André Luiz - Livro Entre a Terra e o Céu - Chico Xavier - Cap. 33
Aprendizado
Amaro e a família, coadjuvados por alguns vizinhos, amortalhavam a forma hirta do menino, quando rumamos de volta ao Lar da Bênção.
Notei que Júlio, asilado nos braços de Odila, se mostrava aliviado e tranquilo, como nunca o vira até então.
Enquanto as nossas irmãs permutavam ideias, com respeito ao futuro, indaguei do orientador, acerca da serenidade que felicitava agora o pequenino.
Clarêncio informou, prestimoso:
— Júlio reajustou-se para a continuação regular da luta evolutiva que lhe compete. O renascimento malogrado não teve para ele tão somente a significação expiatória, necessária ao Espírito que deserta do aprendizado, mas também o efeito de um remédio curativo.
A permanência no campo físico funcionou como recurso de eliminação da ferida que trazia nos delicados tecidos da alma. A carne, em muitos casos, é assim como um filtro que retém as impurezas do corpo perispiritual, liberando-o de certos males nela adquiridos.
— Isso quer dizer…
O Ministro, porém, cortou-me a palavra, acentuando:
— Isso quer dizer que Júlio doravante poderá exteriorizar-se num corpo sadio, conquistando merecimento para obter uma reencarnação devidamente planejada, com elevados objetivos de serviço. Terá, por alguns meses conosco, desenvolvimento natural, regressando à Terra, em elogiáveis condições de harmonia consigo mesmo.
— Mas voltará, assim, em tão pouco tempo? — Perguntei, admirado.
— Esperamos que assim seja. Deve atender ao crescimento de qualidades nobres para a vida eterna que somente o retorno à escola da carne poderá facilitar. Além disso, precisa conviver com Amaro, Zulmira e Silva, de maneira a confraternizar-se realmente com eles, segundo o amor puro que o Cristo nos ensinou.
— Essas anotações, — ponderei, — lançam nova claridade em nosso estudo da vida. Compreendemos, assim, que as moléstias complicadas e longas guardam função específica. Os aleijões de nascença, o mongolismo, a paralisia…
— Sim, — confirmou o orientador, — por vezes é tão grande a incursão da alma nas regiões de desequilíbrio, que mais extensa se faz para ela a viagem de volta à normalidade.
Sorrindo, acrescentou:
— O tempo de inferno restaurador corresponde ao tempo de culpa deliberada. Em muitas fases de nossa evolução, somos imantados às teias da carne, que sempre nos reflete a individualidade intrínseca, assim como a argila é conduzida ao calor da cerâmica ou como o metal impuro é arrojado ao cadinho fervente. A depuração exige esforço, sacrifício, paciência…
Ante nosso olhar deslumbrado, tingira-se o horizonte de cores variegadas, anunciando o Sol que parecia nascer num mar de luz e ouro.
Muito longe, esmaeciam as estrelas, e, perto de nós, nuvens leves caminhavam apressadas, tangidas pelo vento.
Contemplando a imensidão, Clarêncio considerou:
— Quando nosso Espírito apreende alguma nesga da glória universal, desperta para as mais sublimes esperanças. Sonha com o acesso às Esferas divinas, suspira pelo reencontro com amores santificados que o esperam em vanguardas distantes, aceitando, então, duros trabalhos de reajuste.
Que representam, em verdade, para nós, alguns decênios de renunciação na Terra, em confronto com a excelsitude dos séculos de felicidade em mundos de sabedoria e trabalho enaltecedor?!…
— Ah! Se os homens percebessem!… — Obtemperei, lembrando a rebelião que tantas vezes nos prejudica no mundo.
— Entenderão algum dia, — objetou Clarêncio, otimista; — todos os seres progridem e avançam para Deus. O homem terrestre crescerá para o grande entendimento e louvará, feliz, o concurso da dor.
O embrião do jequitibá, com os anos, se converte em tronco vetusto, rico de beleza e utilidade, e o Espírito, com os milênios, transforma-se em gênio soberano, coroado de amor e sabedoria.
Depois de um minuto de silenciosa adoração à Natureza, o instrutor continuou:
— Volvendo ao caso de Júlio, não podemos olvidar que milhares de Inteligências, entre o berço e o túmulo, estão procurando a própria recuperação.
À medida que se nos aclara a consciência e se nos engrandece a noção de responsabilidade, reconhecemos que a nossa dignificação espiritual é serviço intransferível. Devemos a nós mesmos quanto nos sucede em matéria de bem ou de mal.
— Importante observar, — disse Hilário, pensativo, — como a vida reclama, no refazimento da paz, a conjugação daqueles que entraram em guerra uns com os outros… No passado, Júlio arrojou-se ao despenhadeiro do suicídio sob a influência de Amaro e Zulmira, após indispor-se com Silva…
— E, agora, — completou Clarêncio, — reabilita-se com o auxílio de Zulmira e Amaro, de modo a rearmonizar-se com o enfermeiro. É natural seja assim.
— Mas Júlio, antes de tornar ao mundo, através do nosso amigo ferroviário, — indaguei, — onde estaria?
— Depois de haver eliminado o próprio corpo, satisfazendo a simples capricho pessoal, sofreu por muitos anos as tristes consequências do ato deliberado, amargando nos Círculos vizinhos da Terra as torturas do envenenamento a se lhe repetirem no campo mental.
A morte prematura, quando traduz indisciplina diante das leis infinitamente compassivas que nos governam, constrange o Espírito que a provoca a dilatada purgação na paisagem espiritual.
Não podemos trair o tempo, e a existência planificada subordina-se a determinada quota de tempo, que nos compete esgotar em trabalho justo. Quando esses recursos não são suficientemente aproveitados, arcamos com tremendos desequilíbrios na organização que nos é própria.
— Sofreria, porém, a sós?
— Nem sempre, — informou o instrutor; — quando não se achava em martirizada solidão, via-se, como é lógico, onde se lhe mantinha preso o pensamento.
Ante a nossa curiosidade indagadora, acrescentou:
— Os pensamentos dele se alimentavam na atmosfera psíquica de Zulmira, Amaro e Silva, que lhe serviam de pontos básicos ao ódio.
Ensinava Jesus que o homem terá o seu tesouro onde guarde o coração e, efetivamente, todos nos imantamos, em espírito, às pessoas, lugares e objetos, aos quais se liguem os nossos sentimentos.
— Mas Júlio estava em contato com eles nas Esferas espirituais ou nas experiências do mundo físico?
— Partilhava-lhes a vida simplesmente, e a vida, em qualquer setor de luta, é invariável. Entretanto, por detestar Amaro mais profundamente, pesava com mais intensidade sobre ele.
O ferroviário, na existência do Espaço, conheceu-lhe a perseguição acérrima, ouvindo-lhe as acusações e as queixas, nas regiões purgatoriais e, ao se reencarnar, na atual condição, foi seguido de perto por Júlio, que lhe afligia a mente, dele exigindo o necessário concurso à formação do novo corpo.
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Em razão da leviandade de Amaro, quando na personalidade de Armando, caminhara para o suicídio. Por isso mesmo, a Lei permitia-lhe a união com o amigo transformado em desafeto, companheiro esse do qual reclamava a renovação da oportunidade perdida.
Clarêncio fitou-nos, de modo especial, e aduziu:
— Entre o credor e o devedor há sempre o fio espiritual do compromisso.
— Amaro teria tido, dessa forma, uma juventude algo conturbada, — ponderei com objetivo de estudo.
— Sim, como acontece à maioria dos moços de ambos os sexos, na luta vulgar, muito cedo acordou para o ideal da paternidade.
Em sonhos, fora do corpo denso, encontrava-se com o adversário que lhe pedia o retorno ao mundo e, ansioso de reconciliação, pensava no casamento com extremado desassossego, desejoso de saldar a conta que reconhecia dever.
Muito jovem ainda, encontrou Odila que o aguardava, consoante o acordo por ambos levado a efeito, na vida espiritual; no entanto, as vibrações de Júlio eram efetivamente tão incômodas que a primeira esposa do nosso amigo não conseguiu acolhê-lo, de imediato, recebendo Evelina, em primeiro lugar, de vez que a ligação do casal com ela se baseia em doces afinidades. Somente depois da primogênita é que se ambientou para a incorporação do suicida em sofrimento…
— Este ponto de nossa conversação, — lembrei, respeitoso, — faz-me recordar os conflitos interiores de muitos rapazes e de muitas moças na Terra.
Às vezes se arrojam ao casamento com absoluta inaptidão para as grandes responsabilidades, qual se estivessem impulsionados por molas invisíveis, sem qualquer consideração para com os impositivos da prudência. Como se fossem atacados por subitânea loucura, desatendem a todos os conselhos do lar ou dos amigos, para despertarem, depois, com problemas de enorme gravidade, quando não acordam sob a neblina de imensas desilusões.
Agora compreendo… Na base dos sonhos juvenis, quase sempre moram dívidas angustiosas a que não se pode fugir…
— Sim, — confirmou o Ministro, — grande número de paixões afetivas no mundo correspondem a autênticas obsessões ou psicoses, que só a realidade consegue tratar com êxito.
Em muitas ocasiões, por trás do anseio de união conjugal, vibra o passado, através de requisições dos amigos ou inimigos desencarnados, aos quais devemos colaboração efetiva para a reconquista do veículo carnal. A inquietação afetiva pode expressar escuros labirintos da retaguarda…
Refletindo nas lutas da alma, atirada às experiências da vida com tantos enigmas a solver, acudiu-me à lembrança antiga questão que habitualmente me vinha à cabeça.
— E os anjos de guarda? — Inquiri.
Diante da surpresa que assomou ao semblante do nosso orientador, acentuei, reverente:
— Perdoe-me, mas ainda sou estudante incipiente da vida espiritual. Os anjos de guarda estão em nossa Esfera?
Clarêncio encarou-me, admirado, e sentenciou:
— Os Espíritos tutelares encontram-se em todas as Esferas, contudo é indispensável tecer algumas considerações sobre o assunto.
Os anjos da sublime vigilância, analisados em sua excelsitude divina, seguem-nos a longa estrada evolutiva. Desvelam-se por nós, dentro das Leis que nos regem, todavia, não podemos esquecer que nos movimentamos todos em Círculos multidimensionais. A cadeia de ascensão do Espírito vai da intimidade do abismo à suprema glória celeste.
Ligeira pausa trouxe paternal sorriso aos lábios do instrutor, que prosseguiu:
— Será justo lembrar que estamos plasmando nossa individualidade imperecível no espaço e no tempo, ao preço de continuadas e difíceis experiências.
A ideia de um ente divinizado e perfeito, invariavelmente ao nosso lado, ao dispor de nossos caprichos ou ao sabor de nossas dívidas, não concorda com a justiça.
Que governo terrestre destacaria um de seus ministros mais sábios e especializados na garantia do bem de todos para colar-se, indefinidamente, ao destino de um só homem, quase sempre renitente cultor de complicados enigmas e necessitado, por isso mesmo, das mais severas lições da vida? Por que haveria de obrigar-se um arcanjo a descer da Luz Eterna para seguir, passo a passo, um homem deliberadamente egoísta ou preguiçoso? Tudo exige lógica, bom-senso.
— Com semelhante apontamento quer dizer que os anjos de guarda não vivem conosco?
— Não digo isso, — asseverou o benfeitor.
E, com graça, aduziu:
— O Sol está com o verme, amparando-o na furna, a milhões e milhões de quilômetros, sem que o verme esteja com o Sol.
As irmãs que seguiam conosco, lado a lado, embevecidas na contemplação do céu, comentavam carinhosamente o porvir de Júlio, psiquicamente distanciadas de nossa conversação.
O apontamento de nosso orientador impunha-nos graves reflexões e, talvez por esse motivo, o silêncio tentou apossar-se do grupo, mas Clarêncio, reconhecendo que o assunto demandava elucidação mais ampla, continuou:
— Anjo, segundo a acepção justa do termo, é mensageiro. Ora, há mensageiros de todas as condições e de todas as procedências e, por isso, a Antiguidade sempre admitiu a existência de anjos bons e anjos maus.
Anjo de guarda, desde as concepções religiosas mais antigas, é uma expressão que define o Espírito celeste que vigia a criatura em nome de Deus ou pessoa que se devota infinitamente a outra, ajudando-a e defendendo-a.
Em qualquer região, convivem conosco os Espíritos familiares de nossa vida e de nossa luta. Dos seres mais embrutecidos aos mais sublimados, temos a corrente de amor, cujos elos podemos simbolizar nas almas que se querem ou que se afinam umas com as outras, dentro da infinita gradação do progresso.
A família espiritual é uma constelação de Inteligências, cujos membros estão na Terra e nos Céus. Aquele que já pode ver mais um pouco auxilia a visão daquele que ainda se encontra em luta por desvencilhar-se da própria cegueira.
Todos nós, por mais baixo nos revelemos na escala da evolução, possuímos, não longe de nós, alguém que nos ama a impelir-nos para a elevação.
Isso podemos verificar nos Círculos da matéria mais densa. Temos constantemente corações que nos devotam estima e se consagram ao nosso bem.
De todas as afeições terrestres, salientemos, para exemplificar, a devoção das mães. O espírito maternal é uma espécie de anjo ou mensageiro, embora muita vez circunscrito ao cárcere de férreo egoísmo, na custódia dos filhos.
Além das mães, cujo amor padece muitas deficiências, quando confrontado com os princípios essenciais da fraternidade e da justiça, temos afetos e simpatias dos mais envolventes, capazes dos mais altos sacrifícios por nós, não obstante condicionados a objetivos por vezes egoísticos.
Não podemos olvidar, porém, que o admirável altruísmo de amanhã começa na afetividade estreita de hoje, como a árvore parte do embrião. Todas as criaturas, individualmente, contam com louváveis devotamentos de entidades afins que se lhes afeiçoam.
A orfandade real não existe. Em nome do Amor, todas as almas recebem assistência onde quer que se encontrem. Irmãos mais velhos ajudam os mais novos. Mestres inspiram discípulos. Pais socorrem os filhos. Amigos ligam-se a amigos. Companheiros auxiliam companheiros.
Isso ocorre em todos os Planos da Natureza e, fatalmente, na Terra, entre os que ainda vivem na carne e os que já atravessaram o escuro passadiço da morte.
Os gregos sabiam disso e recorriam aos seus gênios invisíveis. Os romanos compreendiam essa verdade e cultuavam os numes domésticos.
O gênio guardião será sempre um Espírito benfazejo para o protegido, mas é imperioso anotar que os laços afetivos, em torno de nós, ainda se encontram em marcha ascendente para mais altos níveis da vida.
Com toda a veneração que lhes devemos, importa reconhecer, nos Espíritos familiares que nos protegem, grandes e respeitáveis heróis do bem, mas ainda singularmente distanciados da angelitude eterna. Naturalmente, avançam em linhas enobrecidas, em Planos elevados, todavia, ainda sentem inclinações e paixões particulares, no rumo da universalização de sentimentos.
Por esse motivo, com muita propriedade, nas diversas escolas religiosas, escutamos a intuição popular asseverando: — “Nossos anjos de guarda não combinam entre si”, ou, ainda, “façamos uma oração aos anjos de guarda”, reconhecendo-se, instintivamente, que os gênios familiares de nossa intimidade ainda se encontram no campo de afinidades específicas, e precisam, por vezes, de apelos à natureza superior para atenderem a esse ou àquele gênero de serviço.
Chegávamos ao Lar da Bênção e os esclarecimentos do instrutor represavam-se em nossa alma, por inesquecível preleção, compelindo-nos a grande silêncio.
Blandina, porém, veio até nós e perguntou ao orientador, sensibilizada:
— Generoso amigo, podemos estar realmente convictos de que Júlio devia desencarnar, agora?
— Perfeitamente. A Lei funcionou, exata. Não há lugar para qualquer dúvida.
— E aqueles jatos de pensamento escuro que partiram do enfermeiro, como que envenenando o nosso doentinho?
— Se não estivéssemos junto dele, — disse o Ministro, — teriam efetivamente abreviado a morte da criança e, ainda assim, a Lei ter-se-ia cumprido; entretanto, aqueles pensamentos escuros de Mário voltaram para ele mesmo. Emitiu-os, com o evidente propósito de matar e, em razão disso, experimenta o remorso de um autêntico assassino.
A graciosa residência de Blandina, para onde nos encaminhávamos, estava agora à nossa vista. Clarêncio afagou-a, bondoso, e concluiu:
— Permaneçamos convencidos, minha filha, de que, em qualquer lugar e em qualquer tempo, receberemos da vida, de acordo com as nossas próprias obras.
André Luiz
VÍDEO:
Entre a Terra e o Céu - Cap. 33 - Aprendizado
O Espírito da Letra
Apresentação: André Luiz Ruiz
O Espírito da Letra - Analisando a obra de André Luiz "Entre a Terra e o Céu" - Psicografia de Chico Xavier
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