sexta-feira, 21 de maio de 2021

Léon Denis - Livro O Problema do Ser do Destino e da Dor - Cap. 22 - O livre-arbítrio




Léon Denis - Livro O Problema do Ser do Destino e da Dor - Cap. 22 


O livre-arbítrio


A liberdade é a condição necessária da atina humana que, sem ela, não poderia construir seu destino. É em vão que os filósofos e os teólogos têm argumentado longamente a respeito desta questão. À porfia têm-na obscurecido com suas teorias e sofismas, votando a Humanidade à servidão em vez de a guiar para a luz libertadora. A noção é simples e clara. Os druidas haviam-na formulado desde os primeiros tempos de nossa História. Está expressa nas "Tríades" por estes termos: Há três unidades primitivas - Deus, a luz e a liberdade.

À primeira vista, a liberdade do homem parece muito limitada no círculo de fatalidades que o encerra: necessidades físicas, condições sociais, interesses ou instintos. Mas, considerando a questão mais de perto, vê-se que esta liberdade é sempre suficiente para permitir que a alma quebre este círculo e escape às forças opressoras.

A liberdade e a responsabilidade são correlativas no ser e aumentam com sua elevação; é a responsabilidade do homem que faz sua dignidade e moralidade. Sem ela, não seda ele mais do que um autômato, um joguete das forças ambientes: a noção de moralidade é inseparável da de liberdade.

A responsabilidade é estabelecida pelo testemunho da consciência, que nos aprova ou censura segundo a natureza de nossos atos. A sensação do remorso é uma prova mais demonstrativa que todos os argumentos filosóficos. Para todo Espírito, por pequeno que seja o seu grau de evolução, a Lei do dever brilha como um farol, através da névoa das paixões e interesses. Por isso, vemos todos os dias homens nas posições mais humildes e difíceis preferirem aceitar provações duras a se abaixarem a cometer atos indignos.

Se a liberdade humana é restrita, está pelo menos em via de perfeito desenvolvimento, porque o progresso não é outra coisa mais do que a extensão do livre-arbítrio no indivíduo e na coletividade. A luta entre a matéria e o espírito tem precisamente como objetivo libertar este último cada vez mais do jugo das forças cegas. A inteligência e a vontade chegam, pouco a pouco, a predominar sobre o que a nossos olhos representa a fatalidade. O livre-arbítrio é, pois, a expansão da personalidade e da consciência. Para sermos livres é necessário querer sê-lo e fazer esforço para vir a sê-lo, libertando-nos da escravidão da ignorância e das paixões baixas, substituindo o império das sensações e dos instintos pelo da razão.

Isto só se pode obter por uma educação e uma preparação prolongada das faculdades humanas : libertação física pela limitação dos apetites; libertação intelectual pela conquista da verdade; libertação moral pela procura da virtude. É esta a obra dos séculos. Aliás, em todos os graus de sua ascensão, na repartição dos bens e dos males da vida, ao lado da concatenação das coisas, sem prejuízo dos destinos que nosso passado nos inflige, há sempre lugar para a livre vontade do homem. 

Como conciliar nosso livre-arbítrio com a presciência divina? Perante o conhecimento antecipado que Deus tem de todas as coisas, pode-se verdadeiramente afirmar a liberdade humana? Questão complexa e árdua na aparência que fez correr rios de tinta e cuja solução é, contudo, das mais simples. Mas, o homem não gosta das coisas simples; prefere o obscuro, o complicado, e não aceita a verdade senão depois de ter esgotado todas as formas do erro.

Deus, cuja ciência infinita abrange todas as coisas, conhece a natureza de cada homem e as impulsões, as tendências, de acordo com as quais poderá determinar-se. Nós mesmos, conhecendo o caráter de uma pessoa, poderíamos facilmente prever o sentido em que, numa dada circunstância, ela decidirá, quer segundo o interesse, quer segundo o dever. Uma resolução não pode nascer de nada. Está forçosamente ligada a uma série de causas e efeitos anteriores de que deriva e que a explicam. Deus, conhecendo cada alma em suas menores particularidades, pode, pois, rigorosamente, deduzir, com certeza, do conhecimento que tem dessa atina e das condições em que ela é chamada a agir, as determinações que, livremente, ela tomará.

Notemos que não é a previsão de nossos atos que os provoca. Se Deus não pudesse prever nossas resoluções, não deixariam elas, por isso. de seguir seu livre curso.

É assim que a liberdade humana e a previdência divina conciliam-se e combinam, quando se considera o problema à luz da razão.

O círculo dentro do qual se exerce a vontade do homem, é, de mais a mais, excessivamente restrito e não pode, em caso algum, impedir a ação divina, cujos efeitos se desenrolam na imensidade sem limites. O fraco inseto, perdido num canto do jardim, não pode, desarranjando os poucos átomos ao seu alcance; lançar a perturbação na harmonia do conjunto e pôr obstáculos à obra do Divino Jardineiro.

A questão do livre-arbítrio tem uma importância capital e graves conseqüências para toda a ordem social, por sua ação e repercussão na educação, na moralidade, na justiça, na legislação, etc. Determinou duas correntes opostas de opinião - os que negam o livre-arbítrio e os que o admitem com restrição.

Os argumentos dos fatalistas e deterministas resumem-se assim: "O homem está submetido aos impulsos de sua natureza, que o dominam e obrigam a querer, a determinar-se num sentido, de preferência a outro; logo, não é livre." A escola adversa, que admite a livre vontade do homem, em face desse sistema negativo, exalta a teoria das causas indeterminadas. Seu mais ilustre representante, em nossa época, foi Ch. Renouvier.

As vistas desse filósofo foram confirmadas, mais recentemente, pelos belos trabalhos de Wundt, sobre a percepção, de Alfred Fouillée sobre a idéia-força e de Boutroux sobre a contingência da lei natural.

Os elementos que a revelação neo-espiritualista nos traz, sobre a natureza e o futuro do ser, dão à teoria do livre-arbítrio sanção definitiva. Vêm arrancar a consciência moderna à influência deletéria do materialismo e orientar o pensamento para uma concepção do destino, que terá por efeito, como dizia C. du Prel, recomeçar a vida interior da Civilização.

Até agora, tanto sob o ponto de vista teológico como determinista, a questão tinha ficado quase insolúvel. Nem doutro modo podia ser, pois que cada um daqueles sistemas partia do dado inexato de que o ser humano tem de percorrer uma única existência. A questão muda, Porém, inteiramente de aspecto se se alargar o círculo da vida e se se considerar o problema à luz que projeta a doutrina dos renascimentos. Assim, cada ser conquista a própria liberdade no decurso da evolução que tem de perfazer.

Suprida, a princípio, pelo instinto, que pouco a pouco desaparece para dar lugar à razão, nossa liberdade é muito escassa nos graus inferiores e em todo o período de nossa educação primária. Toma extensão considerável, desde que o Espírito adquire a compreensão da lei. E sempre, em todos os graus de sua ascensão, na hora das resoluções importantes, será assistido, guiado, aconselhado por Inteligências superiores, por Espíritos maiores e mais esclarecidos do que ele.

O livre-arbítrio, a livre vontade do Espírito exerce-se principalmente na hora das reencarnações. Escolhendo tal família, certo meio social, ele sabe de antemão quais são as provações que o aguardam, mas compreende, igualmente, a necessidade destas provações para desenvolver suas qualidades, curar seus defeitos, despir seus preconceitos e vícios. Estas provações podem ser também conseqüência de um passado nefasto, que é preciso reparar, e ele aceita-as com resignação e confiança, porque sabe que seus grandes irmãos do Espaço não o abandonarão nas horas difíceis.

O futuro aparece-lhe então, não em seus pormenores, mas em seus traços mais salientes, isto é, na medida em que esse futuro é a resultante de atos anteriores. Estes atos representam a parte de fatalidade ou "a predestinação" que certos homens são levados a ver em todas as vidas. São simplesmente, como vimos, efeitos ou reações de causas remotas. Na realidade, nada há de fatal e, qualquer que seja o peso das responsabilidades em que se tenha incorrido, pode-se sempre atenuar, modificar a sorte com obras de dedicação, de bondade, de caridade, por um longo sacrifício ao dever.

O problema do livre-arbítrio tem, dizíamos, grande importância sob o ponto de vista jurídico. Tendo, não obstante, em conta o direito de repressão e preservação social, é muito difícil precisar, em todos os casos que dependem dos tribunais, a extensão das responsabilidades individuais. Não é possível fazê-lo senão estabelecendo o grau de evolução dos criminosos. O neo-espiritualismo fornecer-nos-ia talvez os meios; mas, a justiça humana, pouco versada nestas matérias, continua a ser cega e imperfeita em suas decisões e sentenças.

Muitas vezes o mau, o criminoso não é, na realidade, mais do que um Espírito novo e ignorante em que a razão não teve tempo de amadurecer. "O crime, diz Duelos, é sempre o resultado dum falso juízo." Ê por isso que as penalidades infligidas deveriam ser estabelecidas de modo que obrigassem o condenado a refletir, a instruir-se, a esclarecer-se, a emendar-se. A sociedade deve corrigir com amor e não com ódio, sem o que se torna criminosa.

As almas, como demonstramos, são equivalentes em seu ponto de partida. São diferentes por seus graus infinitos de adiantamento : umas novas ; outras velhas, e, por conseguinte, diversamente desenvolvidas em moralidade e sabedoria, segundo a idade. Seria injusto pedir ao Espírito infantil méritos iguais aos que se podem esperar de um Espírito que viu e aprendeu muito. Daí uma grande diferenciação nas responsabilidades.

O Espírito só está verdadeiramente preparado para a liberdade no dia em que as leis universais, que lhe são externas, se tornem internas e conscientes pelo próprio fato de sua evolução. No dia em que ele se penetrar da lei e fizer dela a norma de suas ações, terá atingido o ponto moral em que o homem se possui, domina e governa a si mesmo.

Daí em diante já não precisará do constrangimento e da autoridade sociais para corrigir-se. E dá-se com a coletividade o que se dá com o indivíduo. Um povo só é verdadeiramente livre, digno da liberdade, se aprendeu a obedecer a essa lei interna, lei moral, eterna e universal, que não emana nem do poder de uma casta, nem da vontade das multidões, mas de um Poder mais alto. Sem a disciplina moral que cada qual deve impor a si mesmo, as liberdades não passam de um logro ; tem-se a aparência, mas não os costumes de um povo livre. A sociedade fica exposta pela violência de suas paixões, e a intensidade de seus apetites, a todas as complicações, a todas as desordens.

Tudo o que se eleva para a luz eleva-se para a liberdade. Esta se expande plena e inteira na vida superior. A alma sofre tanto mais o peso das fatalidades materiais, quanto mais atrasada e inconsciente é, tanto mais livre se torna quanto mais se eleva e aproxima do divino.

No estado de ignorância, é uma felicidade para ela estar submetida a uma direção. Mas, quando sábia e perfeita, goza da sua liberdade na luz divina.

Em tese geral, todo homem chegado ao estado de razão é livre e responsável na medida do seu adiantamento. Passo em claro os casos em que, sob o domínio de uma causa qualquer, física ou moral, doença ou obsessão, o homem perde o uso de suas faculdades. Não se pode desconhecer que o físico exerce, às vezes, grande influência sobre o moral; todavia, na luta travada entre ambos, as almas fortes triunfam sempre. Sócrates dizia que havia sentido germinar em si os instintos mais perversos e que os domara. Havia neste filósofo duas correntes de forças contrárias, uma orientada para o mal, outra para o bem. Era a última que predominava. Há também causas secretas, que muitas vezes atuam sobre nós. Às vezes a intuição vem combater o raciocínio, impulsos partidos da consciência profunda nos determinam num sentido não previsto. Não é a negação do livre-arbítrio; é a ação da alma em sua plenitude, intervindo no curso de seus destinos, ou, então, será a influência de nossos Guias invisíveis, que se exerce e nos impele no sentido do plano divino, a intervenção de uma Inteligência que, vindo de mais longe e mais alto, procura arrancar-nos às contingências inferiores e levar-nos para as cumeadas. Em todos estes casos, porém, é só nossa vontade que rejeita ou aceita e decide em última instância.

Em resumo, em vez de negar ou afirmar o livre-arbítrio, segundo a escola filosófica a que se pertença, seria mais exato dizer: "O homem é o obreiro de sua libertação." O estado completo de liberdade atinge-o no cultivo íntimo e na valorização de suas potências ocultas. Os obstáculos acumulados em seu caminho são meramente meios de o obrigar a sair da indiferença e a utilizar suas forças latentes. Todas as dificuldades materiais podem ser vencidas.

Somos todos solidários e a liberdade de cada um liga-se à liberdade dos outros.

Libertando-se das paixões e da ignorância, cada homem liberta seus semelhantes. Tudo o que contribui para dissipar as trevas da inteligência e fazer recuar o mal, torna a Humanidade mais livre, mais consciente de si mesma, de seus deveres e potências.

Elevemo-nos, pois, à consciência do nosso papel e fim, e seremos livres. Asseguraremos com os nossos esforços, ensinamentos e exemplos a vitória da vontade assim como do bem e, em vez de formarmos seres passivos, curvados ao jugo da matéria, expostos à incerteza e inércia, teremos feito almas verdadeiramente livres, soltas das cadeias da fatalidade e pairando acima do mundo pela superioridade das qualidades conquistadas.

Léon Denis











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