André Luiz - Livro Nosso Lar - Chico Xavier - Cap. 14
Elucidações de Clarêncio
Pulsava-me precípite o coração, fazendo-me lembrar o aprendiz bisonho, diante de examinadores rigorosos. Vendo aquela mulher em lágrimas e ponderando a energia serena do Ministro do Auxílio, tremia dentro de mim mesmo, arrependido de haver provocado aquela audiência.
Não seria melhor calar, aprendendo a esperar deliberações superiores? Não seria presunção descabida pedir atribuições de médico naquela casa, onde permanecia como enfermo?
A sinceridade de Clarêncio, para com a irmã que me antecedera, despertara-me raciocínios novos. Quis desistir, renunciar ao desejo da véspera e voltar ao aposento, mas, era impossível. O Ministro do Auxílio, como se adivinhasse meus propósitos mais íntimos, exclamou em tom firme:
— Pronto a ouvi-lo.
Ia solicitar instintivamente qualquer serviço médico em “Nosso Lar”, embora a indecisão que me dominava, entretanto, a consciência me advertia: Por que referir-se a serviço especializado? Não seria repetir os erros humanos, dentro dos quais a vaidade não tolera outro gênero de atividade senão o correspondente aos preconceitos dos títulos nobiliárquicos, ou acadêmicos? Esta ideia equilibrava-me a tempo. Bastante confundido, falei:
— Tomei a liberdade de vir até aqui, rogar seus bons ofícios para que me reintegre no trabalho. Ando saudoso dos meus misteres, agora que a generosidade do “Nosso Lar” me reconduziu à bênção da harmonia orgânica. Qualquer trabalho útil me interessa, desde que me afaste da inação.
Clarêncio fitou-me longamente, como a identificar-me as intenções mais íntimas.
— Já sei. Verbalmente pede qualquer gênero de tarefa; mas, no fundo, sente falta dos seus clientes, do seu gabinete, da paisagem de serviço com que o Senhor honrou sua personalidade na Terra.
Até aí, as palavras dele eram jatos de conforto e esperança, que recebia no coração, com gestos confirmativos.
Depois de uma pausa mais longa, porém, o Ministro prosseguiu:
— Convém notar, todavia, que às vezes o Pai nos honra com a Sua confiança e nós desvirtuamos os verdadeiros títulos de serviço.
Você foi médico na Terra, cercado de todas as facilidades, no capítulo dos estudos. Nunca soube o preço de um livro, porque seus pais, generosos, lhe custeavam todas as despesas. Logo depois de graduado, começou a receber proventos compensadores, não teve sequer as dificuldades do médico pobre, compelido a mobilizar relações afetivas para fazer clínica.
Prosperou tão rapidamente que transformou facilidades conquistadas em carreira para a morte prematura do corpo. Enquanto moço e sadio, cometeu numerosos abusos, dentro do quadro de trabalho a que Jesus o conduziu.
Ante aquele olhar firme e bondoso ao mesmo tempo, estranha perturbação apossara-se de mim. Respeitosamente, ponderei:
— Reconheço a procedência das observações, mas, se possível, estimaria obter meios de resgatar meus débitos, consagrando-me sinceramente aos enfermos deste parque hospitalar.
— Impulso muito nobre, — disse Clarêncio sem austeridade, — contudo, é preciso convir que toda tarefa na Terra, no campo das profissões, é convite do Pai para que o homem penetre os templos divinos do trabalho.
O título, para nós, é simplesmente uma ficha; mas, no mundo, costuma representar uma porta aberta a todos os disparates. Com essa ficha, o homem fica habilitado a aprender nobremente e a servir ao Senhor, no quadro de Seus divinos serviços no planeta.
Tal princípio é aplicável a todas as atividades terrestres, excluída a convenção dos setores nos quais se desdobrem.
Meu irmão recebeu uma ficha de médico. Penetrou o templo da Medicina, mas sua ação, lá dentro, não se verificou em normas que me autorizem a endossar seus atuais desejos.
Como transformá-lo, de um momento para outro, em médico de Espíritos enfermos, quando fez questão de circunscrever observações exclusivamente à Esfera do corpo físico? Não nego sua capacidade de excelente fisiologista, mas o campo da vida é muito extenso.
Que me diz de um botânico que alinhasse definições apenas com o exame das cascas secas de algumas árvores? Grande número de médicos, na Terra, prefere apenas a conclusão matemática, frente aos serviços de anatomia. Concordemos que a Matemática é respeitável, mas não é a única ciência do Universo.
Como reconhece agora, o médico não pode estacionar em diagnósticos e terminologias. Há que penetrar a alma, sondar-lhe as profundezas.
Muitos profissionais da Medicina, no planeta, são prisioneiros das salas acadêmicas, porque a vaidade lhes roubou a chave do cárcere. Raros conseguem atravessar o pântano dos interesses inferiores, sobrepor-se a preconceitos comuns e, para essas exceções, reservam-se as zombarias do mundo e o escárnio dos companheiros.
Fiquei atônito. Não conhecia tais noções de responsabilidade profissional. Assombrava-me a interpretação do título acadêmico, reduzido à ficha de ingresso em zonas de trabalho para cooperação ativa com o Senhor Supremo. Incapaz de intervir, aguardei que o Ministro do Auxílio retomasse o fio das elucidações.
— Conforme deduz, — continuou ele, — não se preparou convenientemente para os nossos serviços aqui.
— Generoso benfeitor, — atrevi-me a dizer, — compreendo a lição e curvo-me à evidência.
E, fazendo esforço por conter as lágrimas, pedi, humilde:
— Submeto-me a qualquer trabalho, nesta colônia de realização e paz.
Com um profundo olhar de simpatia, respondeu:
— Meu amigo, não possuo apenas verdades amargas. Tenho igualmente a palavra de estímulo. Não pode ainda ser médico em “Nosso Lar”, mas poderá assumir o cargo de aprendiz, oportunamente. Sua posição atual não é das melhores; entretanto, é confortadora, pelas intercessões chegadas ao Ministério do Auxílio, a seu favor.
— Minha mãe? — Perguntei, inebriado de alegria.
— Sim, — esclareceu o Ministro, — sua mãe e outros amigos, no coração dos quais você plantou a semente da simpatia.
Logo após sua vinda, pedi ao Ministério do Esclarecimento providenciasse a obtenção de suas notas, que examinei atentamente. Muita imprevidência, numerosos abusos e muita irreflexão, mas, nos quinze anos de sua clínica, também proporcionou receituário gratuito a mais de seis mil necessitados.
Na maioria das vezes, praticou esses atos meritórios, absolutamente por troça; mas, presentemente, pode verificar que, mesmo por troça, o verdadeiro bem espalha bênçãos em nossos caminhos. Desses beneficiados, quinze não o esqueceram e têm enviado, até aqui, veementes apelos a seu favor. Devo esclarecer, no entanto, que mesmo o bem que proporcionou aos indiferentes surge aqui a seu favor.
Concluindo, a sorrir, as elucidações surpreendentes, Clarêncio acentuou:
— Aprenderá lições novas em “Nosso Lar” e, depois de experiências úteis, cooperará eficientemente conosco, preparando-se para o futuro infinito.
Sentia-me radiante. Pela primeira vez, chorei de alegria na colônia. Oh! Quem poderá entender, na Terra, semelhante júbilo? Por vezes, é preciso se cale o coração no grandiloquente silêncio divino.
André Luiz
VÍDEO:
Nosso Lar - Cap. 14 - Elucidações de Clarêncio (Parts. 1-2-3)
O Espírito da Letra
Apresentação: André Luiz Ruiz
O Espírito da Letra - Nosso Lar - Analisando a obra de André Luiz psicografia de Chico Xavier
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