sábado, 20 de junho de 2020

Léon Denis - Livro O Problema do Ser do Destino e da Dor - Cap. XVI - As vidas sucessivas - Objeções e críticas



Léon Denis - Livro O Problema do Ser do Destino e da Dor - Cap. XVI 


As vidas sucessivas – Objeções e críticas


Já respondemos às objeções que, logo à primeira vista, o esquecimento das vidas anteriores traz ao pensamento; resta-nos refutar outras de caráter filosófico ou religioso, que os representantes das igrejas opõem, de boamente, à doutrina das reencarnações.

Em primeiro lugar, dizem, essa doutrina é insuficiente sob o ponto de vista moral. Abrindo ao homem tão vastas perspectivas para o futuro, deixando-lhe a possibilidade de reparar tudo nas suas existências vindouras, acoroçoa-o ao vício e à indolência; não oferece estímulo de bastante poder e eficácia para a prática do bem, e, por todas essas razões, é menos enérgico que o temor de um castigo eterno depois da morte.

A teoria das penas eternas não é, como vimos,168 no próprio pensamento da Igreja, mais do que um espantalho destinado a amedrontar os maus; mas a ameaça do inferno, o temor dos suplícios, eficaz nos tempos de fé cega, já hoje não reprime a ninguém. No fundo, é uma impiedade para com Deus, de quem se faz um ser cruel, que castiga sem necessidade e sem o objetivo de corrigir.

Em seu lugar, a doutrina das reencarnações mostra-nos a verdadeira lei dos nossos destinos e, com ela, a realização do progresso e da justiça no universo; fazendo-nos conhecer as causas anteriores dos nossos males, põe termo à concepção iníqua do pecado original, segundo a qual toda a descendência de Adão, isto é, a humanidade inteira, sofreria o castigo das fraquezas do primeiro homem. É por isso que sua influência moral será mais profunda que a das fábulas infantis do inferno e do paraíso; oporá freio às paixões, mostrando-nos as conseqüências dos nossos atos, recaindo sobre a nossa vida presente e as nossas vidas futuras, semeando nelas germens de dor ou de felicidade. Ensinando-nos que a alma é tanto mais desgraçada quanto mais imperfeita e culpada, estimulará os nossos esforços para o bem. É verdade que é inflexível essa doutrina; mas pelo menos proporciona o castigo à culpa e, depois da reparação, fala-nos de reabilitação e esperança. Ao passo que o crente ortodoxo, imbuído da idéia de que a confissão e a absolvição lhe apagam os pecados, afaga uma esperança vã e prepara para si próprio decepções na outra vida, o homem cuja mente foi iluminada pela nova luz aprende a retificar o seu proceder, a precatar-se, a preparar com cuidado o futuro.

Há outra objeção que consiste em dizer: Se estamos convencidos de que os nossos males são merecidos, de que são conseqüência da lei de justiça, tal crença terá por efeito extinguir em nós toda a piedade, toda a compaixão pelos sofrimentos alheios; sentir-nos-emos menos inclinados a socorrer, a consolar nossos semelhantes; deixaremos livre curso às suas provações, pois que devem ser para eles uma expiação necessária e um meio de adiantamento.169 Essa objeção é especiosa; emana de fonte interessada.

Consideremos, primeiramente, a questão sob o ponto de vista social, examiná-la-emos, depois, no sentido individual. O moderno Espiritualismo ensina-nos que os homens são solidários uns com os outros, unidos por uma sorte comum. As imperfeições sociais, de que todos mais ou menos sofremos, são o resultado de nossos erros coletivos no passado. Cada um de nós traz a sua parte de responsabilidade e tem o dever de trabalhar para o melhoramento do destino geral.

A educação das almas humanas obriga-as a ocupar situações diversas. Todas têm de passar alternadamente pela prova da riqueza e pela da pobreza, do infortúnio, da doença, da dor.

O egoísta fica alheio a todas as misérias deste mundo que não o atingem e diz: “Depois de mim, o dilúvio”. Crê que a morte o subtrai à ação das leis terrestres e às convulsões da sociedade. Com a reencarnação, muda o ponto de vista. Será forçoso voltar e sofrer os males que contávamos legar aos outros. Todas as paixões, todas as iniqüidades que tivermos tolerado, animado, sustentado, seja por fraqueza, seja por interesse, voltar-se-ão contra nós. O meio social em prol do qual nada tivermos feito constranger-nos-á com toda a força dos seus braços. Quem esmagou, quem explorou os outros será, por sua vez, explorado, esmagado; quem semeou a divisão, o ódio, sofrer-lhes-á os efeitos: o orgulhoso será desprezado e o espoliador espoliado; aquele que fez sofrer sofrerá. Se quiserdes assentar em bases firmes o vosso próprio futuro, trabalhai, pois, desde já, em aperfeiçoar, em melhorar o meio em que haveis de renascer; pensai na vossa própria reforma. Eis o que é indispensável fazer-se para que as misérias coletivas sejam vencidas pelo esforço de todos. Aquele que, podendo ajudar os seus semelhantes, deixa de fazê-lo, falta à lei de solidariedade.

Quanto aos males individuais, diremos, colocando-nos em outro ponto de vista: “Não somos juízes das medidas exatas onde começa e onde acaba a expiação.” Sabemos, porventura, quais são os casos em que há expiação? Muitas almas, sem serem culpadas, mas ávidas de progresso, pedem uma vida de provas para mais rapidamente efetuarem sua evolução. O auxílio que devemos a estas almas pode ser uma das condições de seu destino, como do nosso, e é possível que estejamos adrede colocados em seu caminho para aliviá-las, esclarecê-las, confortá-las. Sempre que se nos ofereça o mínimo ensejo de nos tornarmos úteis e prestativos e deixamos de o ser, há de nossa parte mau cálculo, porquanto todo bem e todo mal feitos remontam à sua origem com os seus efeitos.

“Fora da caridade não há salvação”, disse Allan Kardec. Tal é o preceito por excelência da moral espírita. O sofrimento, onde quer que se manifeste, deve encontrar corações compassivos prontos a socorrer e consolar. A caridade é a mais bela das virtudes; só ela dá acesso aos mundos felizes.

Muitas pessoas para quem a vida foi rude e difícil aterram-se com a perspectiva de a renovarem indefinidamente. Essa longa e penosa ascensão através dos tempos e dos mundos enche de pavor aqueles que, tomados de fadiga, contam com um descanso imediato e uma felicidade sem fim. É certo que se precisa ter têmpera n’alma para contemplar sem vertigem essas perspectivas imensas. A concepção católica era mais sedutora para as almas tímidas, para os espíritos indolentes, que, segundo ela, poucos esforços tinham a fazer para alcançar a salvação. A visão do destino é formidável. Só espíritos vigorosos podem considerá-lo sem fraquejar, encontrar na noção do destino o incentivo necessário, a compensação dos pequenos hábitos confessionais, a calma e a serenidade do pensamento.

Uma felicidade, que é preciso conquistar à custa de tantos esforços, amedronta mais do que atrai as almas humanas, fracas ainda em grande parte e inconscientes do seu magnífico futuro. A verdade, porém, está acima de tudo! Aqui, portanto, não estão em jogo as nossas conveniências pessoais. A lei, agrade ou não, é lei! É dever nosso subordinar-lhe os nossos desígnios e atos e não cabe a ela dobrar-se às nossas exigências.

A morte não pode transformar um Espírito inferior em Espírito elevado. Somos, nesta como na outra vida, o que nos fizemos, intelectual e moralmente. Isso é demonstrado por todas as manifestações espíritas. Há quem diga, entretanto, que só as almas perfeitas penetrarão nos reinos celestes e, por outro lado, restringem os meios de aperfeiçoamento ao círculo de uma vida efêmera. Pode alguém vencer suas paixões, modificar seu caráter durante uma única existência? Se alguns o têm conseguido, que pensar da multidão dos seres ignorantes e viciosos que povoam nosso planeta? É admissível que sua evolução se restrinja a essa curta passagem pela Terra? Onde encontrarão também, os que se tornaram culpados de grandes crimes, as condições necessárias à reparação? Se não fosse nas reencarnações ulteriores, tornaríamos forçosamente a cair no labirinto do inferno; mas um inferno perpétuo é tão impossível como um paraíso eterno, porque não há ato, por mais louvável, nem crime, por mais horrendo, que produza uma eternidade de recompensas ou de castigos!

Basta considerar a obra da Natureza, desde a origem dos tempos, para verificar-se por toda parte a lenta e tranqüila evolução dos seres e das coisas, que tanto se ajusta ao Poder Eterno e que todas as vozes do universo proclamam. A alma humana não escapa a essa regra soberana. Ela é a síntese, o remate desse esforço prodigioso, o último anel da cadeia que se desenrola desde as mais profundas camadas da vida e cobre o globo inteiro. Não é no homem que se resume toda a evolução dos reinos inferiores e que aparece fulgente o princípio sagrado da perfectibilidade? Não é esse princípio a sua própria essência e como que o selo divino impresso em sua natureza? E, se assim é, como admitir que a inteligência humana possa estar colocada fora das leis imponentes, emanadas da Causa Primária das Inteligências?

A onda de vida que rola suas águas através das idades para chegar ao ser humano e que, em seu curso, é dirigida pela lei grandiosa da evolução, pode ir terminar na imobilidade? Por toda a parte – na Natureza e na História – está escrito o princípio do progresso. Todo movimento que ele imprime às forças em ação no nosso mundo vai ter ao homem. Pode, pois, pretender-se que a parte essencial do homem, o seu “eu”, a sua consciência, escape à lei de continuidade e progressão? Não! A lógica, sem falar dos fatos, demonstra que a nossa existência não pode ser única. O drama da vida não pode constar de um só ato; é-lhe indispensável uma continuação, um prolongamento, pelos quais se explicam e esclarecem as incoerências aparentes e as obscuridades do presente; requer um encadeamento de existências solidárias umas das outras, realçando o plano e a economia que presidem aos destinos dos seres humanos.

Resultará daí estarmos condenados a um labor ímprobo e incessante? A lei de ascensão recua indefinidamente o período de paz e descanso? De modo nenhum. À saída de cada vida terrestre a alma colhe o fruto das experiências adquiridas; aplica as suas forças e faculdades ao exame da vida íntima e subjetiva; procede ao inventário da sua obra terrestre, assimila as partes úteis e rejeita o elemento estéril. É a primeira ocupação na outra vida, o trabalho por excelência de recapitulação e análise. O recolhimento entre os períodos de atividade terrestre é necessário e todo ser que segue a vida normal dele recebe, a seu turno, os benefícios.

Dizemos recolhimento porque, na realidade, o Espírito, no estado livre, ignora o descanso; a atividade é sua própria natureza. Essa atividade não é visível no sono? Só os órgãos materiais de transmissão sentem fadiga e pouco a pouco periclitam. Na vida do espaço são desconhecidos esses obstáculos; o Espírito pode consagrar-se, sem incômodo e sem coação, até à hora da reencarnação, às missões que lhe cabem.

O regresso à vida terrestre é para ele como que um rejuvenescimento. Em cada renascimento a alma reconstitui para si uma espécie de virgindade. O esquecimento do passado, qual Letes benfazejo e reparador, torna a fazer dela um ser novo, que repete a ascensão vital com mais ardor. Cada vida realiza um progresso, cada progresso aumenta o poder da alma e aproxima-a do estado de plenitude. Essa lei mostra-nos a vida eterna em sua amplitude. Todos nós temos um ideal a realizar – a beleza suprema e a suprema felicidade. Encaminhamo-nos para esse ideal com mais ou menos rapidez segundo a impulsão dos nossos ímpetos e a intensidade dos nossos desejos. Não existe nenhuma predestinação; nossa vontade e nossa consciência, reflexo vivo da norma universal, são nossos árbitros. Cada existência humana estabelece as condições do que se há de seguir. Seu conjunto constitui a plenitude do destino, isto é, a comunhão com o Infinito.

Perguntam-nos muitas vezes: “Como podem a expiação e o resgate das faltas passadas ser meritórios e fecundos para o Espírito reencarnado, se este, esquecido e inconsciente das causas que o oprimem, ignora atualmente o fim e a razão de ser de suas provações?”

Vimos que o sofrimento não é forçosamente uma expiação. Toda a Natureza sofre; tudo o que vive, a planta, o animal e o homem, está sujeito à dor. O sofrimento é principalmente um meio de evolução, de educação; mas, no caso em questão, é preciso lembrar que se deve estabelecer distinção entre a inconsciência atual e a consciência virtual do destino no Espírito reencarnado.

Quando o Espírito compreende, à luz intensa do Além, que lhe é absolutamente necessária uma vida de provações para apagar os lamentáveis resultados de suas existências anteriores, esse mesmo Espírito, num movimento de plena inteligência e plena liberdade, escolhe ou aceita espontaneamente a reencarnação futura com todas as conseqüências que ela acarreta, aí compreendido o esquecimento do passado, que se segue ao ato da reencarnação. Essa vista inicial, clara e completa, do seu destino no momento preciso em que o Espírito aceita o renascimento, basta amplamente para estabelecer a consciência, a responsabilidade e o mérito dessa nova vida. Dela o conserva neste mundo a intuição velada, o instinto adormecido, que a menor reminiscência, o menor sonho, bastam para acordar e fazer reviver.

É por esse laço invisível, mas real e possante, que a vida atual se liga à vida anterior do mesmo ser e constitui a unidade moral e a lógica implacável de seu destino. Se, já o demonstramos, não nos lembramos do passado, é porque, as mais das vezes, nada fazemos para despertar as recordações adormecidas; mas a ordem das coisas não deixa por isso de subsistir, nenhum elo da cadeia magnética do destino se obliterou e, ainda menos, se quebrou.

O homem de idade madura não se lembra do que fez na meninice. Deixa por isso de ser a criancinha de outrora e de lhe realizar as promessas? O grande artista que, ao entardecer de um dia de labor, cede ao cansaço e adormece, não retém durante o sono o plano virtual, a visão íntima da obra que vai prosseguir, que vai continuar, assim que acordar? Acontece o mesmo com o nosso destino, que é uma lide constante entrecortada, muitas vezes, em seu curso, por sonos, que são, na realidade, atividades de formas diferentes, abrilhantadas por sonhos de luz e beleza!

A vida do homem é um drama lógico e harmônico, cujas cenas e decorações mudam, variam ao infinito, mas não se apartam nunca, um só instante, da unidade do objetivo nem da harmonia do conjunto. Só quando voltarmos para o mundo invisível é que compreenderemos o valor de cada cena, o encadeamento dos atos, a incomparável harmonia do todo em suas ligações com a vida e a unidade universais.

Sigamos, pois, com fé e confiança, a linha traçada pela Mão Infalível. Dirijamo-nos aos nossos fins, como os rios se dirigem para o mar – fecundando a terra e refletindo o céu.


Léon Denis









Fonte: O Problema do Ser do Destino e da Dor -pdf

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