Léon Denis - Livro Depois da Morte - Parte 2ª - Cap. 9
O Universo e Deus
Acima dos problemas da vida e do destino levanta-se a questão de Deus.
Se estudamos as leis da Natureza, se procuramos o princípio das verdades morais que a consciência nos revela, se pesquisamos a beleza ideal em que se inspiram todas as artes, em toda parte e sempre, acima e no fundo de tudo, encontramos a ideia de um Ser superior, de um Ser necessário e perfeito, fonte eterna do Bem, do Belo e do Verdadeiro, em que se identificam a Lei, a Justiça e a suprema Razão.
O mundo físico ou moral é governado por leis, e essas leis, estabelecidas segundo um plano, denotam uma inteligência profunda das coisas por elas regidas. Não procedem de uma causa cega: o caos e o acaso não saberiam produzir a ordem e a harmonia. Também não emanam dos homens, pois que, seres passageiros, limitados no tempo e no espaço, não poderiam criar leis permanentes e universais. Para explicá-las logicamente, cumpre remontar ao Ser gerador de todas as coisas. Não se poderia conceber a inteligência sem personificá-la em um ser, mas esse ser não vem adaptar-se à cadeia dos seres. É o Pai de todos e a própria origem da vida.
Personalidade não deve ser entendida aqui no sentido de um ser com uma forma, porém, sim, como sendo o conjunto das faculdades que constituem um todo consciente. A personalidade, na mais alta acepção da palavra, é a consciência. É assim que Deus é antes a personalidade absoluta, e não um ser que tem uma forma e limites. Deus é infinito e não pode ser individualizado, isto é, separado do mundo, nem subsistir à parte.
Quanto a não se cogitar do estudo da causa primária, como inútil e incognoscível, conforme a expressão dos positivistas, perguntaremos se a um espírito sério é realmente possível comprazer-se na ignorância das leis que regulam as condições da sua existência. A indagação de Deus impõe-se, pois que ela é o estudo da grande Alma, do princípio da vida que anima o Universo e reflete-se em cada um de nós. Tudo se torna secundário quando se trata do princípio das coisas. A ideia de Deus é inseparável da ideia da Lei, principalmente da Lei moral, e sem o conhecimento desta nenhuma sociedade pode viver ou desenvolver-se. A crença em um ideal superior de justiça fortifica a consciência e sustenta o homem em suas provações. É a consolação, a esperança daqueles que sofrem, o supremo refúgio dos aflitos, dos abandonados. Como uma aurora, ela ilumina com seus brandos raios a alma dos desgraçados.
Sem dúvida, não se pode demonstrar a existência de Deus por provas diretas e sensíveis. Deus não se manifesta aos sentidos. A divindade ocultou-se em um véu misterioso, talvez para nos constranger a procurá-la, o que é o mais nobre e mais fecundo exercício da nossa faculdade de pensar, e também para nos deixar o mérito de descobri-la. Porém, existe em nós uma força, um instinto seguro que para ela nos conduz, afirmando-nos sua existência com maior autoridade do que todas as demonstrações e todas as análises.
Em todos os tempos, debaixo de todos os climas – e isto foi a razão de ser de todas as religiões –, sentiu o Espírito humano essa tendência inata que corresponde a uma necessidade do mundo: a propensão de elevar-se acima de todas as coisas móveis, perecíveis, que constituem a vida material, acima de tudo o que é vacilante, transitório e que lhe não pode dar uma completa satisfação, para só inclinar-se ao que é fixo, permanente, imutável no Universo, a alguma coisa de absoluto e de perfeito, em que identifique todas as potências intelectuais e morais, e que seja um ponto de apoio no seu caminhar avante. Acha tudo isso em Deus, pois, fora d'Ele, nada pode dar-nos essa segurança, essa certeza, essa confiança no futuro, sem as quais flutuamos à mercê da dúvida e da paixão.
Objetar-nos-ão, talvez, com o uso funesto que as religiões fizeram da ideia de Deus. Mas, que importam as formas extravagantes que os homens têm emprestado à Divindade? Para nós, mais não são que deuses quiméricos, criados pela razão débil das sociedades, essas formas poéticas, graciosas ou terríveis, apropriadas às inteligências que as conceberam. O pensamento humano, agora mais amadurecido, afastou-se dessas velhas formas; esqueceu esses fantasmas e os abusos cometidos em seu nome, a fim de se dirigir com impulso poderoso à Razão eterna, para Deus, Foco Universal da vida e do amor, em que nos sentimos viver, como o pássaro no ar ou o peixe no oceano, e por quem nos sentimos ligados a tudo o que existe, foi e será!
A ideia de que as religiões vieram de Deus apoiava-se em uma revelação pretensamente sobrenatural. Ainda hoje admitimos uma revelação das leis superiores, porém racional e progressiva, que ao nosso pensamento se patenteia pela lógica dos fatos e pelo espetáculo do mundo. Essa revelação acha-se escrita em dois livros sempre abertos perante os nossos olhos: o livro do Universo onde, em caracteres grandiosos, aparecem as obras divinas; o livro da Consciência, no qual estão gravados os preceitos da moral. As instruções dos Espíritos, colhidas em todos os pontos do globo por processos simples e naturais, não fazem mais que confirmá-la. É por meio desse duplo ensino que a razão humana se comunica, no seio da Natureza universal, com a razão divina, cujas harmonias e belezas então compreende e aprecia.
Na hora em que se estendem pela Terra o silêncio e a noite, quando tudo repousa nas moradas humanas, se erguemos os nossos olhos para o infinito dos céus, lá veremos inumeráveis luzes disseminadas. Astros radiosos, sóis flamejantes seguidos de seus cortejos de planetas rodopiam aos milhões nas profundezas. Até às mais afastadas regiões, grupos estelares desdobram-se como esteiras luminosas. Em vão, o telescópio sonda os céus, em parte alguma do Universo encontra limites; sempre mundos sucedendo a mundos, e sóis a sóis; sempre legiões de astros multiplicando-se, a ponto de se confundirem em poeira brilhante nos abismos infindáveis do espaço.
Quais as expressões humanas que vos poderiam descrever os maravilhosos diamantes do escrínio celeste? Sirius, vinte vezes maior que o nosso Sol, e este, a seu turno, equivalendo a mais de um milhão de globos terrestres reunidos; Aldebaran, Vega, Prócion, sóis rosados, azuis, escarlates, astros de opala e de safira, sóis que derramais pela extensão os vossos raios multicores, raios que, apesar de uma velocidade de setenta mil léguas por segundo, a nós só chegam depois de centenas e de milhares de anos! E vós, nebulosas longínquas, que produzis sóis, Universos em formação, cintilantes estrelas, apenas perceptíveis, que sois focos gigantescos de calor, luz, eletricidade e vida, mundos brilhantes, esferas imensas, e vós, povos inumeráveis, raças, humanidades siderais que os habitais! Nossa fraca voz tenta, em vão, proclamar a vossa majestade, o vosso esplendor; impotente, ela se cala, enquanto nosso olhar fascinado contempla o desfilar dos astros!
Mas, quando esse olhar abandona os vertiginosos espaços para repousar sobre os mundos vizinhos da Terra, sobre as esferas filhas do Sol, que, como a nossa, gravitam em torno do foco comum, que se observa em sua superfície? Continentes e mares, montes e bancos de gelo acumulados em redor dos pólos. Observamos que esses mundos possuem ar, água, calor, luz, estações, climas, dias, noites, em uma palavra, todas as condições da vida terrestre que nos permitem presumir neles a morada de outras famílias humanas, crer que são habitados, o têm sido, ou o serão em algum dia. Tudo isto, astros resplandecentes, centros de sistemas, planetas secundários, satélites, cometas vagabundos, está suspenso no espaço, agita-se, afasta-se, percorre órbitas determinadas e é levado em rapidez espantosa através das regiões infinitas da imensidade. Por toda parte, o movimento, a atividade e a vida manifestam-se no espetáculo do Universo, povoado de mundos inumeráveis, rolando sem repouso na profundeza dos céus!
Uma lei regula essa circulação formidável: a lei universal da gravitação. Só por si, sustém e faz mover os corpos celestes; ela, só, dirige em torno dos sóis luminosos os planetas obedientes. E essa lei rege tudo na Natureza, desde o átomo até o astro. A mesma força que, sob o nome de atração, retém os mundos em suas órbitas, também, sob o de coesão, grupa as moléculas e preside à formação dos corpos químicos.
Se, depois desse rápido olhar lançado sobre os céus, compararmos a Terra em que habitamos aos poderosos sóis que se baloiçam no éter, esta, ao pé deles, apenas nos aparecerá como um grão de areia, como um átomo flutuando no infinito. A Terra é um dos menores astros do céu. Entretanto, que harmonia em sua forma, que variedade em seus ornatos! Vede seus continentes recortados; suas penínsulas esguias e engrinaldadas de ilhas; vede seus mares imponentes, seus lagos, suas florestas e seus vegetais, desde o cedro que coroa o cimo das montanhas até a humilde florzinha oculta na verdura; enumerai os seres vivos que a povoam; aves, insetos e plantas, e reconhecereis que cada uma destas coisas é uma obra admirável, uma maravilha de arte e de precisão.
E o corpo humano não é um laboratório vivo, um instrumento cujo mecanismo chega à perfeição? Estudemos nele a circulação do sangue, esse conjunto de válvulas semelhantes às de uma máquina a vapor. Examinemos a estrutura dos olhos, esse aparelho tão complicado que excede tudo o que a indústria do homem pode sonhar; a construção dos ouvidos, tão admiravelmente dispostos para recolher as ondas sonoras; o cérebro, cujas circunvoluções internas se assemelham ao desabrochamento de uma flor. Consideremos tudo isso; depois, deixando o mundo visível, desçamos mais baixo na escala dos seres, penetremos nesses abismos da vida que o microscópio revela-nos; observemos esse formigar de raças e de espécies que confundem o pensamento. Cada gota d’água, cada grão de poeira é um mundo no qual os infinitamente pequenos são governados por leis tão exatas quanto as dos gigantes do espaço. Milhões de infusórios agitam-se nas gotas do nosso sangue, nas células dos corpos organizados. A asa da mosca e o menor átomo de matéria são povoados por legiões de parasitas. E todos esses animálculos são providos de aparelhos de movimento, de sistemas nervosos e de órgãos de sensibilidade que os fazem seres completos, armados para a luta e para as necessidades da existência. Até no seio do oceano, nas profundezas de oito mil metros, vivem seres delicados, débeis, fosforescentes, que fabricam luz e têm olhos para vê-la. Assim, em todos os meios imagináveis, uma fecundidade ilimitada preside à formação dos seres. A Natureza está em geração perpétua. Assim como a espiga se acha em germe no grão, o carvalho na bolota, a rosa em seu botão, assim também a gênese dos mundos elabora-se na profundeza dos céus estrelados. Por toda parte a vida engendra a vida. De degrau em degrau, de espécies em espécies, num encadeamento, ela eleva-se dos organismos mais simples, os mais elementares, até ao ser pensante e consciente; em uma palavra, até ao homem.
Uma poderosa unidade rege o mundo. Uma só substância, o éter ou fluido universal, constitui em suas transformações infinitas a inumerável variedade dos corpos. Esse elemento vibra sob a ação das forças cósmicas. Conforme a velocidade e o número dessas vibrações, assim se produz o calor, a luz, a eletricidade ou o fluido magnético. Condensem-se tais vibrações e logo os corpos aparecerão.
E todas essas formas se ligam, todas essas forças se equilibram, consorciam-se em perpétuas trocas, numa estreita solidariedade. Do mineral à planta, da planta ao animal e ao homem, do homem aos seres superiores, a apuração da matéria, a ascensão da força e do pensamento produzem-se em ritmo harmonioso. Uma lei soberana regula num plano uniforme as manifestações da vida, enquanto um laço invisível une todos os Universos e todas as almas.
Do trabalho dos seres e das coisas depreende-se uma aspiração para o infinito, para o perfeito. Todos os efeitos divergentes na aparência convergem realmente para um mesmo centro, todos os fins coordenam-se, formam um conjunto, evoluem para um mesmo alvo. E esse alvo é Deus, centro de toda a atividade, fim derradeiro de todo o pensamento e de todo o amor.
O estudo da Natureza mostra-nos, em todos os lugares, a ação de uma vontade oculta. Por toda parte a matéria obedece a uma força que a domina, organiza e dirige. Todas as forças cósmicas reduzem-se ao movimento e o movimento é o Ser, é a Vida. O materialismo explica a formação do mundo pela dança cega e aproximação fortuita dos átomos. Mas viu-se alguma vez o arremesso ao acaso das letras do alfabeto produzir um poema? E que poema o da vida universal! Já se viu, de alguma sorte, um amálgama de matérias produzir, por si mesmo, um edifício de proporções imponentes, ou um maquinismo de rodas numerosas e complicadas? Entregue a si mesma, nada pode a matéria. Inconscientes e cegos, os átomos não poderiam tender a um fim. Só se explica a harmonia do mundo pela intervenção de uma vontade. É pela ação das forças sobre a matéria, pela existência de leis sábias e profundas, que tal vontade se manifesta na ordem do Universo.
Objetam muitas vezes que nem tudo na Natureza é harmônico. Se produz maravilhas, dizem, cria também monstros. Por toda parte o mal ladeia o bem. Se a lenta evolução das coisas parece preparar o mundo para tornar-se o teatro da vida, cumpre não perder de vista o desperdício das existências e a luta ardente dos seres. Cumpre não esquecer que tempestades, tremores de terra, erupções vulcânicas desolam algumas vezes a Terra e destroem, em poucos momentos, os trabalhos de várias gerações.
Sim, sem dúvida, há acidentes na obra da Natureza, mas tais acidentes não excluem a ideia da ordem e de um desígnio; ao contrário, apoiam a nossa tese, pois poderíamos perguntar por que nem tudo é acidente.
A apropriação das causas aos efeitos, dos meios aos fins, dos órgãos entre si, sua adaptação às circunstâncias, às condições da vida são manifestas. A indústria da Natureza, análoga em bastantes pontos e superior à do homem, prova a existência de um plano, e a atividade dos elementos que concorrem para a sua realização denota uma causa oculta, infinitamente sábia e poderosa.
A objeção sobre o fato de existirem monstros provém de uma falta de observação. Estes mais não são que germes desviados. Se, ao sair, um homem quebra uma perna, torna-se por isso responsável a Natureza ou Deus? Assim também, em consequência de acidente, de desordens sucedidas durante a gestação, os germes podem sofrer desvio no útero materno. Estamos habituados a datar a vida desde o nascimento, desde a aparição à luz, e, entretanto, ela tem o seu ponto de partida muito mais longe.
O argumento arrancado à existência dos flagelos tem por origem uma falsa interpretação do alvo da vida. Não deve esta trazer-nos somente vantagens; é útil, é necessário que nos apresente também dificuldades, obstáculos. Todos nós nascemos e devemos morrer, e, no entanto, admiramo-nos de que certos homens morram por acidente! Seres passageiros neste mundo, de onde nada levamos para além, lamentamo-nos pela perda de bens materiais, de bens que, por si só, se teriam perdido em virtude das leis naturais! Esses acontecimentos espantosos, essas catástrofes, esses flagelos trazem consigo um ensino. Lembram que da Natureza não devemos só esperar coisas agradáveis, mas, principalmente, coisas propícias à nossa educação e ao nosso adiantamento; que não estamos neste mundo para gozar e adormecer na quietação, mas para lutar, trabalhar, combater. Demonstram que o homem não foi feito unicamente para a Terra, que deve olhar mais alto, dar-se às coisas materiais em justos termos e refletir que seu ser não se destrói com a morte.
A doutrina da evolução não exclui a das causas primárias e das causas finais. A alta idéia que se pode fazer de um ordenador é supô-lo formando um mundo capaz de se desenvolver por suas próprias forças, e não por uma intervenção incessante, por contínuos milagres.
A Ciência, à proporção que se adianta no conhecimento da Natureza, tem conseguido fazer recuar a ideia de Deus, mas esta se engrandece, recuando. O Ser eterno, do ponto de vista teórico, tornou-se tão majestoso como o Deus fantástico da Bíblia. O que a Ciência derruiu para sempre foi a noção de um Deus antropomorfo, feito à imagem do homem, e exterior ao mundo físico. Porém, a essa noção veio substituir uma outra mais elevada, a de Deus, imanente, sempre presente no seio das coisas. Para nós, a ideia de Deus não mais exprime hoje a de um ser qualquer, porém, sim, a do Ser que contém todos os seres.
O Universo não é mais essa criação [75], essa obra tirada do nada de que falam as religiões. É um organismo imenso animado de vida eterna. Assim como o nosso corpo é dirigido por uma vontade central que governa os seus atos e regula os seus movimentos, do mesmo modo que através das modificações da carne nos sentimos viver em uma unidade permanente a que chamamos Alma, Consciência, Eu, assim também o Universo, debaixo de suas formas cambiantes, variadas, múltiplas, reflete-se, conhece-se, possui-se em uma Unidade viva, em uma Razão consciente, que é Deus.
O Ser supremo não existe fora do mundo, porque este é a sua parte integrante e essencial. Ele é a Unidade central onde vão desabrochar e harmonizar-se todas as relações. É o princípio de solidariedade e de amor, pelo qual todos os seres são irmãos. É o foco de onde se irradiam e se espalham no infinito todas as potências morais: a Sabedoria, a Justiça e a Bondade.
Não há, portanto, criação espontânea, miraculosa; a criação é contínua, sem começo nem fim. O Universo sempre existiu; possui em si o seu princípio de força, de movimento. Traz consigo seu fito. O Universo renova-se incessantemente em suas partes; no conjunto, é eterno. Tudo se transforma, tudo evolui pelo jogo contínuo da vida e da morte, mas nada perece. Enquanto, nos céus, se obscurecem e se extinguem sóis, enquanto mundos envelhecidos desagregam-se e desfazem-se, em outros pontos, sistemas novos elaboram-se, astros se acendem e mundos vêm à luz. De par com a decrepitude e com a morte, humanidades novas desabrocham em eterno renovar.
E, através dos tempos sem-fim e dos espaços sem limites, a obra grandiosa prossegue pelo trabalho de todos os seres, solidários uns com os outros, e em proveito de cada um. O Universo oferece-nos o espetáculo de uma evolução incessante, para a qual todos concorrem, da qual todos participam. A essa obra gigantesca preside um princípio imutável. É a Unidade universal, unidade divina, que abraça, liga, dirige todas as individualidades, todas as atividades particulares, fazendo-as convergir para um fim comum, que é a Perfeição na plenitude da existência.[76]
Ao mesmo tempo em que as leis do mundo físico mostram-nos a ação de um sublime ordenador, as leis morais, por intermédio da consciência e da razão, falam-nos eloquentemente de um princípio de justiça, de uma providência universal.
O espetáculo da Natureza, o aspecto dos céus, das montanhas, dos mares, apresentam ao nosso espírito a ideia de um Deus oculto no Universo.
A consciência mostra-o em nós, ou, antes, dá-nos alguma coisa dele, que é o sentimento do Dever e do Bem; é um ideal moral para onde tendem as faculdades do espírito e do coração. O dever ordena imperiosamente, impõe-se; sua voz domina todas as potências da alma. Possui uma força que impele os homens até ao sacrifício, até à morte. Por si só, dá à existência sua grandeza e sua dignidade. A voz da consciência é a manifestação em nós de uma Potência superior à matéria, de uma Realidade viva e ativa.
A razão igualmente nos fala de Deus. Os sentidos fazem-nos conhecer o mundo material, o mundo dos efeitos; a razão revela-nos o mundo das causas. A razão é superior à experiência. Esta verifica os fatos, a razão agrupa-os e deduz as suas leis. Por si só, demonstra que, na origem do movimento e da vida, se acha a inteligência; que o menor não pode conter o maior, nem o inconsciente produzir o consciente, fato este que, entretanto, resultaria da concepção de um universo que se ignorasse a si mesmo. A razão descobriu as leis universais antes da experiência; o que esta fez foi tão-somente confirmar as suas previsões e fornecer as provas. Porém, há graus na razão; ela não é igualmente desenvolvida em todos os homens. Daí a desproporção e a variedade de opiniões.
Se o homem soubesse recolher-se e estudar a si próprio, se sua alma desviasse toda a sombra que as paixões acumulam, se, rasgando o espesso véu em que o envolvem os preconceitos, a ignorância, os sofismas, descesse ao fundo da sua consciência e da sua razão, acharia aí o princípio de uma vida interior oposta inteiramente à vida externa. Poderia, então, entrar em relação com a Natureza inteira, com o Universo e Deus, e essa vida lhe daria um antegozo daquela que lhe reservam o futuro de além túmulo e os mundos superiores. Aí também está o registro misterioso em que todos os seus atos, bons ou maus, ficam inscritos, em que todos os fatos de sua vida se gravam em caracteres indeléveis, para reaparecerem à hora da morte, como brilhante clarão.
Algumas vezes, uma voz poderosa, um canto grave e severo ergue-se dessas profundezas do ser, retumba no meio das ocupações frívolas e dos cuidados da nossa vida, a fim de chamar-nos ao dever. Infeliz daquele que recusa ouvi-la! Chegará o tempo em que o remorso ardente lhe ensinará que não se repelem impunemente as advertências da consciência.
Sim, há em cada um de nós fontes ocultas de onde podem brotar ondas de vida e de amor, virtudes, potências inumeráveis. É aí, é nesse santuário íntimo que cumpre procurar Deus. Deus está em nós, ou, pelo menos, há em nós um reflexo d'Ele. Ora, o que não existe não poderia ser refletido. As almas refletem Deus como as gotas do orvalho da manhã refletem os fogos do Sol, cada qual segundo o seu brilho e grau de pureza.
É por essa refração, por essa percepção interna, e não pela experiência dos sentidos, que os homens de gênio, os grandes missionários, os profetas conheceram Deus e suas leis, e revelaram-nas aos povos da Terra.
Pode-se levar mais longe do que temos feito a definição de Deus? Definir é limitar. Em face deste grande problema, a fraqueza humana aparece. Deus impõe-se ao nosso espírito, porém escapa a toda análise. O Ser que enche o tempo e o espaço não será jamais medido por seres limitados pelo tempo e pelo espaço. Querer definir Deus seria circunscrevê-lo e quase negá-lo.
As causas secundárias da vida se explicam, mas a causa primária permanece inacessível em sua imensidade. Só chegaremos a compreendê-la depois de termos atravessado a morte bastantes vezes.
Para resumir, tanto quanto podemos, tudo o que pensamos referente a Deus, diremos que Ele é a Vida, a Razão, a Consciência em sua plenitude. É a causa eternamente operante de tudo o que existe. É a comunhão universal onde cada ser vai sorver a existência, a fim de, em seguida, concorrer, na medida de suas faculdades crescentes e de sua elevação, para a harmonia do conjunto.
Eis-nos bem longe do Deus das religiões, do Deus “forte e cioso” que se cerca de coriscos, reclama vítimas sangrentas e pune os réprobos por toda a eternidade. Os deuses antropomórficos passaram. Fala-se ainda muito de um Deus a quem são atribuídas as fraquezas e as paixões humanas, porém esse Deus vê todos os dias diminuir o seu império.
Até aqui o homem só viu Deus através de seu próprio ser, e a ideia que dele fez variava segundo o contemplava por uma ou outra de suas faculdades. Considerado pelo prisma dos sentidos, Deus é múltiplo; todas as forças da Natureza são deuses; assim nasceu o Politeísmo. Visto pela inteligência, Deus é duplo: espírito e matéria; daí o Dualismo. À razão esclarecida ele aparece triplo: alma, espírito e corpo. Esta concepção deu nascimento às religiões trinitárias da Índia e ao Cristianismo. Percebido pela vontade, faculdade soberana que resume todas as outras, compreendido pela intuição íntima, que é uma propriedade adquirida lentamente, assim como todas as faculdades do gênio, Deus é Uno e Absoluto. Nele se ligam os três princípios constitutivos do Universo para formarem uma Unidade viva.
Assim se explica a diversidade das religiões e dos sistemas, tanto mais elevados quanto têm sido concebidos por espíritos mais puros e mais esclarecidos. Quando se consideram as coisas por cima, as oposições de ideias, as religiões e os fatos históricos se explicam e se reconciliam numa síntese superior.
A ideia de Deus, debaixo das formas diversas em que o têm revestido, evolve entre dois escolhos nos quais esbarraram numerosos sistemas. Um é o Panteísmo, que conclui pela absorção final dos seres no grande Todo. Outro é a noção do infinito, que do homem afasta Deus, e por tal sorte que até parece suprimir toda a relação entre ambos.
A noção do infinito foi combatida por certos filósofos. Embora incompreensível, não se poderia abandoná-la, porque reaparece em todas as coisas. Por exemplo: que há de mais sólido do que o edifício das ciências exatas? O número é a sua base. Sem o número não há matemáticas. Ora, é impossível, decorressem mesmo séculos, encontrar o número que exprima a infinidade dos números cuja existência o pensamento nos demonstra. O número é infinito; o mesmo sucede com o tempo e com o espaço. Além dos limites do mundo invisível, o pensamento procura outros limites que incessantemente se furtam à sua apreensão.
Uma só filosofia parece ter evitado esse duplo escolho e conseguido aliar princípios opostos na aparência. É a dos druidas gauleses. Assim se exprimiam na tríade 48:[77]
“Três necessidades de Deus: ser infinito em si mesmo, ser finito para com o finito, e estar em relação com cada estado das existências no círculo dos mundos.”
Assim, conforme este ensino, ao mesmo tempo simples e racional, o Ser infinito e Absoluto, por si próprio, faz-se relativo e finito com as suas criaturas, desvendando-se sem cessar sob aspectos novos, na medida do adiantamento e elevação das almas. Deus está em relação com todos os seres. Penetra-os com o seu espírito, abraça-os com o seu amor, para uni-los em um laço comum e assim auxiliá-los a realizar seus intentos nobres.
Sua revelação, ou, antes, a educação que Ele dá às humanidades faz-se gradual e progressivamente pelo ministério dos grandes Espíritos. A intervenção providencial está registrada na História por aparições em tempos prescritos, no seio dessas humanidades, pelas manifestações de almas eleitas, encarregadas de introduzirem nelas as inovações, as descobertas que acelerarão os seus progressos, ou de ensinar os princípios de ordem moral necessários à regeneração das sociedades.
O druidismo, em vez da teoria da absorção final dos seres em Deus, tinha a do ceugant, círculo superior que encerrava todos os outros, morada exclusiva do Ser divino. A evolução e o progresso das almas, prosseguindo infinitamente, não podiam ter fim.
Voltemos ao problema do mal, de que só incidentemente tratamos, e que a tantos pensadores tem preocupado. Por que Deus, causa primária de tudo quanto existe, perguntam os cépticos, permite que no Universo subsista o mal?
Vimos que o mal físico, ou o que é considerado tal, em realidade não é mais que uma ordem de fenômenos naturais. O caráter maléfico destes ficou explicado desde que foi conhecida a verdadeira origem das coisas. A erupção de um vulcão não é mais extraordinária que a ebulição de um vaso cheio d’água. O raio que derriba edifícios e árvores é da mesma natureza que a centelha elétrica, veículo do nosso pensamento. Outro tanto sucede com qualquer fenômeno violento. Resta a dor física. Mas sabe-se que ela é a conseqüência da sensibilidade, e isso é já um magnífico conhecimento conquistado pelo ser depois de longos períodos que passou nas formas inferiores da vida. A dor é uma advertência necessária, um estimulante à vontade do homem, pois nos obriga a concentrarmos para refletir e força-nos a domar as paixões. A dor é o caminho do aperfeiçoamento.
Porém, o mal moral, dirão, o vicio, o crime, a ignorância, a vitória do mau e o infortúnio do justo, como explicá-los? Primeiramente, em que ponto de vista se coloca quem pretende julgar estas coisas? Se o homem não vê senão uma partícula do mundo em que habita, se só considera a sua curta passagem pela Terra, como poderá conhecer a ordem eterna e universal? Para avaliar o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto cumpre nos elevarmos acima dos estreitos limites da vida atual e considerar o conjunto dos nossos destinos. Então o mal aparece tal como é, como um estado transitório inerente ao nosso mundo, como uma das fases inferiores da evolução dos seres para o Bem. Não é em nosso mundo nem em nossa época que se deve procurar o ideal perfeito, mas na imensidade dos mundos e na eternidade dos tempos.
Entretanto, se seguirmos o aperfeiçoamento contínuo das condições vitais do planeta, a lenta evolução das espécies e das raças através das idades; se considerarmos o homem dos tempos pré-históricos, o antropóide das cavernas, com instintos ferozes, e as condições de sua vida miserável, e se compararmos depois esse ponto de partida com os resultados obtidos pela civilização atual, veremos claramente a tendência constante dos seres e das coisas para um ideal de perfeição. A própria evidência, mostrando-nos que a vida sempre se melhora, se transforma e se enriquece, que o montante do bem aumenta sem cessar e que o dos males diminui, obriga-nos a reconhecer esse encaminhamento gradual das humanidades para o melhor.
Mesmo pondo em linha de conta os tempos de parada e, algumas vezes, até os retrocessos nesse grande movimento, ninguém deve esquecer que o homem é livre e pode dirigir-se à vontade num sentido ou em outro, não sendo possível o seu aperfeiçoamento senão quando a vontade está de acordo com a lei.
O mal, oposição à lei divina, não pode ser obra de Deus; é, portanto, obra do homem, a consequência da sua liberdade. Porém o mal, como a sombra, não tem existência real; é, antes, um efeito de contraste. As trevas se dissipam diante da luz; assim também o mal se evapora logo que o bem aparece. Em uma palavra, o mal é a ausência do bem.
Diz-se algumas vezes que Deus bem poderia ter criado as almas perfeitas, para assim lhes poupar as vicissitudes e os males da vida terrestre. Sem nos ocuparmos de saber se Deus poderia formar seres semelhantes a si, responderemos que, se assim fosse, a vida e a atividade universais, a variedade, o trabalho, o progresso não mais teriam um fito e o mundo ficaria preso em sua imóvel perfeição. Ora, a magnífica evolução dos seres através dos tempos, a atividade das almas e dos mundos, elevando-se para o Absoluto, não é preferível a um repouso insípido e eterno? Um bem que não se tem merecido nem conquistado será mesmo um bem? E aquele que o obtivesse sem esforço poderia ao menos apreciar o seu valor?
Diante da vasta perspectiva de nossas existências, cada uma das quais é um combate para a luz, diante dessa ascensão prodigiosa do ser, elevando-se de círculos em círculos para o Perfeito, o problema do mal desaparece.
Sair das baixas regiões da matéria e ascender todos os degraus da imensa hierarquia dos Espíritos, libertar-se do jugo das paixões e conquistar uma a uma todas as virtudes, todas as ciências, tal é o fim para o qual a Providência formou as almas e dispôs os mundos, teatros predestinados a lutas e trabalhos.
Acreditemos nela e bendigamo-la! Acreditemos nessa Providência generosa, que tudo fez para o nosso bem; lembremo-nos de que, se parecem existir lacunas em sua obra, essas só provêm da nossa ignorância e da insuficiência da nossa razão. Acreditemos em Deus, grande espírito da Justiça no Universo. Tenhamos confiança em sua sabedoria, que reserva compensações a todos os sofrimentos, alegria a todas as dores, e avancemos de coração firme para os destinos que Ele nos escolheu.
É belo, é consolador e doce poder caminhar na vida com a fronte levantada para os céus, sabendo que, mesmo nas tempestades, no seio das mais cruéis provas, no fundo dos cárceres, como à beira dos abismos, uma Providência, uma lei divina paira sobre nós, rege os nossos atos, e que, de nossas lutas, de nossas torturas, de nossas lágrimas, fez sair a nossa própria glória e a nossa felicidade. É aí, nesses pensamentos, que está toda a força do homem de bem!
Léon Denis
(75) Segundo Eugène Nus (“A la Recherche des DestlnéeS”, capítulo XI), o verbo hebreu que traduzimos pela palavra criar significa fazer passar do princípio à essência.
(76) Ele é Um, criação de si próprio, donde todas as coisas sairam; ele está nelas e as desenvolve; nenhum mortal jamais o viu, mas ele a todos observa. (Hinos Õrficos.)
(77) “Triades Bardiques”, por Cyfrmnach Belrdd Inys Pryddaln.
Fonte: Depois da Morte -pdf
VÍDEO:
Léon Denis - Depois da Morte - Cap. 9 - O Universo e Deus
Apresentação Artur Valadares
Depois da Morte #15 - [Parte 2ª - Cap. 9] (1) - O universo e Deus
Depois da Morte #16 - [Parte 2ª - Cap. 9] (2) - O universo e Deus
Depois da Morte #17 - [Parte 2ª - Cap. 9] (3) - O universo e Deus
Depois da Morte #18 - [Parte 2ª - Cap. 9] (4) - O universo e Deus
Série de estudos, com Artur Valadares, da obra "Depois da Morte", de Léon Denis.
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