fernando no passado recente, tendo amargado, na posição de Leo, todos os infortúnios por ele impostos ao irmão debilitado e infeliz. Ressurgiu, dessa forma, na esfera carnal, desditoso e doente. Cedo conheceu a orfandade, foi colhido de surpresa pela secura e vilania de um irmão insensato que o ilhou no ambiente sombrio de um manicômio e, para não faltar particularidade alguma ao quadro expiatório, padeceu como guarda-noturno o frio e os temporais a que expusera a vítima indefesa… Entretanto, pela humildade e paciência com que tem sabido aceitar os golpes reparadores, conquistou a felicidade de encerrar em definitivo o débito a que nos reportamos.
Porque emudecesse o orientador, preocupado em atender ao agonizante, então banhado pelo suor característico da morte, Hilário indagou:
— Assistente, como entender que o nosso companheiro está liquidando a dívida a que se refere?
— Pois não veem? — observou Silas, admirado. E, indicando a grande hemoptise que começava, ajuntou:
— Qual Fernando, que desencarnou com o tórax perfurado por lâmina assassina, Leo igualmente se despede do corpo com os pulmões em frangalhos. Contudo, pelo procedimento correto que adotou perante a Lei, atravessa o mesmo suplício, mas no leito, sem escândalos destrutivos, embora esteja vertendo o próprio sangue pela boca, tal qual sucedeu ao mano espezinhado e vencido. Cumpre-se o aresto da Justiça, apenas com a diferença de que, em vez do gládio de ferro, temos aqui batalhões de bacilos assassinos…
Talvez porque nos visse o assombro, ante a lição, ocupado embora na assistência ao moribundo, rematou com grave tom de voz:
— Quando a nossa dor não gera novas dores e nossa aflição não cria aflições naqueles que nos rodeiam, nossa dívida está em processo de encerramento. Muitas vezes, o leito de angústia entre os homens é o altar bendito em que conseguimos extinguir compromissos ominosos, pagando nossas contas, sem que o nosso resgate a ninguém mais prejudique. Quando o enfermo sabe acatar os Celestes Desígnios, entre a conformação e a humildade, traz consigo o sinal da dívida expirante…
Silas, contudo, não pôde continuar.
Leo, em oração, debatia-se nos estertores da morte.
O Assistente enlaçou-o, com carinhoso enternecimento e exorou o Amparo Divino, como se o doente desventurado lhe fosse um filho do coração.
Envolvido nas irradiações suaves da prece, Leo adormeceu, diante de nossas lágrimas.
Porque perguntássemos quanto ao motivo pelo qual não o arrebataríamos, de imediato, ao vaso cadavérico, para transportá-lo conosco à Mansão, o Assistente informou-nos, conciso:
— Não dispomos de autoridade para desligá-lo do corpo. Semelhante responsabilidade não nos compete.
E, comunicando aos vigilantes que missionários da libertação viriam, em breves horas, em socorro do companheiro que descansava, meditativo e emocionado propôs-nos regressar à Mansão.